Com problemas de privacidade em aberto e alguns casos polêmicos registrados, como o do policial agredido por um homem em Jaraguá do Sul ou a truculenta abordagem com uma mulher em Mafra, o uso das câmeras corporais pela Polícia Militar de Santa Catarina completa um ano este mês. Ao mesmo tempo, o projeto que começou no Estado começa a ser implementado também em São Paulo, com diferenças criticadas por especialistas.
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A avaliação do primeiro ano de câmeras corporais na Polícia Militar catarinense é positiva, segundo o Instituto Igarapé – que fez um estudo científico em parceria com a Universidade de Warwick, no Reino Unido, para avaliar os resultados da tecnologia na segurança pública e nas relações entre policiais e a comunidade em Santa Catarina. A pesquisa ainda não foi publicada, mas as primeiras avaliações mostram um impacto favorável no policiamento do dia a dia, especialmente nas ocorrências de baixo ou médio potencial ofensivo.
– Houve redução nas situações de desacato e do uso de algemas e prisões, além de aumento do número de incidentes reportados, em especial nos casos de violência doméstica – aponta Bárbara Fernandes, diretora de tecnologia do instituto focado em segurança pública.
Conforme a especialista, os estudos comprovam que as câmeras aumentam a transparência e a fiscalização sobre a polícia, ao prevenir a corrupção e o uso excessivo de força, além de resguardar os policiais de falsas acusações.
– Analisando os resultados do estudo realizado em Santa Catarina, identificamos que o uso de câmeras ajudou a desescalar a tensão e trouxe uma melhora na interação entre a polícia e as comunidades – afirma.
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Diferenças do modelo de São Paulo
O projeto que começou a ser efetivado em São Paulo tem uma base muito parecida com o de Santa Catarina, e ao longo de 2019 houve uma forte troca de informações entre as PMs, especialmente em relação aos aspectos técnicos do projeto (modelos de câmera, protocolos, ofícios, etc). No entanto, um ponto importante marca a grande diferença no uso das câmeras: o acionamento.
Em Santa Catarina, por padrão, a câmera individual do policial começa a filmar automaticamente quando ele é chamado para a ocorrência. O sistema é integrado com PMSC Mobile, programa usado nos tablets equipados em todas as viaturas, e aciona a câmera no momento em que o agente recebe a ocorrência no tablet. Já no modelo paulista, o próprio policial terá a responsabilidade de ligar e desligar a câmera durante as ações.
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Para Bárbara Fernandes, o acionamento manual das câmeras requer a elaboração de novas rotinas de gestão na polícia:
– Por não ter como garantir um padrão, o uso das imagens para evidências ou como material de treinamentos pode não ter a qualidade e contexto devido ao momento em que as gravações foram iniciadas ou interrompidas. Em qualquer abordagem é fundamental garantir que os vídeos não possam ser adulterados ou manipulados.
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Mas se o acionamento automático usado em SC é mais moderno e seguro, Fernandes aponta também uma questão que se tornou um problema para o comando da PMSC: a privacidade dos policiais. Com a câmera ligando automaticamente com o recebimento da ocorrência, independentemente da localização do policial, as gravações podiam começar com o agente no meio de uma refeição ou no banheiro, e tudo isso era filmado – além de longos percursos dentro da viatura que não serviam para as análises e apenas ocupavam espaço de armazenamento nos servidores.
Conforme o coronel Luciano Walfredo Pinho, chefe do Estado-Maior-Geral da PMSC, esse ponto da privacidade motivou um debate dentro da PM sobre o funcionamento das câmeras. Um grupo de trabalho começou a discutir o tema em dezembro do ano passado e, temporariamente, as câmeras passaram para o acionamento manual (como São Paulo). No entanto, em maio deste ano a Justiça pediu que a corporação voltasse a usar o método automático, e a mudança ocorreu no começo de julho. Agora, a PM prepara uma proposta para que o acionamento da câmera ocorra quando o policial chegar no raio de um quilômetro do local da ocorrência.
– A ideia é que a câmera vai ligar quando o policial chegar perto da ocorrência. Assim evita filmar cenas desnecessárias e trajetos dentro da viatura que não eram úteis. Em um ano com as câmeras, já temos o equivalente a quase 500 dias de filmagens desnecessárias. Esse é um ponto que temos no caminho para melhorar o modelo – avalia o coronel.
Mais de 2 mil câmeras em SC
O projeto em SC foi aprovado em maio de 2018 e executado em 2019, com as câmeras entregues entre o fim de julho e o início de agosto do ano passado. Foi o primeiro estado do Brasil a implementar as câmeras corporais e, um ano depois, o projeto começa a ganhar as ruas de São Paulo após uma extensa troca de informações com os catarinenses.
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Atualmente a PMSC tem 1940 câmeras em funcionamento e mais cerca de 500 de reserva, o que cobre todos os 295 municípios catarinenses. Conforme a corporação, cada quartel no Estado tem no mínimo uma doca (nome dos servidores onde as imagens são descarregadas) e a distribuição das câmeras é feita para que cada patrulha tenha ao menos um policial com câmera no turno. O planejamento é de que em cada viatura nas ruas um policial precisa estar com a câmera no uniforme.
O coronel Pinho explica que todas as abordagens policiais são gravadas e as imagens ficam salvas e criptografadas nas docas. O comandante de cada batalhão tem acesso aos arquivos e pode usá-los para análise do serviço, treinamentos, capacitação e processos da Corregedoria. As imagens ficam também à disposição de demandas da Justiça e da Polícia Civil, em casos que viram alvo de investigação.
– Nossos objetivos são bem pontuais. Primeiro: proteger o policial de falsas acusações. Isso acontecia bastante. Segundo: dissuadir as atitudes de desrespeito. desacato, agressão verbal e física contra o PM. Isso estava virando algo comum e obrigando o uso da força. Terceiro: demonstrar as origens e justificativas do uso da força. Até então a análise ficava na palavra do policial, agora as imagens vêm para fortalecer o posicionamento. Depois disso, avaliar o comportamento do policial para fins de treinamento, E também, o que é muito útil, para qualificar a investigação dos casos de abuso. Os casos de comportamento inadequado, protocolo não empregado, sobretudo os casos de violência policial, os exageros – explica o coronel.