É em uma pequena igreja de tijolinhos à vista, rodeada de mata ao som do canto dos pássaros, que quem procura um dos únicos padres exorcistas de Santa Catarina pode encontrá-lo. O cenário do local em nada parece com o ambiente apresentado em filmes de terror que abordam o famoso ritual. Os quartos escuros do cinema são substituídos pela simpática igrejinha permeada de janelas, que não deixam a escuridão entrar. Lá dentro, vestido de branco, o padre Carlos Afonso Gonçalves de Sousa recebe seus visitantes e expulsa demônios.

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Para chegar ao endereço, em São João do Itaperiú, são alguns minutos viajando por uma estrada de terra que parece chegar a lugar nenhum. Em alguns momentos, o viajante pode até se perguntar se pegou o caminho errado, mas logo se depara com placas espalhadas pela rua que indicam “Eremitério Diocesano Santa Maria Dos Anjos”, acima de uma seta que mostra para onde seguir.

Em um terreno doado por uma família da região, foi construída uma pequena casa de madeira, onde dorme o padre Carlos. Ao lado, fica a igreja que recebe visitantes, cultos e exorcismos. Não há vizinhos, apenas pássaros e muitos insetos presentes por conta da mata e dos pés de banana que circundam a propriedade. 

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Padre Carlos vive ali desde 2010, quando começaram as obras do Eremitério. Por ser eremita, o sacerdote passa a maior parte do tempo sozinho, exceto quando recebe fiéis, auxiliares, pessoas em busca de conselhos ou, ainda, a visita de demônios, que passaram a frequentar o lugar desde que padre Carlos se tornou exorcista.

— O diabo vem aqui desde 2022, quando eu comecei. Ele entra e sai calado. Um dia, com uma jovem de 14 anos aqui, possessa, eu mandei ele calar a boca. Aí, desde então, quando a possessão muda, eu sei que é ele. A gente sabe e sente a energia também. A energia é a pior que tem — conta padre Carlos depois de fazer uma oração. Como o tópico da conversa pode ser espiritualmente sensível, é importante entoar uma reza para a proteção dos presentes.

Ainda que seja necessário se manter protegido, o padre destaca que a atividade é um dom, dado para pessoas com um espírito muito forte, iluminado e de oração. É por isso que não se pode se autodenominar exorcista, é necessário ser escolhido por Deus e nomeado pelo bispo — como ele foi, por Dom Francisco Carlos Bach. E quem conta isso não é somente o Padre Carlos, mas o certificado que o autoriza a realizar as cerimônias.

— O bispo escolhe, não somos nós. Eu nunca imaginei, nunca que eu ia pedir um negócio desses, ‘né?’. Fazer um trabalho desse. A minha vida é um absurdo porque, eu nunca pensei, nem imaginei ser padre — diz rindo.

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E de fato, ele não só não imaginava, como viveu praticamente metade da vida sem ser um. Nascido no Acre, Carlos conta com amor sobre o lugar de onde veio, a diversidade cultural e culinária, a presença indígena. Também lembra das noites de festas, das antigas namoradas e de como levou uma “verdadeira vida de solteiro”.

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Foi somente aos 30 anos que recebeu “o chamado” e iniciou o seminário, já em Joinville. Carlos veio viver na outra ponta do país para acompanhar a família, que veio de mudança para Santa Catarina após a irmã ser aprovada em uma universidade do Sul. Carlos pousou em Joinville, onde cursou pedagogia e terapia ocupacional tendo, mais tarde, tornado-se padre, eremita e, finalmente, exorcista.

Agora, ao olhar para toda a sua caminhada de 59 anos, Carlos percebe que, desde a infância, seu dom já se manifestava. 

— Hoje eu entendo bem o que é que acontece comigo. A gente chama de abertura, que hoje a gente sabe onde está, é aqui na nuca — diz apontando para a parte de trás do pescoço.

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Em pé, ele se posiciona ao lado de uma das janelas da igrejinha. Didático, ele usa o vai e vem do vidro para representar a tal abertura. 

— É o buraco por onde entra toda a comunicação espiritual, do que não está entre nós — explica com a janela fechada. Em seguida, ele a abre — e tem pessoas que nascem com uma abertura muito grande. Estes, são os possessos, que entram em possessão — demonstra. 

