Há um ano, o carioca Marcelo Kós Silveira Campos foi designado pelo governo brasileiro para chefiar a divisão que coordena as equipes de inspetores de armas químicas no período 2012-2015. Sob sua supervisão estão 22 pessoas que estão neste momento na mais arriscada missão da organização: a localização e destruição do arsenal químico do regime sírio, que aceitou aderir à convenção da Opaq para não ser bombardeado pelos Estados Unidos.
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De Haia, Campos conversou por telefone com Zero Hora e disse que não esperava a premiação. Leia trechos da entrevista:
Zero Hora – O prêmio é um incentivo para o trabalho na Síria?
Marcelo Kós Silveira Campos – É um incentivo para continuar o trabalho. Nos dá orgulho e mais reponsabilidade. Até bem pouco tempo atrás, éramos desconhecidos do grande público. A convenção tem praticamente 20 anos, entrou em vigor em 1997 e, com isso, começou a funcionar a organização. Muitas pessoas estão atribuindo este prêmio à Síria. Foi um fator que contribuiu, mas não foi pela ação na Síria, foi pelos 16 anos de trabalho.
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ZH – Que atuações o senhor acredita que pesaram mais na decisão do Nobel?
Campos – Acho que é o conjunto da obra. Sempre chama mais atenção das pessoas os momentos de crise. Houve crises muito sérias no Iraque, na Líbia e agora na Síria. A Líbia ainda está destruindo e termina a destruição no final deste ano. Então, como foi dito pela comissão do Prêmio Nobel, foi o conjunto da obra. A Opaq se dedica há muitos anos, até então sem alarde, a ajudar os países a destruir as armas químicas. Conseguimos com isso eliminar 80% ou mais dos arsenais no mundo. Olhando, depois desses anos, foi muita coisa. Agora, o que chama atenção são as crises, e a Síria foi um fator determinante, mas não foi o único, com certeza que não.
ZH – Como está o trabalho dos inspetores?
Campos – Começamos o trabalho há 13 ou 14 dias. Havíamos recebido o que se chamou abertura de informações por parte da Síria, que nos mandou um documento preliminar com informações das armas que dispunha e onde estavam. Primeiro, ajudamos a esclarecer algumas dúvidas que existiam, e o documento foi melhorado. Agora, estamos indo a campo em diferentes lugares mencionados no documento para averiguar se o que declararam no papel corresponde à realidade. É a fase da conferência do arsenal. Até novembro, temos de acompanhar a destruição das fábricas que o governo sírio declarou ter. E, no ano que vem, sim, começa a fase de destruição dos arsenais, que deve ser concluída até o final de junho. Em três locais que estivemos, já verificamos que o que eles declararam estava mesmo lá. O procedimento é identificar e fechar os locais. Estamos indo apenas aos locais indicados. Também já foi feito um trabalho de destruição de alguns equipamentos.
ZH- O que foi encontrado na Síria até agora?
Campos – Eles declararam mil toneladas de diferentes armas químicas, mas os nossos relatórios são sigilosos, inclusive para a ONU (A CIA estima que a Síria possua até mil toneladas de gás mostarda e sarin. Suspeita-se que o país também produza o gás VX, muito mais tóxico).
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ZH – Quais as condições de trabalho para as equipes?
Campos – É muito arriscado. O ambiente é de guerra civil. Na primeira inspeção, a menos de um quilômetro, havia canhões do governo disparando, em atividade militar. A Opaq nunca havia experimentado uma situação dessas antes
Estamos tentando trabalhar o mais rápido possível. A cada dia, muda a situação dos combates. Os locais de inspeção são controlados pelo governo, mas há riscos nas estradas, nas vias de acesso que levam as equipes até onde estão os locais. As estradas muitas vezes não estão em poder do governo. É obrigação do governo fazer a segurança das equipes e as Nações Unidas fazem a segurança adicional, mas há riscos de ataques e combates com os grupos rebeldes.
ZH – O comportamento do governo leva a crer que o regime irá aderir e cumprir a Convenção?
Campos – No dia 14, eles oficialmente serão um estado parte da Convenção. Não posso fazer conjectura sobre o futuro, mas, até agora, eles têm sido exemplares em termos do cumprimento daquilo que teriam de fazer. O governo sírio tem sido muito cooperativo, e a gente imagina que eles vão continuar a ser.
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ZH – Qual é o arsenal químico no Oriente Médio?
Campos – No Oriente Médio, o problema é mais agudo porque temos seis países que ainda não aderiram à convenção. Angola, Mianmar, Sudão do Sul, Coreia do Norte, Egito e Israel. E a Síria agora vai passar a ser parte. Isso significa que o Oriente Médio tem armas químicas como um fator de equilíbrio de poder. Agora, com a entrada da Síria, pedimos que todos os países passem a ser parte. Há um esforço diplomático para atrair os países que não são membros. Dois deles foram contatados, Mianmar e Angola, e já foram feitas visitas, mas é um processo demorado. Isso não quer dizer que todos os países que não são membros tenham armas químicas. Não sabemos. Entre os membros que ainda têm arsenais estão EUA, Rússia, Líbia e Iraque, que estão em processo de destruição do restante de seus arsenais, é uma questão de alguns anos para que isso ocorra. Na Síria, será um processo rápido de destruição.
ZH – O que causam as armas químicas. O senhor pode descrever como morreram as pessoas no massacre de 21 de agosto que matou 1,4 mil pessoas nos subúrbios de Damasco?
Campos – O efeito da arma química, do gás sarin, é sobre as ligações nervosas no nosso corpo. O gás sarin que foi usado desativa enzimas que fazem a transmissão dos pulsos nervosos. Então, ao desativar essas enzimas, fazem com que o cérebro só mande para os músculos a mensagem de se retesar todo. É como se você fizesse força para fechar a mão e não tivesse o controle para mandar abrir. Então, você se fecha, não se consegue respirar. É uma morte muito dolorosa. As pessoas morrem asfixiadas pelos próprios líquidos internos.
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ZH – Como são as fábricas de produção dessas substâncias?
Campos – As fábricas declaradas são fábricas pequenas. Ficam espalhadas em alguns lugares no país, principalmente na região de Damasco e, mais ao norte, na cidade Homs.
ZH – Quais os riscos de essas armas caírem em mãos de grupos terroristas?
Campos – Infelizmente, esse é um risco real. A organização não tem mandato para trabalhar assuntos com terrorismo, mas existe dentro da organização grupos formados por países só para discutir armas químicas e terrorismo. Se os terroristas podem fazer armas químicas? Infelizmente, sim, por isso que boa parte do Opaq tem é controlar as fábricas que produzam substâncias que possam ser transformadas em armas químicas. Se as armas já caíram em mãos de terroristas, não sabemos.