A matança de mais de 60 apenados registrada no presídio em Manaus não surpreende o paulista Guaracy Mingardi. Cientista político com mestrado pela Unicamp (Universidade de Campinas) e doutorado pela USP (Universidade de São Paulo), ele é ex-investigador da Polícia Civil. Fez concurso para policial justamente para conhecer por dentro “a fera”, o sistema policial-criminal. Hoje ele é uma das maiores autoridades brasileiras em inteligência e análise criminal, crime organizado e corrupção. As credenciais o levaram a elaborar para o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) um diagnóstico do sistema carcerário, que inclui a força das facções criminais nos presídios.
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— O que está acontecendo é o ponto culminante de uma guerra. Culminante, até agora, porque está longe de terminar — define Mingardi.
Em entrevista por telefone a Zero Hora, ele detalha o racha entre facções que começa a incendiar os presídios brasileiros:
O que gerou essa matança em Manaus?
É o ponto culminante de uma guerra. Culminante, até agora, porque está longe de terminar. O Primeiro Comando da Capital (PCC, paulista) há mais de década se tornou a maior facção criminosa do país. O Comando Vermelho (CV, carioca) sempre teve ambições restritas ao Rio. Os dois se abasteciam de drogas e armas no Paraguai e na Bolívia, inclusive eram aliados. Aí o PCC, que é mais empreendedor, começou a dominar essa fronteira, monopolizar a rota para os principais mercados brasileiros (São Paulo e Rio). Estourou a guerra. O Jorge Rafaat, contrabandista que trabalhava com o CV no Mato Grosso do Sul, foi morto em junho com tiros de metralhadora antiaérea em Pedro Juan Caballero (Paraguai), a mando de um traficante fornecedor do PCC. Em outros Estados, o PCC tentou ingressar e têm ocorrido mortes.
Sobretudo na Região Norte, né?
Sim. Em outubro, 10 presos ligados ao CV em Boa Vista (Roraima) foram mortos por ordens do PCC. Horas depois, oito presos ligados a uma facção regional morreram em Porto Velho (Rondônia), supostamente por desentendimentos com o PCC. Agora, em Manaus, ocorreu o inverso: os do PCC foram vitimados. Essa facção regional aliada do CV, a Família do Norte, é muito violenta. Dezenas de supostos integrantes do PCC foram mortos no Amazonas, nas ruas, por traficantes locais nos últimos meses.
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É sobretudo uma disputa de mercado?
Com certeza. Nos Estados mais ao Sul (Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo) o PCC domina. Com isso, estrangula a rota para os consumidores com mais potencial. O CV não pode ficar sem essa rota. Ele conta com aliados na Região Norte, mas é muito longe do Rio de Janeiro. Por isso decidiu enfrentar os paulistas. É questão de sobrevivência.
O PCC tomou a favela da Rocinha, a maior do Brasil…
Sim. Contou, para isso, com colaboração da Amigos dos Amigos (ADA), facção carioca inimiga do CV. A verdade é que o PCC é mais organizado e, por isso, tem conquistado mais praças. Ele cobra mensalidades dos filiados e providencia auxílio-família aos parentes de presos ou de afiliados que morreram. Agora as facções regionais reagiram. A guerra vai ser longa. No Rio Grande do Sul ainda não chegou, porque existem muitas facções.