Padre Carlos usa a janela para falar sobre a abertura espiritual de algumas pessoas, que ficam mais vulneráveis à possessão, conforme o padre (Foto: Carlos Junior, A Notícia)

Padre Carlos acredita que já tinha essa abertura na infância, mas como o medo tomava conta, não percebia o dom de expulsar os espíritos malignos. 

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— Eu tive muito medo já. Filme de terror, eu não assisto, fico impressionado. Porém, como padre e rezando os terços nas casas, que me pediram para eu ir, já fazia exorcismos. Depois das visitas, as pessoas faziam as pazes, casais voltavam às boas, a casa ficava em paz, a vida financeira melhorava. Só com o terço e orações de São Bento. […] Mas assim, eu tinha medo, ‘né’? E aí está outro absurdo, um padre que tinha medo do demônio. E hoje perdi totalmente o medo, é impressionante — afirma animado com o feito.

Foi com relatos do tipo que acabou nomeado padre exorcista. Assim, foi necessário perder o medo, tanto para realizar os serviços para os quais foi nomeado quanto para expulsar eventuais visitantes indesejados na igreja, que às vezes insistem em aparecer.

 — Aqui no Eremitério, ultimamente está bem pouco, mas já tiveram situações aqui, que teve morcego e não era, era demônio voando. Tinha um bloco aqui que era outro demônio. Eu dormia ali na capela, no Santíssimo, e tinha uma festa aqui dentro, uma barulheira, parecia que estava na minha casa — conta o padre, como se falasse sobre uma festa fora de hora feita por um vizinho, ainda que não haja outros moradores ao redor da igrejinha.

Além dos exorcismos, outras atividades católicas são realizadas na igreja, como as missas (Foto: Carlos Junior, A Notícia)

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Como ocorrem os exorcismos de Padre Carlos

E é naquele lugar, aparentemente silencioso, que são realizados os exorcismos. Antes de começar, primeiramente, o possesso passa por uma entrevista, chamada também de triagem. Ela acontece uma vez por mês, em Joinville. Neste momento, o padre tem uma conversa com a pessoa que o procura, ele ouve seus lamentos, observa seu semblante e toma sua decisão.

— Eu sou terapeuta ocupacional, quando eu fiz o curso a gente teve formação de psicologia e psiquiatria. Então, eu tenho uma noção quando a pessoa não está em estado natural, o normal dela. Então, é por isso a entrevista. Na fala, a aparência, a gente vê o conjunto — diz.

A partir disso, dependendo de cada caso, o “paciente” é encaminhado para ajuda médica e psicológica ou, então, ao exorcismo. 

— Eu tenho uma psicóloga que trabalha conosco e um doutor. Nós encaminhamos muita gente para lá. Tem pessoas que da triagem eu já encaminho para lá. Porque se eu vejo que não é caso, que são situações de psicólogo, cura interior, história que é muito sofrida, aí eu eu mando para a cura interior, não para o exorcismo — comenta. 

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Entretanto, há casos em que existe a necessidade clara de um ritual de exorcismo, defende. Em um dos casos que se lembra, uma adolescente tinha as pupilas dilatadas e falava com uma voz diferente da normal. Ela foi encaminhada para a cerimônia exorcista e recebida na igreja de São João do Itaperiú. 

Munido de seu crucifixo, o livro para rituais de exorcismo e suas vestes brancas eremitas, viu a possessa entrar no interior do templo religioso. Depois, deitada no chão, ela foi amparada pelos auxiliares de Padre Carlos, que atuam na função de dar apoio espiritual ao sacerdote e, também, conter a vítima da possessão, que costuma ficar violenta.

No chão, a pessoa deita sobre um tapete com mantas térmicas e um lençol branquinho. Padre Carlos diz que há exorcistas que preferem usar poltronas, ele não, pois teme que a pessoa possa se machucar ao se debater e ser imobilizada.

— Aqui entra o fenômeno impressionante que aparece nos filmes, que aí a voz muda, a pupila. Tu tem o olho claro, o olho fica castanho. Em possessão, ela entrou em transe e a pupila alargou. A gente já sabe que a pessoa não está ali. Muda a voz, a força fica sobrehumana. Tem mulheres aqui, adolescentes como essa menina de 14 anos, em que é preciso cinco, seis auxiliares em cima para manter — revela o padre sobre a força aplicada pelos demônios nas possessões.

