Minhas pernas ficaram para trás. Fui o último a atravessar o vão entre as duas salas. As crianças da outra colônia, lá da comunidade luterana, atravessaram numa corrida e pegaram os lugares mais à frente, fazendo par entre si nas melhores carteiras, numa algazarra satisfeita da sua esperteza. Os meninos e meninas da minha vizinhança, num jogo de empurra-empurra, mesmo os católicos e de menor idade, foram num pinote, formando duplas à borda das janelas. Os alunos mais velhos, remanescentes da turma antiga, alguns já com chapéu de feltro e montaria esperando na soga, pois tinham o luxo de ir à escola a cavalo, ocupavam os lugares ao fundo, donde dispunham de uma visão panorâmica da sala, feito Napoleões sobre a colina.
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A professora, lá na frente, observava com gosto e silêncio ao enturmamento espontâneo da nova classe. A ocupação do espaço sempre se dava das bordas para o meio. Como uma fagocitose. Ninguém gostava de ficar no centro. A escolinha rural da Coxia era uma construção de madeira, com uma sala de cada lado do vão coberto para o recreio. Ficava entre as duas igrejas, a luterana e a católica.Uma turma abrigava alunos do primeiro e segundo anos e a outra, os do terceiro e quarto ano. A mesma professora dava conta das duas, e ainda conseguia aquecer o mingau da merenda no fogão a lenha da cozinha.
Naquela manhã fizemos a transição para o lado mais avançado da escola. Talvez por isso as crianças gritassem e corressem e pulassem em tanta plenitude, era seu ritual de passagem. Fui o último a atravessar. Da soleira, medi a professora que sorria ao meu encontro. A sala estava superlotada por cabecinhas loiras, muitas carteiras com três crianças, todas elas voltavam para mim seus grandes olhos azuis, inclusive a Lore, a garota quem dedicava em segredo o rubor de minhas faces. Havia um menino negro no centro da sala e o lugar a seu lado estava vazio, corri para lá e a sala inteira riu de mim. Ele me recebeu sem entusiasmo. Acuado, eu deveria pegar os meus cadernos e dar o fora dali. Em vez disso, baixei os olhos e fiquei a admirar as botinas de meu novo colega.
O Negrinho foi o melhor companheiro que eu poderia ter. Sabia tabuadas, conhecia o alfabeto de cor, as sete notas musicais, as cores do arco-íris e lia sem soletrar. Somente muito mais tarde vim a compreender porque ninguém mais conversava com ele, nem o escolhiam, mesmo com seu muito saber, para os trabalhos em grupo.
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