Dificuldade quase número um da vida: dizer e manter um não. Isso porque quando falamos não para alguma coisa ou para alguém passamos pelo “teste de afeto das relações” – que nem sempre passa de fase ou sobrevive. Associo a capacidade de dizer não a uma coisa básica, porém complexa: estar ao nosso lado, mesmo que ninguém esteja. Cada vez menos raros, esses momentos – de dizer e manter um não, com relativo conforto – tem me encantado e me fazendo descobrir muitas coisas sobre quem eu realmente estou disposta a ser – não por ninguém, nem para ninguém – mas por mim. Um ser inteiro ajuda mais do que um ser que concede. Ser uma boa pessoa é diferente de ser uma pessoa boazinha.
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Fui fazer a unha e a moça disse: coloca essa cor que fica linda! E eu disse, bem baixinho – com medo de ela me achar uma pessoa chata: acho que não, prefiro branquinho. Mas ela insistiu: vai ficar demais! E, eu? Deixei a cor que não queria. Cheguei em casa e tirei. Aprendi minha lição final naquele dia.
Mas quem não diz “não” carrega uma culpa, está sempre em dívida ou zerado, não prospera. Ganha um presente e logo pensa: como agradecer a esta pessoa? O que devo dar a ela como sinal de minha gratidão? É uma loucura, mas a gente come carne, mesmo sendo vegetariano. E justifica: faço por educação. Ou, faço porque amo a outra pessoa e faria qualquer coisa por ela (inclusive anular minha própria vida). Ou, faço porque não quero ser chata.
Quando estamos vazios de quem nós somos, os outros preenchem a gente – e por isso nos tornamos tão dependentes de determinadas relações. Se não enfrentamos nosso vazio, nos apressamos nos preenchendo de outros, e ao copiar o outro por conforto e necessidade de afeto, nunca seremos autênticos. Tem nos faltado paciência e dignidade para sofrer a passagem de nossa própria ausência em nossas vidas. Temos usado o nosso tempo fazendo audiência na vida dos outros.
Estudando a mim mesma e a pessoas que procuram no autoconhecimento a força para criar e manter sua identidade única, percebi que a dor do ser que não diz não reside em sua raridade, em seu destaque, em sua diferença no grupo. Esse ser se perde na vontade de fazer parte, de ganhar na migalha do afeto, nem sempre recíproco – mesmo que sejamos do samba, nos sentimos acompanhados e aliviados ao poder dizer que “fazemos parte” de um grupo de roqueiros. E preferimos fazer o que não gostamos do que enfrentar a solidão de nossa raridade. E porque a gente se vê parecido com ninguém, acaba sofrendo de um grande complexo de inadequação. Não ficamos ao nosso lado, e mais ninguém fica.
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É interessante conviver com pessoas preenchidas, entretanto. Autênticas, elas sabem o que fazer quando não estão acompanhadas. Independentes, desfrutam de seus silêncios e fazem barulho quando querem. Quem sabe dizer não, e o pratica com integridade, segue um fluxo em comunhão com a natureza.
Postergamos confrontos que fatalmente acontecerão, e quando acordamos, a vida passou e a gente continua olhando para o teto, vendo nele uma culpa, que aumenta o nosso débito conosco. Percebi com o tempo que meu débito comigo crescia a medida que me dava para relações sem reciprocidade. É hora de dizer não, manter o não e ficar ao nosso lado, mesmo que ninguém esteja e que sejamos torcida única na primeira fileira de nossas vidas. Buscamos liberdade e paz, e desconfio que ela começa com o desafio de um primeiro não honesto em nossas vidas.
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