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Durante o ritual, o possesso se deita no chão. Esta é a visão que ele tem no momento do ritual (Foto: Carlos Junior, A Notícia)

Padre Carlos também recorda do atendimento de uma mulher de cerca de 40 anos, solteira e que estava com uma “barriga de grávida de sete meses”, narra. Acontece que, conforme lembra o sacerdote, exames não indicavam gravidez ou outros problemas de saúde.

— Em um mês ela estava com a barriga de sete meses, dura mesmo. E eu pedi para ela deitar e quando começou o exorcismo, ela entrou em transe. A barriga chegou a nove meses, uma coisa impressionante. Pela metade do exorcismo a barriga diminuiu e no final de tudo, sumiu. Foi que nem tu estourar uma bexiga. Voltou ao normal — lembra o padre.

O exemplo mostra que, nem sempre, segundo o padre, há o contato com o demônio propriamente dito, mas a ação do ser maligno se manifesta de alguma forma, como no caso desta mulher de 40 anos, que apresentou problemas físicos. Em situações assim, o exorcismo também pode ser utilizado.

E não só pessoas, mas lugares também podem ser alvos de um ritual exorcista. Isso porque ambientes também podem estar infestados de animais enviados pelo diabo e outros demônios, conforme explica o religioso.

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— Tem casas, tem lugares infestados, com o diabo que chegou ali e ficou. As pessoas não se sentem bem ali. Aparecem animais, tem animais que são dele, carrapatos, pulgas. Tinha uma fábrica em Guaramirim infestada por pulgas, milhões de pulgas — lembra padre Carlos de um outro exorcismo em que se fez presente .

Os trabalhos demandam força espiritual e, por isso, o padre conta com a ajuda de seus auxiliares. O padre conta que, dependendo do caso, ele sofre uma exaustão e, por isso, os auxiliares acabam finalizando as preces dos rituais. Além disso, eles o ajudam na contenção dos possessos e oram antes, durante e no fim da prática ritualística. 

Por isso, ele destaca que não é qualquer pessoa que pode participar da ação. Os auxiliares, segundo ele, precisam ser fiéis de bom coração, com uma fé forte e iluminada, com quem ele mantém uma relação de confiança. 

— Eu tenho auxiliares, tanto para segurar, como para rezar, é fundamental. Os auxiliares são bem escolhidos. Não é qualquer pessoa que pode chegar ‘eu quero ser auxiliar’, é indicado pelos outros. Eles são muito iluminados, me ajudam a resolver muita coisa assim — cita.

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Assim, como todas as pessoas podem ser auxiliares, nem todos padres são nomeados exorcistas. Em Santa Catarina, por exemplo, há somente dois, um deles, o padre de São João do Itaperiú. Há também Pedro Paulo Alexandre, da Paróquia Nossa Senhora dos Navegantes e São Pedro, de São José, que preferiu não dar entrevista.

O exorcismo na atualidade, segundo seus praticantes

O padre Carlos e sua pequena igreja em São João do Itaperiú desconstroem boa parte daquilo que se criou no imaginário popular sobre a imagem do exorcismo, pelo menos na atualidade, já que o ritual já existe desde os templos bíblicos, cita a Associação Internacional dos Exorcistas (AIE), da qual os padres catarinenses também fazem parte.

— A Igreja Católica sempre realizou exorcismos, desde os tempos bíblicos. O próprio Jesus Cristo, em seu ministério terreno, combateu satanás e seus anjos. As primeiras comunidades apostólicas, já no século I, realizavam os exorcismos daqueles que estavam se preparando para receber o batismo. Essa prática acabou por desenvolver uma belíssima liturgia batismal, na qual os catecúmenos recebiam vários exorcismos ao longo da quaresma até o grande exorcismo, feito pelo bispo, na manhã do Sábado Santo, poucas horas antes do batismo —  diz o padre João Paulo Veloso, porta-voz da AIE, no Brasil.

Na Idade Média, com a formação dos primeiros rituais romanos, a prática do exorcismo continuou em alta, não apenas como preparação para o batismo, mas também como libertação dos fiéis que já haviam sido batizados. Os rituais são mantidos até os dias atuais, mas com rituais adaptados e redigidos de acordo com as leis da igreja, destaca o padre Paulo.

