Ferrenho fiscalizador do papel do Estado, especialmente em Joinville, onde cuida da execução penal de 5 mil processos, o juiz João Marcos Buch, 45 anos, ganha destaque em decisões que evidenciam o lado humano. Foi assim ao liberar uma detenta com HIV na fase terminal para visitar o filho.
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Com uma rotina diária de até 12 horas de trabalho, ele recebeu a reportagem em seu gabinete. O juiz afirma estar preocupado com o crescimento do Estado paralelo das facções criminosas.
O governador Raimundo Colombo admitiu que o Primeiro Comando da Capital (PCC, facção criminosa de São Paulo) tenta se instalar em Santa Catarina. Qual a sua percepção?
João Marcos Buch – Hoje, enfrentamos essa dificuldade com o PCC, que está vindo para SC por meio do envio de pessoas para o Estado, para que cometam crimes e entrem no sistema, porque o PCC pretende conquistar território. Em SP, por incrível que pareça, a partir do momento em que o PCC passou a comandar o sistema prisional, o número de homicídios dentro do sistema diminuiu, inclusive em São Paulo houve redução de homicídios porque as pessoas prestavam contas ao PCC. É uma contradição muito grave. A facção se arvora em um grupo político agora defendendo o cumprimento da execução penal, quando na verdade quem deveria defender isso é o Estado para enfraquecer a facção criminosa.
Há como trabalhar o crime organizado com medidas preventivas?
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Buch – Não sou especialista em crime organizado, mas existem pessoas especializadas que apontam medidas concretas de como diminuir o poder das facções. A longo prazo, com a presença do Estado, a diminuição das superlotações. A curto prazo, uma triagem, pois o primário não pode ficar junto do reincidente para não entrar nesse jogo.
Qual é o perigo com o PCC chegando a Santa Catarina?
Buch – Chegar ao ponto em que o Estado não consiga mais ter o controle do sistema prisional.
É possível a recuperação de criminosos?
Buch – Totalmente, vejo isso o tempo todo. A penitenciária de Joinville tem 640 detentos. Aí se diz assim: “Mas a penitenciária só aceita preso bonzinho”. Negativo. Tem gente ali condenada a 80, 90, 100 anos de prisão, pessoas perigosas. Porém, em todo o sistema, você retirando esse percentual de 10% – eu diria empiricamente – do universo do sistema prisional, que são pessoas com perversão ou psicopatia ou que não têm mais nada a perder, o restante da massa carcerária, com oportunidade de educação, qualificação para o trabalho e perspectiva de que conseguirá manter a família por meio do trabalho, isso vai acontecer. A penitenciária prova isso, onde o índice de reincidência é de 15% e a média de reincidência é de 60% a 80% no sistema prisional. Se você entra no sistema e não tem condições de ter um sabonete, de receber visita, vive massificado numa superlotação, tem de se proteger, tem de se unir. Aí vai se unir a uma facção.
Há alguma diferença entre os tipos de crime para essa recuperação?
Buch – Colocaria a única distinção nos crimes contra a dignidade sexual. Fogem da regra do que leva uma pessoa à prisão. O tratamento é diferenciado. A ciência tinha que tentar avaliar isto.
O senhor proibiu em Joinville a revista íntima. Agora, a OAB nacional reforçou. Ao mesmo tempo, o Departamento de Administração Prisional (Deap) diz ser útil para evitar a entrada de armas e drogas. Como agir?
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Buch – Com eficiência. Existem escâneres corporais. Tomei conhecimento que, em razão das pressões populares, da OAB, da Justiça, dos organismos de direitos humanos, o Estado alugou. Aí questiono a locação porque entendo que deveria ser aquisição, mas finalmente o Estado, por licitação, locou escâneres corporais.
É mesmo uma humilhação a revista íntima?
Buch – É humilhante não só para a visita, mas para quem faz. Imagine um funcionário trabalhar todos os dias nessa situação vexatória, revistando pessoas que têm de se despir. Alguns Estados já vetaram isso, como em Goiás. Em São Paulo há lei, estão tendo que aplicá-la. A partir do momento em que o escâner for usado, vamos perceber que os celulares continuam entrando, eventuais armas e drogas também. Aí, vamos ter que cortar na própria carne para ver o que está fazendo entrar.
Não são somente familiares que levam?
Buch – Não posso generalizar. Conheço os agentes penitenciários, conheço pessoas que trabalham com honestidade. A maioria são pessoas que acordam de manhã querendo fazer o seu trabalho certo. Mas em todas as áreas, no Judiciário, no Legislativo, no Executivo, existem pessoas que não agem de acordo com a lei.
A criminalidade está crescendo na sua avaliação?
Buch – A violência está crescendo, os encarceramentos estão crescendo mais. Eram 250 mil há 12 anos, hoje são 600 mil. Pode chegar a 1 milhão em 2020. Fora os foragidos e os que estão em regime aberto. O que vejo na sociedade é uma insatisfação muito grande, mas qual é o caminho? É isso o que as pessoas precisam compreender. Defendo um direito penal mínimo, que a pena seja para aquelas pessoas que colocam em risco a vida de outras pessoas.
