O processo de abolição da escravatura no Brasil foi lento. Manchados em nossa história existem mais de 300 anos de escravidão. Em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós, o primeiro e atrasado passo foi dado: o tráfico de escravos ao país foi proibido. Mas ainda havia de se esperar 38 anos para arrebentar, de vez, as correntes no solo brasileiro. A Lei Áurea foi assinada pela Princesa Isabel em 1888.

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Sem apoio de governos ou qualquer política de inclusão, negros procuraram sobreviver. Subiram os morros, criaram vilas e cortiços, preservaram cultura e religiões. Mesmo 128 anos depois da assinatura da libertação, a luta parece que não termina. Dona Uda Gonzaga, sábia moradora da comunidade do Monte Serrat, de Florianópolis, lançou o questionamento, escrevendo o ponto de interrogação em um papel: Até quando vamos falar de desigualdade racial? Segundo a lógica, se ainda precisamos, é porque não avançamos. Um cartaz no Centro de Educação Popular (Cedep) do bairro Monte Cristo, feito por crianças da comunidade, avisa o desejo: “Precisamos é de 365 Dias de Consciência Humana”.

O Dia da Consciência Negra, comemorado neste domingo, faz referência à morte de Zumbi dos Palmares. O Movimento Negro Unificado contra Discriminação Racial adotou Zumbi como símbolo de luta em 1978, depois de conhecida sua história. No século 16, ele não aceitou se submeter à autoridade da Coroa Portuguesa, não aceitou a opressão, não aceitou esquecer-se de sua cultura. Zumbi foi morto em 20 de novembro de 1695 por bandeirantes. A revolução que ele buscava há 321 anos não foi esquecida.

A subida ao morro

O historiador Walter Piazza, que foi professor da UFSC e que morreu em fevereiro deste ano, registrou em seu livro, “O Escravo numa economia minifundiária”, que Santa Catarina, em 1856, contava com mais de 18 mil escravos. A então Desterro, possivelmente, teria cerca de 3 mil.

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— Quando o regime de escravidão foi abolido, os negros que viviam em Desterro subiram os morros. A partir deste momento já se começaram as lutas por igualdade racial e social. É sabido que o Monte Serrat e o Mocotó são os dois pólos importantes ao movimento na Capital — explicou a coordenadora de Políticas Públicas para a Promoção de Igualdade Racial de Florianópolis (Coppir), Elizângela Ferreira.

Além de descendentes de escravos que foram expulsos de cortiços da região central de Florianópolis, negros vindos do Alto Biguaçu também se mudaram para a ilha, em busca de vida melhor, no início do século 20. Foi o caso das famílias Gonzaga, Veloso e Costa. Eles subiram o morro que ficava perto da Avenida Mauro Ramos, que já era uma importante via da área central da cidade. O morro possuía muitas bicas de água, o que ajudava no plantio e sobrevivência. Os “Gonzaga” eram pais de Maria da Costa Lourdes Gonzaga, a dona Uda, hoje com 78 anos.

— Eles me contavam que tinham visto pela primeira vez o mar e a ponte. Chegaram aqui de carrocinha, no começo da década de 30 — contou dona Uda.

A história desta mulher se confunde com o crescimento da comunidade, que é considerada uma das mais importantes na luta do movimento negro da Capital. O Monte Serrat, o antigo Morro da Caixa — em referência a primeira caixa de água instalada na cidade —, é, segundo moradores, a comunidade mais populosa do Maciço do Morro da Cruz. O IBGE não catalogou o número de moradores exatos da comunidade, pois os habitantes foram somados dentro da estatística do bairro Centro. Mas acredita-se que são cerca de 4 a 5 mil pessoas.

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Segundo outra antiga moradora e um dos símbolos do movimento negro do bairro, dona Darcy Vitória de Brito, 77 anos, 86% dos moradores da região são negros — apesar de não existir dados concretos no IBGE ou Prefeitura que confirmem.

Estas duas mulheres e suas lutas, com apoio da comunidade e de religiosos como o Padre Vilson Groh, fizeram a diferença e transformaram o Serrat.

Luta por educação

Orgulho. Orgulho, no sentido bom da palavra, é o que define dona Uda. Orgulho de ter nascido no Monte Serrat; de ser professora; das baianas da Embaixada Copa Lord; orgulho de suas pessoas; da rua calçada; da água tratada e do ônibus que passa pelo bairro. Orgulho das religiões do morro. Da violência que diminuiu.

O chão da terra, quando era criança, era vermelho, lembra-se dona Uda. Limpava os pés em uma torneira da rua. A escola da comunidade, inclusive, é tema central da conversa com dona Uda. Ela cita Antonieta de Barros como inspiração — professora e primeira mulher e primeira negra a ser deputada. Indaga: por que não estudamos sobre Antonieta na escola? Uma pergunta sem resposta.

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De aluna da então Escola Isolada da Caixa, passou para professora da Escola Lucia do Livramento Mayvorne, e chegou à diretora. No morro, até hoje, quando dona Uda anda pela rua, algum carro para e dali sai um: “Bom dia, professora. Como a senhora está?”.

— Eu sempre digo aos jovens, principalmente aos negros: estudem. O estudo vai te levar onde quiser. A minha mãe não conseguiu estudar. Eles deixaram isso para mim. Educação é tudo na vida. Hoje tem gente do morro que é advogado, médico. É uma satisfação — contou Uda.

