É metade da tarde de uma segunda-feira de julho. Abaixo de uma marquise, uma mulher sustenta uma barriga de oito meses de gravidez, com o olhar distante. Faz frio, ela está cansada e fraca. Mesmo assim, esboça um sorriso e diz que está bem, como o bebê que carrega. Sob o viaduto da Via Expressa, a BR-282, silencia quando perguntada sobre o motivo de estar ali. Não quer falar sobre o crack, cujo consumo é testemunhado frequentemente por quem passa pelo local, na parte Continental de Florianópolis, no limite com São José.

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– Já tive chance de largar várias vezes. Por falta de oportunidade não foi. Mas agora eu aceito ser internada – diz, entrelaçando as mãos encardidas, os dedos queimados, sob a barriga.

Por todos os lados, dezenas de adolescentes e adultos perambulam sem rumo. Estão entregues ao crack, debilitados, desesperançosos, levam a vida em busca do sustento do vício expostos à degradação humana. A mulher grávida vive no local com um companheiro, morador de rua.

– Os dois não fazem mal a ninguém, recebem ajuda por meio de doações. Mas é uma tristeza ver o pessoal entregue ao crack assim – conta um trabalhador de uma área próxima à cracolândia que se forma bem abaixo dos veículos que entram e saem da Capital.

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O aspecto de abandono é complementado pelo vaivém vidrado de pessoas que se acumulam no local. Um homem em uma cadeira de rodas e uma mulher que parece se recuperar de um acidente, com uma estrutura de ferro em uma das pernas, andam por ali, em meio a outros que se revezam ao lado de um muro, alternando alucinações. São os “noias”, como são chamados, popularmente, aqueles que apresentam o comportamento típico do viciado em crack.

Vez ou outra, segundo funcionários de empresas do bairro Campinas, que ficam nos arredores, o poder público faz limpezas no local. Transportam restos de lixo e varrem as ruas. Mas tentativas contra o consumo de drogas são menos frequentes e raramente têm resultados, principalmente por três motivos: a recusa dos dependentes em aceitar qualquer tratamento, o fato de eles constituírem um grupo flutuante, no qual é difícil identificar indivíduos, e a própria localização do ponto de consumo de drogas.

A cracolândia da Via Expressa fica próxima ao bairro Monte Cristo, palco de ao menos 13 assassinatos em 2017, tiroteios e conflitos entre facções rivais nas comunidades Chico Mendes e Novo Horizonte. É lá que muitos viciados buscam as pedras de crack que consomem às margens da rodovia a qualquer hora do dia ou da noite. Sem ter para onde ir, a maioria deles dorme abrigada com papelões ou velhos colchões e cobertores, entre o barulho dos carros da rodovia e o estampido dos tiros em comunidades próximas.

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“Vários morrem, o vício vai se agravando”

O comportamento não é primazia desta pequena faixa de estrada. Um estudo lançado neste mês pelo Instituto Comunitário da Grande Florianópolis (Icom) e pelo Movimento Nacional da População de Rua mostra que 88% dos moradores de rua consomem ou já consumiram algum tipo de droga. O crack aparece entre os mais usados, ao lado do álcool e da maconha. Junto, aparece a criminalidade: 60% da população de rua afirma já ter sofrido algum tipo de violência. Em Florianópolis, duas mulheres que viviam na rua foram assassinadas desde o ano passado, lamenta a policial civil Márcia Hendges, da Delegacia de Pessoas Desaparecidas. Há quatro anos ela atua em abordagens noturnas com equipes para identificar a população. O que a entristece é o futuro cruel à vista dessas pessoas, muitas vezes traçado pela morte.

– Vários morrem, o vício vai se agravando. É muito triste, mas cada um deveria fazer a sua parte – diz, em busca de ações de resgate de cidadania e dignidade.

O vício também leva a pequenos furtos e de roubos. Fios de cobre e ferro são itens procurados e revendidos no comércio em volta. Para policiais, um ingrediente a mais no ciclo da cracolândia.

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“O que a gente faz? Pega a pessoa à força?”

Há pelo menos 10 anos a realidade do crack se espalhou por vários pontos da Grande Florianópolis. A região central da Capital convive com cracolândias no entorno do túnel Antonieta de Barros e a Avenida Gustavo Richard. Mas na da Via Expressa a área está em uma espécie de linha divisória entre Florianópolis e São José, o que dificulta o atendimento – nem uma, nem outra prefeitura consegue dar o devido acompanhamento ao que acontece no local.

