O aumento de casos de trabalho análogo à escravidão em Santa Catarina, registrado nos últimos anos, foi provocado por duas causas, segundo avaliação do Ministério Público do Trabalho (MPT). Para o coordenador regional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), Acir Hack, a reforma trabalhista e a falta de fiscalização preventiva estimulam a contratação de pessoas em situações recorrentes que comprometem a dignidade e os direitos dos trabalhadores.
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Neste ano, o Estado já registrou duas operações com resgate de vítimas de exploração ilegal. Foram 26 pessoas encontradas em situação de trabalho escravo, sendo o primeiro caso em uma plantação de cebola e o segundo na construção de alojamentos e galpões. No mesmo período de 2022, o total de trabalhadores resgatados foi 12 — eles eram explorados sexualmente em uma casa de prostituição em Criciúma. A maioria dos resgatados era mulheres transexuais e travestis que estavam em servidão por dívida.
— Os números de resgatados por ação não são tão significativos quanto em outros locais do país, mas o que traz preocupação em Santa Catarina é a maior recorrência. Estamos vendo uma disseminação de casos — analisa o procurador do trabalho, especialista em combate à escravidão contemporânea.
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Em entrevista ao Diário Catarinense, o coordenador da Conaete explicou que a terceirização de serviços em todas as atividades econômicas foi regularizada a partir da aprovação da reforma trabalhista em 2017. Com isso, pessoas passaram a ser contratadas por intermediários, que, às vezes, não cumprem com os direitos dos trabalhadores e oferecem alojamentos degradantes e insalubres. Nessas situações, as empresas tomadoras de serviço acabam omissas, pois terceirizaram esses cuidados, e exploram o trabalho das vítimas sabendo ou não das condições em que as pessoas se encontram.
— Houve um afrouxamento das relações de trabalho com a reforma. Ela permitiu a terceirização irrestrita sob o manto de que facilitaria as contratações. Porém, o que percebemos é que muitas vezes o serviço não é regularizado, os responsáveis pelos contratados nem sempre têm como arcar com custos de manter os trabalhadores e as empresas que tomam esse serviço podem ser responsabilizadas economicamente por utilizar mão de obra irregular — relata Hack.
A ausência de fiscalização preventiva é outro aspecto que implica na disseminação e continuidade dos casos de trabalho escravo. Segundo o procurador do trabalho, há falta de mão de obra na Auditoria Fiscal do Trabalho (AFT), órgão responsável por vistoriar os locais e identificar as situações de escravidão contemporânea. Como não há concurso público para contratação de novos profissionais há anos, faltam ações em atividades produtivas com histórico de trabalho escravo.
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— Isso contribui para que empregadores mantenham a prática ilegal e outros se arrisquem. Criou-se uma falsa noção de impunidade — afirma.
Onde há trabalho escravo em SC
Em Santa Catarina, as situações de trabalho escravo contemporâneo acontecem em atividades econômicas que possuem necessidade de mão de obra sazonal, ainda conforme Hack. Por isso, elas podem estar presentes em qualquer região do Estado, mas principalmente no Oeste, Vale do Itajaí e Serra.
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Atualmente, os casos mais recorrentes com resgate de trabalhadores vítimas da escravidão acontecem na agricultura, nos cultivos da cebola e maçã. As duas produções no Estado são as maiores do país e dependem da contratação de trabalhadores em um curto período de tempo para a colheita.
— É claro que não são todos os empresários e agricultores que utilizam da mão de obra ilegal. É uma minoria, mas a maior recorrência tem sido na maçã e cebola — analisa o coordenador da Conaete.
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Plantações de erva-mate também já registraram diversos casos com constatação de trabalho escravo, mas os registros caíram ao longo dos anos. O procurador do trabalho afirma que a dificuldade para fiscalizar e receber denúncias sobre o cultivo, que migra de local, dificulta o acompanhamento das condições de quem trabalha com isso.
Além dessas, outras atividades econômicas já registraram resgates de trabalhadores. Casos foram encontrados por meio de denúncias e fiscalizações da agroindústria ao setor madeireiro e construção civil.
Nenhuma ação de vistoria ou resgate foi feita em vinícolas catarinenses, de acordo com o procurador do trabalho. No entanto, ele não descarta a possibilidade de iniciativas caso o MPT receba denúncias nesses ambientes. No Rio Grande do Sul, mais de 200 trabalhadores foram encontrados em situação degradante e sob violência física e psicológica durante o período de trabalho em grandes vinícolas.
Sete tipos de trabalho análogo à escravidão
Pela legislação brasileira, sete situações indicam o emprego de mão de obra análoga a de escravo. Nem sempre todas as categorias são encontradas em um mesmo local, mas apenas uma já caracteriza a escravidão contemporânea.
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Em Santa Catarina, a condição degradante de trabalho é a mais encontrada. Trata-se de quando a saúde e a segurança do trabalhador são comprometidas pela falta de higiene, água potável e local de repouso adequado.
Outra situação comum é a servidão por dívida, em que o funcionário deve valores ao empregador pelo pagamento de comida, roupa e transporte. Em algumas vezes, não recebe nada do salário apenas para financiar o crédito com o dono do serviço.
Com a jornada exaustiva, o trabalho é muito longo, de forma que o corpo e a mente do trabalhador são prejudicados e levados à exaustão. Já no trabalho forçado, a vítima é ameaçada e obrigada a trabalhar de forma que não é espontânea ou livre.
Outros tipos de trabalho escravo previstos no Código Penal também são vigilância ostensiva, apoderamento de documentos e cerceamento de transporte.
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Como denunciar o trabalho escravo
Os órgãos responsáveis por atuar em casos de trabalho escravo são o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Auditoria Fiscal do Trabalho (AFT). Apesar de terem funções distintas, os dois podem receber denúncias por seus canais diretos e investigar casos suspeitos.
O MPT possui um portal para oficializar as denúncias. Em caso de dúvida ou dificuldade, também é possível fazer a denúncia pessoalmente em uma sede do órgão.
Para denunciar de forma remota e sigilosa, foi criado o Sistema Ipê, único sistema exclusivo para denúncia de escravidão contemporânea no Brasil. Ele é o sistema oficial do Fluxo Nacional de Atendimento das Vítimas de Trabalho Escravo e foi lançado em 2020 pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Por ligação de telefone, o Disque 100 também recebe denúncias de trabalho escravo. Esse é o canal do governo federal para recebimento de denúncias de violações de direitos humanos.
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