“Você lembra da fome que tínhamos?” Foi a primeira memória do amigo de infância de Silvio Pléticos no encontro que ocorreu 40 anos depois de terem vivido num orfanato na extinta Iugoslávia. Aos 90 anos, completados no último dia 1º de maio, o artista radicado em Santa Catarina há quase cinco décadas – e considerado por críticos um divisor de águas na história da arte catarinense – viaja no tempo, remexe nos arquivos da infância e adolescência, tão distantes e insignificantes diante de sua longa trajetória, para explicar que as experiências de um artista são indissociáveis de suas criações. Vida e obra são diferentes, mas uma é a consequência da outra. E se as experiências de Pléticos não foram apenas tristes, ele mesmo, no entanto, é categórico ao afirmar que o sofrimento foi sua maior escola.
Continua depois da publicidade
– Me permite dizer que estou maduro aos 90 anos – afirma com sincera humildade.
Maduro e mais lúcido impossível – ele diz que todo homem tem a obrigação de preservar a sanidade e ele próprio é exemplo de que o corpo até pode sofrer com o imbatível tempo, mas somente a filosofia e arte são capazes de preservar o espírito -, Pléticos aproveita-se da surdez para falar sem ser interrompido, e contar que a dor e a sensação de estar no fundo do abismo foram experiências necessárias para perceber que só a arte é capaz de preencher vazios. Fala isso sem autopiedade. Assim se foram nove décadas, dedicadas a desenhar, a pintar, a esmiuçar a história e filosofia da arte, e a ensinar o que aprendeu para continuar, até hoje, aprendendo. Artista contemporâneo e atento ao movimento do mundo, trabalha assimilando e ao mesmo tempo desconstruindo estilos, estéticas, o cubismo, o impressionismo, o abstrato e o realismo, para seguir dissertando em pincéis o destino do homem.
>> As nove décadas de vida e arte de Silvio Pléticos
Na sala de sua casa – inteira decorada com quadros – no bairro Bela Vista 1, em São José, um sobrado simples de três andares onde mantém seu ateliê, ele preocupa-se com as correntes de ar que possam afetar sua saúde. Fecha a porta da varanda e do bolso do casaco tira um papel dobrado com o desenho do lugar em que nasceu.
Continua depois da publicidade
– Eu quero dizer que o próprio tempo eu não deixo escapar. A arte me faz viver cada minuto. A arte sempre foi o que conduziu a minha vida, apesar de tudo: morte, fome, guerra. Sempre foi a arte. Não me sinto vazio – diz.
Pléticos nasceu em Pula, na Croácia, quando a cidade banhada pelo mar Adriático ainda pertencia à Itália. Nasceu numa família caipira. Pai e mãe morreram e ele foi deslocado para um orfanato onde freiras espancavam crianças e as deixavam passar fome. Ainda adolescente conheceu diferentes ofícios: ferreiro, confeiteiro, até em submarino trabalhou.
– Quer saber de uma coisa? Se eu tenho 90 anos foi graças àquela fome. Na guerra os outros morriam. Mas eu não. Porque eu ainda podia comer as páginas de caderno. Mas as freiras controlavam e contavam as folhas. E se continuava, apanhava – lembra.
Ele veio para o Brasil em 1961, porque já tinha um irmão que morava aqui. O plano inicial era ir para Austrália. Deixou no Velho Mundo as dores da guerra, da fome, do campo de concentração, mas manteve a memória, essas ele guarda como se fosse parte de sua corpo.
Continua depois da publicidade
Ecos de revolução nas artes
A arte em Santa Catarina tem dois tempos, um antes e outro depois de Pléticos. Foi o poeta e artista Rodrigo de Haro quem disse. Sua obra assenta-se sobre os tantos movimentos estéticos do último século, tradições as quais assimilou a seu modo para construir sua personalidade, embasado em sua sólida e tradicional formação na Europa, onde estudou antes e depois da guerra.
Começou a vida brasileira em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, maravilhado pela natureza, a abundância de frutos e plantas, mas encontrou um país provinciano do ponto de vista artístico.
– Ao chegar a Santa Catarina, nos anos 60, sua pintura matérica e vanguardista passou a ser uma referência para a geração que despontava no cenário artístico local – diz João Otávio Neves Filho, o Janga, crítico de arte.
Pléticos se embrenhou de corpo, cabeça, coração e alma na história da arte, das grutas da pré-história até os movimentos vanguardistas. Quando chegou a Santa Catarina, à época ainda um tanto isolada dos grandes centros e ainda atrasada do ponto de vista artístico-cultural, abriu nos fundos do Museu de Arte de Santa Catarina (Masc) – então chamado Museu de Arte Moderna – um curso, frequentado por nomes hoje importantes nas artes, como o pintor e escritor Jayro Schmidt, trazendo ecos tardios da revolução cubista, como conta o crítico de arte Janga.
Continua depois da publicidade
– Quanto eu comecei a estudar arte, fiquei realizado. Ainda se pintavam belas mulheres e paisagens, mas esses artistas não eram como aqueles que estavam arrebentando a figura, dando força expressiva no contraste dos valores plásticos.
Assim, a arte de Pléticos, ele próprio resume, é uma soma de todos os movimentos, e também uma ode à vida (o peixe, figura sempre presente, é uma homenagem ao mar que lhe dava o alimento que tantas vezes lhe faltou). Ele prepara-se psicologicamente agora para uma nova fase, que na história da arte não é nova mas que ele mesmo ainda não experimentou mas sabe que ainda pode viver e fazer.
– O futuro da arte? É de tal transformação que não será a obra que os nossos sentidos percebem, como o ruído na música, as cores na pintura, a figura e a forma no desenho e a satisfação da rima na poesia. Será o resultado que dá na própria pessoa que se dedica à arte.