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O ministério de exorcista é regido pelo cânon 1172 do Código de Direito Canônico, uma espécie de lei que rege a Igreja Católica). Segundo esse regimento, o padre exorcista deve ser dotado de piedade, sabedoria, prudência e integridade de vida. Após ter sido nomeado pelo bispo, ele pode solicitar, por escrito, seu ingresso na Associação Internacional dos Exorcistas (AIE), como fizeram os dois padres catarinenses.

— Um dos objetivos da nossa associação é oferecer formação inicial e continuada tanto para os sacerdotes exorcistas quanto para as equipes que os acompanham, composta de leigos experimentados na fé e também profissionais da saúde — cita o padre João.

Há hoje uma preocupação com as questões da saúde mental, ressalta o porta-voz da AIE.

— O sacerdote exorcista não realiza o ritual no primeiro atendimento. É feito, junto à pessoa atormentada, um acompanhamento espiritual e psicológico, no qual se solicitam laudos médicos ou a opinião de profissionais da saúde da confiança do sacerdote. O exorcismo é realizado apenas quando há a certeza moral de que aquela pessoa esteja atormentada pelo maligno de modo extraordinário, independentemente de sua condição de saúde mental — finaliza.

Quando a Igreja indica o exorcismo?

Segundo o padre João Paulo Veloso, porta-voz da AIE no Brasil, o ritual dos exorcismos é utilizado atualmente quando há casos de possessão (supressão da vontade da pessoa pelo maligno), obsessão (ataques extraordinários em nível psíquico), vexação (ataques extraordinários em nível físico) ou infestação (ataques extraordinários sobre a habitação ou posses da pessoa). 

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No entanto, é comum as pessoas procurarem o sacerdote exorcista para resolver casos de falta de prosperidade, enfermidades contínuas, medo de invejas e supostos malefícios realizados por outras pessoas. 

Segundo o padre João, nestas situações, o sacerdote exorcista ajuda a pessoa a buscar uma vida realmente cristã e ter amizade com Deus, através da frequência aos Sacramentos e da prática de oração, penitência e caridade. Em muitos casos, inclusive, o exorcismo nem chega a ser indicado, mas diretamente as orações. Os casos variam, como também explicou padre Carlos.

O exorcismo ao longo da história

O professor do Programa de Pós-graduação da Universidade do Planalto Catarinense (Uniplac), Rafael Araldi Vaz, é doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ele também é pesquisador do Laboratório de Religiosidade e Cultura (LARC) da UFSC, e comenta que as práticas do exorcismo passaram por transformações significativas ao longo dos séculos, com mudanças mais marcantes entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna, ainda que tenha servido como ferramenta de poder e controle. 

— Embora os primeiros registros de possessão e exorcismo remontem ao cristianismo primitivo, como no Evangelho de Marcos (70 d.C.), foi apenas no século 16 que a Igreja Católica organizou um ritual litúrgico formal para expulsar demônios. Esse ritual envolvia a identificação dos nomes dos demônios por meio de manuais demonológicos, como fórmula de sua expulsão. Esse processo coincidiu com um período de intenso combate às heresias, bruxaria e magia, além de casos famosos de possessão, como o das freiras ursulinas de Loudun. Foi nesse contexto que surgiu o Rituale Romanum (Ritual Romano), um livro que estabeleceu as fórmulas e orações usadas pelos sacerdotes para enfrentar o demônio — conta o historiador.

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Rafael ressalta que, do ponto de vista historiográfico, a possessão e o exorcismo não são apenas fenômenos espirituais, mas também estratégias políticas da Igreja Católica para governar o corpo e a alma em momentos de crise social. 

— Neste caso, a crise de autoridade da Igreja diante de movimentos como a Reforma Protestante. A possessão estava associada ao pecado da concupiscência e aos desejos do corpo e, para os padres, ela ocorria quando o corpo se desviava da pureza da alma, sendo o exorcismo uma forma de controlar essas pulsões, atrair confissões e garantir a salvação. Assim, o exorcismo tinha um propósito moral e político, reforçando a visão cristã do corpo como um local de pecado, ao mesmo tempo em que servia para combater heresias e reafirmar o poder da Igreja diante do avanço de outras formas religiosas concorrentes — cita.

Com o exorcismo, a Igreja não expulsava somente o demônio, mas também reinseria a pessoa em uma ordem moral, litúrgica e comportamental, indica o pesquisador, uma estratégia que fazia parte de uma prática religiosa pautada no que historiadores como Jean Delumeau chamam de “pedagogia do medo”. 