Em 2011, o medo de a escola ser fechada fez a população protestar. Foi a comunidade, junto do padre Vilson Groh, explicou dona Uda, que conseguiu a parceria com os Irmãos Marista, que assumiram o colégio e sua reforma em 2012. A escola agora é integral e tira muitas crianças da rua, coisa que enche os olhos da simpática senhorinha do Serrat.

Da educação, dona Uda também é figura icônica do carnaval. Uma das principais representantes da Embaixada Copa Lord, escola de samba que nasceu no morro, tem um carinho especial pelas baianas. Segundo ela, não tem como não falar em Monte Serrat e não citar a Copa Lord.

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— Foi num mutirão com os moradores e a Copa Lord que arrumamos a rua. Com enxada e pá na mão brigamos pelo calçamento do morro — disse ela.

Para uma linha de ônibus subir ao Monte Serrat, também foi preciso brigar: com político, prefeitura, empresa. O direito de ir e vir só foi conquistado em 1993. Enquanto ela fazia a foto desta reportagem, na semana passada, o ônibus passou pela rua.

— Que coisa maravilhosa este ônibus passando aqui — disse. Mais uma vez, orgulho definia a expressão de Uda.

A violência no morro, no entanto, é um assunto que a abala. Entre a década de 80 e 90, com a potencialização do tráfico, muitas mortes ocorreram no Monte Serrat.

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— Tinha muito pai enterrando filho. Não era a lógica certa — observou.

Para ela, a religião, movimentos sociais e o surgimento de ONGs ajudaram a mudar este cenário.

— Uma família aprendeu a cuidar da outra de novo. Graças a Deus.

Sangue negro

Dona Darcy de Brito também nasceu no Monte Serrat. Seu pai era filho de um africano com português, e sua mãe de italiano com índio.

— Mas o sangue negro prevalece — avisou.Sua família veio de Barracão de Brusque, localidade do Vale do Itajaí. Também subiu o então Morro da Caixa em busca de uma vida melhor. Nas bicas de água espalhadas pelo local, sua mãe e ela se fizeram lavadeiras.

— A gente lavava roupas e passávamos com ferro de carvão — observou.

Quando criança, Darcy descia o morro para estudar, na antiga escola Lauro Müller. Para o negro estudar naquela época, contou, era difícil. Muitos deixavam a escola por conta do preconceito racial e social. Achar trabalho depois do “asfalto” então, ainda mais penoso. O que tinham era o que muitos chamavam de “subemprego”.

— Quem não era lavadeira, era empregada doméstica. Os empregos que tinham para os negros eram de pedreiro, pintor, carregador. Carregavam as malas de turistas que chegavam de navio — lembrou dona Darcy.

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Em 1967 formou-se professora. Como lição aos alunos deixou o empoderamento. Orgulho da cor, de se mostrar como é, de sua religião — haviam muitos umbandistas no morro e os rituais eram escondidos por conta do preconceito.

— O caminho é estudar. A capacidade é a mesma. Só precisamos de mais oportunidades. Ainda há dificuldade para o negro arranjar emprego. A escravidão nem parece estar tão longe assim — lamentou Darcy.

Com a forte onda de violência que também foi comentada por Uda, dona Darcy e membros da comunidade fundaram, em 1998, a ONG Escrava Anastácia no Monte Serrat. O projeto funcionava como contraturno escolar — as crianças estudavam de manhã e de tarde ficavam no projeto. O objetivo era tirar os pequenos e adolescentes das ruas e evitar o caminho das drogas e tráfico. Os voluntários ajudavam no processo de alfabetização das crianças e do empoderamento negro.

— Tiramos muitas crianças da rua e conduzíamos adolescentes ao primeiro emprego. Ainda tinha muita rejeição por serem jovens negros e do morro — conta Darcy. Mas eles não desistiram.

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Hoje, o projeto cresceu e passou a atuar no Estreito. No Serrat, há casas de acolhimento para crianças em situação de vulnerabilidade e um abrigo para moradores de rua.

Os sonhos

Tudo o que o Monte Serrat é hoje, precisou ser conquistado. Foi esta a conclusão da conversa com dona Uda e Darcy. Se não houvesse luta, não seria o Monte Serrat, como contou dona Darcy, a primeira localidade a receber um posto de saúde em Florianópolis. Se as principais ruas de acesso, General Vieira da Rosa e General Nestor Passos, não tivessem sido fechadas por protestantes, elas não teriam recebido melhorias por parte da prefeitura. A escola, que educou centenas de crianças da comunidade, poderia estar fechada.

— Estão fechando as escolas em todos os bairros. Fechou a Celso Ramos, Antonieta de Barros. Onde estão estes adolescentes? — indaga dona Darcy. Este destino não foi aceito no Monte Serrat.

Melhorar, ainda é preciso. A igualdade racial e a relação entre morro e asfalto, ainda não estão nem perto do ideal, avalia Darcy. Direitos foram conquistados, mas o medo de perdê-los é frequente.

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— Há tanta discussão com o corte de gastos. As cotas em universidades, por exemplo. Se retirarem as cotas, não vai haver igualdade. Porque não há igualdade na educação. Quem está entrando em universidade é quem tem dinheiro — avaliou Darcy de Brito.

Uma universidade, inclusive, é o sonho de dona Uda. Ela que nasceu, estudou, cresceu e trabalhou no morro, diz que não quer morrer antes de ver uma universidade no Monte Serrat.

— Dizem que todos tem uma missão. Acho que minha missão é essa. Quero ver uma universidade aqui para o nosso povo — disse, confiante que o desejo dará certo.

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