A secretária de Assistência Social de São José, Rose Bartucheski, admite as dificuldades. As abordagens devem melhorar nos próximos meses, quando a cidade deve começar a contar com o programa Consultório na Rua, em que equipes itinerantes prestam atendimento às populações em situação de vulnerabilidade.

– Estamos participando de reuniões com associações de moradores de bairros próximos. Também teremos um projeto de urbanização e melhoria da iluminação – afirma Rose.

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A Secretaria de Assistência Social de Florianópolis diz que trabalha com a Secretaria de Saúde para resolver o problema que, segundo a administração, “foi herdado já dessa maneira”. Por meio da assessoria de imprensa, a pasta informou que faz abordagens constantes na região e que aumentou o número de vagas para atendimentos a dependentes químicos e em abrigos e casas de passagem.

“Lançamos o Floripa Social com iniciativas voltadas às pessoas em situação de rua. Unimos a Abordagem Social com o Consultório de Rua para prestar um atendimento mais completo”, escreveu, em nota, a secretaria.

O promotor Daniel Paladino, que conduz uma força-tarefa de atendimento especializado a moradores de rua no Ministério Público de Santa Catarina, prometeu uma grande ação na região do viaduto entre as duas cidades. Para ele, o local é um dos mais vulneráveis atualmente à população de rua. A mobilização deverá ocorrer em agosto com equipes da assistência social, saúde e segurança.

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Paladino espera o envolvimento da prefeitura de São José, mas, segundo Rose, em muitas vezes, os próprios usuários não aceitam tratamentos. Seria o caso daquela grávida, que diz que agora aceitaria ser internada. A secretária afirma que a alternativa já foi oferecida e que ela poderá ser transferida ao CentroPop, onde é feita a assistência a quem está nesta situação. Mas, assim como outros viciados que se acumulam no local, a mulher teria relutado em abandonar o vício. Rose lamenta:

– Eu acho que é uma grávida que às vezes está em Coqueiros, às vezes em São José, perto do shopping. Já fizemos abordagem, perguntamos. Ela não quer, é consumidora de crack. O que a gente faz? Pega a pessoa à força?

ENTREVISTA: Aline Venturi, coordenadora de projetos do Icom

“As pessoas não têm acesso a políticas plenas de saúde”

Mestre em políticas públicas e coordenadora de projetos do Instituto Comunitário da Grande Florianópolis (Icom), Aline Venturi diz que faltam políticas à população de rua como no limite entre Florianópolis e São José.

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Qual a real situação no ponto entre Florianópolis e São José?

No nosso diagnóstico, essa área na Via Expressa foi uma das que visitamos. Há alguns anos é ocupada por moradores de rua e usuários de crack. Nem todos são usuários e nem todos estão em situação de rua, acontece um misto das duas coisas.

Há uma grávida que disse aceitar internação mas que não teve oportunidade. Isso a preocupa?

O que a nossa pesquisa procura identificar é se a rua é uma opção, não apenas necessidade ou vício. Naquele momento, as pessoas estão optando em estar na rua por alguma situação. Fazer ou não intervenção é de direito da pessoa, ela pode escolher se quer ou não. Temos trabalhado muito na ótica de ouvir a pessoa e não fazer a higienização, que é quando o poder público, a polícia, vai lá e quer fazer a limpeza da área. A gente não corrobora, não trabalhamos nessa ótica.

O diagnóstico cita que 88% dos moradores de rua já consumiram drogas (lícitas e ilícitas). É um número alto?

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O álcool geralmente é a droga de entrada da rua. Na pesquisa, mais de 90% das pessoas falaram que se tivessem oferta de serviços para durante o dia ou abrigo sairiam (da rua). Em São José, só temos duas casas de acolhimento.

O diagnóstico cita que moradores de rua são vítimas de violência. Como essa violência acontece?

Essa região é muito violenta. Tanto por parte da polícia, com violência institucional, como pela violência entre eles, por causa do tráfico, das brigas, das mortes.

Em relação à saúde, seria o caso de uma mobilização maior do poder público?

Sim, é o que temos trabalhado. O diagnóstico mostrou que as pessoas não têm acesso a políticas plenas de saúde. O Consultório na Rua só existe em Florianópolis e, provavelmente, no Centro. Em São José ainda não é instituído. Há dúvida se quem atende essa área (onde estão os usuários de crack) é São José ou Florianópolis e acaba não chegando nenhuma política ali.

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O fato de ser área de limite pode estar prejudicando o atendimento, o consultório na rua?

O ideal seria conversar com assistentes sociais dos municípios, mas São José ainda não tem essa política instituída, estava em andamento, fizeram pedido.

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