Uma mudança importante na prática exorcista ocorreu no século 19, com o surgimento da psiquiatria, liderada por figuras como Jean-Martin Charcot. Neste momento, a Igreja Católica começou a se afastar dos casos de possessão, o que permitiu a transferência de autoridade para a medicina. A possessão passou a ser interpretada sob uma nova ótica: a da patologia e da doença mental. O demônio, como explicação para a possessão, foi substituído por diagnósticos de loucura, histeria e convulsões. 

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— Essa mudança representou uma suspensão do código demonológico como explicação para o fenômeno, marcando uma transição importante na forma como a sociedade e a Igreja lidavam com os casos — explica. A partir disso, houve uma redução nas práticas de exorcismo, destaca Rafael.

Como historiador, Rafael cita que, na atualidade, é necessário refletir sobre uma perspectiva histórica e sociológica a partir da pergunta “de que modo a prática do exorcismo, tal como praticada por vertentes neopentecostais ou mesmo por padres da Igreja Católica, produz ou reafirma formas de segregação, violência e sofrimento psíquico?” 

Além disso, ainda que a AIE cite o acompanhamento médico, psiquiátrico e psicológico como parte dos atendimentos, Rafael levanta que a atividade não está prevista no Código de Direito Canônico, portanto, as diretrizes são reservadas ao uso interno dos associados à AIE e não constituem um ato disciplinar emanado de uma autoridade eclesial.

O especialista lembra que há religiões que utilizam uma variação do exorcismo, como as práticas de “descarrego” em igrejas neopentecostais, por exemplo, para demonizar rituais da umbanda e do candomblé, transformado-as em demônios, o que naturaliza o racismo, a intolerância religiosa e até mesmo a violência contra terreiros e praticantes de religiões de matriz africana. 

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Segundo Rafael, historicamente, a lógica terapêutica do exorcismo católico se baseia na expulsão dos desejos e comportamentos moralmente inaceitáveis, segundo a moral religiosa. No caso neopentecostal, o exorcismo possui uma relação mais ligada à cura de doenças, como a depressão, e às dificuldades financeiras e amorosas, de acordo com a teologia da prosperidade. 

—  É possível afirmar que enquanto nas igrejas católicas e evangélicas a possessão é um fenômeno responsável pelo sofrimento, nas religiões de matriz africana é através da possessão, mais corretamente dito, da incorporação, que o sofrimento é combatido. Portanto, nas religiões de matriz africana o corpo é um espaço sagrado, não um espaço de pecado, e a incorporação é o meio através do qual os orixás, entidades, guias e encantados iniciam seu processo de ensinamento, de orientação e construção ética para a vida do incorporado. Ao mesmo tempo, é através do incorporado que instruções, ensinamentos, apoio, cuidado e cura são oferecidos aos que o procuram — exemplifica.

Outra preocupação levantada pelo pesquisador é o uso destas práticas exorcistas para o pânico moral, envolvendo a figura do diabo, para supostamente exorcizar pessoas trans e homossexuais, sob a justificativa da “cura gay”, praticantes de religiões afro-brasileiras e outros. 

O especialista ainda cita que o processo de demonização do desejo e das condutas pode ser um produtor de neuroses e doenças psíquicas. Em contrapartida, as religiões de matriz africana, ou mesmo no espiritismo, é bastante comum a valorização da ciência e a presença de entidades ou espíritos que remetem à medicina científica. Na umbanda, por exemplo, é possível encontrar orientações dadas pelas entidades no sentido da procura do que chamam de “homens de branco” , ou seja, os médicos, o que demonstra um diálogo aberto entre religião e ciência, conforme Rafael.

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Nas igrejas católicas e nas neopentecostais, a ação do diabo é regularmente compreendida como o motivador das dificuldades e sofrimentos. Já nas religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé, a figura do diabo não existe.

Para o pesquisador, a estratégia de demonização, de retomada da pedagogia do medo para a prática de controle é um problema grave que precisa ser enfrentado na forma da lei e através de políticas públicas que protejam a liberdade de culto e de pensamento, assim como enfrentem o racismo religioso. Também cita a importância de assegurar às pessoas em condição de vulnerabilidade psíquica e social condições terapêuticas dignas, impedindo estratégias de sujeição moral ou controle compulsório.

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