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O que é mito e fato na proporção dos menores em crimes?
Buch – Diria, empiricamente, que a participação em roubos contra a pessoa era grande, 15% a 20% (na época em que era titular da 2a Vara Criminal de Joinville). Mas existem dados que apontam 2% a 3%. Esta é outra questão: estão discutindo a redução da maioridade penal sem dados concretos. Isso é uma leviandade.
Qual seria o cenário das cadeias se precisassem observar os jovens de 16 e 17 anos?
Buch – Um caos. O presídio (de Joinville) é superlotado, ainda existem pessoas dormindo em colchões no chão. Não existem celas individuais. Tive a oportunidade de conhecer uma penitenciária na França de segurança máxima. São celas individuais. Eles evitam que exista uma massificação. Eu não sei até que ponto eu permaneceria na execução penal se me visse obrigado a executar pena de um jovem de 16 anos onde hoje eu vejo que as pessoas cumprem pena. Seria um retrocesso histórico humano, internacional, terrível.
Entre as polícias, é enorme a quantidade de pessoas que defendem a redução.
Buch – Compreendo porque o policial sai para a rua numa situação grave, temerário da vida dele e das pessoas, fazendo seu trabalho e vendo que o trabalho dele não está surtindo efeito. Então, ele acredita que, com a prisão, vai surtir efeito. E não vai. Porque as prisões têm aumentado e a violência não tem diminuído.
Dados da Secretaria da Justiça e Cidadania apontam que 57% dos presos trabalham. O senhor reconhece que houve um avanço?
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Buch – Não é verdade, não tem (57% dos presos trabalhando). Talvez sejam dados que aproveitem presos que trabalham ilegalmente, sem remuneração. São empresas que aproveitam a mão de obra e pagam por produtividade, quando, na realidade, o convênio tem de ser com o Estado, o repasse tem de ser para o Estado, e o Estado tem de fazer o pagamento retendo 25% para o investimento na infraestrutura da unidade prisional. Quando vou no presídio, o primeiro pedido deles é poderem ser transferidos para a penitenciária para poderem trabalhar. E, mesmo na penitenciária, não há possibilidade de que todos trabalhem. Sou absolutamente a favor do trabalho como fator de resgate da dignidade, ao lado da educação, do atendimento à saúde.
E os excessos fora da cadeias, por parte da polícia, os confrontos com mortes?
Buch – Me preocupo muito com isso. Entendo que a polícia, a militar especialmente, é aquela que nos protege. O primeiro número que discamos é o 190 porque queremos proteção. Mas a polícia tem de ir para as ruas sem a ótica de guerra. Já ouvi governador falar que a Polícia Militar está em guerra, sai para as ruas em guerra contra o tráfico, contra a criminalidade. Não é isso. Numa guerra, quem morre são inocentes. A polícia tem de ir às ruas proteger a todos e usar dos meios necessários para conter a violência, nada mais, agir de acordo com a lei.
Os homicídios em Joinville podem bater outro recorde até o final do ano. Como estancar os altos índices, sendo que aumentaram também em outras grandes cidades, como Chapecó e Criciúma?
Buch – Em Joinville, o que se indica é que existem algumas facções disputando territórios. Não seria PGC, PCC. Talvez estejam por aí, mas não há claramente isso. Não existe solução a curto prazo. Essas forças-tarefas, não sou simpático a elas, porque vêm, acontecem e, quando retornam, tudo volta a ser como era antes. O que precisa é o investimento em recursos humanos da polícia judiciária. A Polícia Civil precisa investigar, chegar nos comandos dessa cadeia criminosa.
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O senhor expõe opiniões em debates, redes sociais, artigos de jornal. Há resistência dos demais magistrados?
Buch — Não. Talvez já tenha existido, mas hoje existe um indicativo do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal de que o Judiciário precisa se mostrar, abrir suas portas, mostrar o trabalho que tem sido feito. E, se precisar emitir opinião dentro da ética, que emita essa opinião.
Isto vale também para sua postura crítica ao governo do Estado?
Buch – Procuro ter o cuidado de não ser leviano nas coisas que digo e nem ser desrespeitoso. Quando digo que a Secretaria de Justiça e Cidadania não dá a atenção necessária para a questão do PCC, não estou desrespeitando a secretária. Quando digo que a secretária de Justiça, Ada de Luca, tem dificuldades técnicas e de capacidade para gerir uma pasta tão importante, não estou desrespeitando a pessoa da deputada Ada de Luca, estou dizendo que, naquele cargo, ela não seria a pessoa mais adequada a estar.
O senhor lançará um novo livro em agosto: “Crônicas, Relatos e Vivências”. O senhor utiliza sua vida pessoal nas decisões?
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Buch – Não existe como um juiz desvincular sua vida das decisões que toma. Não conscientemente, mas eu tenho certeza de que, inconscientemente, julgo muitas coisas conforme as experiências que vivi, as felicidades e traumas que tive. O juiz, conforme foram suas experiências, vão ser suas decisões. Por isso, o juiz precisa se policiar o tempo todo porque, senão, será um livre-arbítrio.