Ainda longe do ideal, o sistema socioeducativo catarinense patina no atendimento a adolescentes que cometem infrações. Esbarra na falta de ofertas de serviços pedagógicos, além de enfrentar a ausência de vagas em centros de internação. Hoje, 400 jovens aguardam em casa por um espaço no sistema. Enquanto isso, estão sem monitoramento, à margem de um controle que deveria ser do governo estadual. A fila de detenção é praticamente igual ao número de menores internados nas 28 unidades de Santa Catarina — 17 delas são administradas em modelo de co-gestão por ONGs e o restante pelo Estado. Todas estão lotadas. Com os prédios existentes, são 387 espaços abertos, incluindo os 17 inaugurados em São Miguel do Oeste na última quarta-feira. Ou seja, é necessário dobrar a oferta para atender a demanda atual.

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Nenhuma das unidades do Estado tem o certificado do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA), necessário para funcionamento das estruturas. A justificativa do Departamento de Atendimento Socioeducativo (Dease) é que o pedido foi feito recentemente, mas o órgão disse que passa por mudanças nos critérios e não emitiu os documentos. A diretoria do departamento não soube dizer, no entanto, por que os certificados foram solicitados somente agora.

O retrato de um sistema problemático está no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) da Grande Florianópolis, em São José, o maior do Estado. O antigo São Lucas foi totalmente refeito para abrigar a atual unidade. Inicialmente, a obra custaria R$ 11,5 milhões, mas com aditivos e reajustes foi entregue em 2014 por R$ 14,3 milhões. A inauguração, no entanto, não representou a efetividade do espaço. Há três anos o prédio funciona muito abaixo da capacidade atual. Erguido para atender 90 adolescentes — 70 deles com sentença e 20 deles à espera de decisão judicial —, abriga atualmente apenas 10 menores de 18 anos. Uma decisão judicial da Vara da Infância e da Juventude limitou o atendimento a pedido do Ministério Público (MP). A reportagem esteve no local e comprovou que a unidade é bem estruturada e sobra espaço para outros detentos.

Sem agentes efetivos para colocar no novo centro, o Estado decidiu ainda em 2013 pela contratação de pessoas em Admissão por Caráter Temporário (ACT). Contrário a essa prática, o promotor Gilberto Polli questionou a opção da Secretaria de Justiça e Cidadania:

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— Os dois intervalos de maior iminência de o Case fechar ocorreram pela saída dos ACTs, se eles fossem efetivos, se tivessem feito concurso, não haveria problema.

A permanência dos temporários, prevista inicialmente em um ano, se estendeu para três. Por isso, a Justiça ainda não permitiu a ocupação total do espaço, o maior no atendimento socioeducativo em Santa Catarina. A promessa do Dease é homologar a contratação de 240 agentes até o final deste mês. Em dezembro, garante o diretor Zeno Tressoldi, o prédio passará a receber mais adolescentes gradativamente:

— O Case terá sua situação basicamente resolvida com a chegada dos novos agentes. Só falta a formatura, que deve ser no final do mês. Dos 240 formados, 120 homens e de cinco a 10 mulheres vão para São José.

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Mesmo sendo um prédio inaugurado em 2014, a sede do centro precisou ser reformada recentemente. Segundo Tressoldi, 95% dos problemas estão resolvidos. Ele condiciona as avarias à ação dos próprios adolescentes e não soube responder se a empresa responsável pela obra foi intimada a fazer reparos por problemas na construção.

As condições do prédio são alvo de um procedimento iniciado há três semanas pelo Ministério Público de Contas (MPC). O procurador Diogo Ringenberg diz que possui documentos da Vara da Infância e da Juventude de São José que apontam problemas graves na execução das obras da unidade.

– É uma obra bem nova, vamos buscar cobrar responsabilidade dos órgãos no sentido de que eles se movimentem e comprem a responsabilidade civil. São diversos problemas como rachaduras e afundamento do solo e outros relativos à manutenção.

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O MPC fará um vistoria no prédio para confirmar as informações iniciais, depois pretende pedir as correções para o Estado. Caso isso não ocorra, o procurador pode optar por uma representação junto ao Tribunal de Contas do Estado (TCE).

Faltam recursos para o Dease, diz promotor

Dos R$ 475,3 milhões previstos no programa Pacto Por Santa Catarina para a Secretaria de Justiça e Cidadania, apenas 8,8% do valor é destinado ao sistema socioeducativo do Estado. O restante foi investido no sistema prisional, onde o déficit de vagas é menor se comparado com o atendimento ao menor infrator. Autoridades ouvidas pela reportagem entendem a necessidade de investimento nas cadeias, mas veem necessidade de mais investimentos no Dease.

O coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude do MP-SC, João Luiz de Carvalho Botega, classifica a situação como “difícil, para não dizer dramática”. Os problemas começam no modelo chamado “meio aberto”, que é a aplicação de medida para os infratores que cometem os primeiros atos. Para evitar que eles sejam enviados diretamente aos centros de atendimento, a Justiça determinou o cumprimento de atos como prestação de serviços comunitários. Eles são geridos pela Secretaria de Assistência Social (SST) do Estado e pelas prefeituras.

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Uma das dificuldades, explica Botega, é a exigência em lei de órgão de controle das medidas em meio aberto somente em cidades acima de 20 mil habitantes. O Dease admitiu em entrevista ao DC que não tem contato com a SST sobre a aplicação ou não das determinações judiciais e reincidências. A reportagem procurou a equipe de Assistência Social do Estado, mas a assessoria de imprensa da pasta informou que os diretores estavam em um evento na última quarta-feira e só poderiam responder na segunda-feira, 6 de novembro.

O promotor diz que o atual foco do MP-SC é o investimento estrutural nas unidades:

– Já fomos os melhores no sistema socioeducativo, agora somos os piores. Temos Estados que estavam em situação muito pior que a nossa e já evoluíram enquanto a gente ainda está patinando.

Botega critica o maior investimento no sistema prisional em comparação com o socioeducativo:

– Enquanto essa lógica for mantida, sempre vai ter que se gastar mais com o sistema prisional porque o adolescente continuará cometendo crimes. Precisamos pensar em orçamento. Temos uma experiência no Paraná de fundo socioeducativo que pode ser copiada – exemplifica o promotor.

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Falta de trabalho entre os setores trava o sistema

A falta de compasso entre o Dease e a Secretaria de Assistência Social, ambos órgãos do governo do Estado, é um exemplo da falta de intersetorialidade cobrada por pessoas ligadas à área. Na última semana, em um evento na Unisul, em Palhoça, professores, autoridades e convidados debateram o sistema socioeducativo catarinense. Um relatório será divulgado nos próximos dias com metas de melhorias.

O professor doutor da Unisul e especialista em segurança pública, Giovani de Paula, vê necessidade de uma mobilização geral em torno do tema.

– A discussão não deve ser só permeada pelo controle social e reinserção, mas por políticas públicas, direitos e deveres, mudanças de paradigmas, que permitam ir além da esfera meramente punitiva – destaca o professor.

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A crítica é para a atual insistência no caráter de punição, onde o único foco é a judicialização dos conflitos: “estamos antecipando e gerando novos problemas”.

– Precisamos também nos preocupar com os agentes, elevar o auto-estima deles para que sejam protagonistas no sentido de não haver uma só responsabilização por eles estarem na ponta do sistema.

Desde 27 de julho, quando o Ministério Público fez uma operação na ONG Multiplicando Talentos, responsável por administrar em sistema de co-gestão os centros socioeducativos de Tubarão, Araranguá e Criciúma (duas unidades), o Dease está com interventores dentro desse locais. Apesar de os funcionais seguirem ligados às organizações, é o departamento que faz o controle.

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Segundo o MP-SC, as investigações apontam que muitos pagamentos efetuados pela Multiplicando Talentos a fornecedores de bens e serviços aos CASEPs e Casas de Semiliberdade voltavam para as contas pessoais do presidente da entidade. Além disso, há indicativos de que recursos públicos foram empregados na construção de uma casa situada em terreno particular em Araranguá, visando beneficiar exclusivamente o presidente.

O Departamento fala em aumentar a fiscalização nas organizações diante do recente episódio e não quis comentar o possível envolvimento de agentes do Estado nas irregularidades por, segundo a direção, o processo estar sob segredo de Justiça.

Problemas e alternativas em relatórios do TJ-SC

O DC teve acesso a relatórios feitos pelo Tribunal de Justiça (TJ) durante inspeções em unidades do Estado e a um dossiê do Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Púlico de SC (Sintespe). Em uma das visitas de representantes do TJ ao Case e ao Casep de Lages, na Serra catarinense, entre maio e junho deste ano, foram constatados diferentes problemas na unidade. Segundo o relatório de inspeção, “a estrutura não obedece aos parâmetros arquitetônicos do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), carecendo de melhor organização interna, fruto do mau estado de conservação dos espaços sanitários, áreas de convívio externas e quartos, principalmente nas alas I e III, apesar da instituição possuir alvará sanitário expedido em maio”.

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Durante a fiscalização, o juízes encontraram até mesmo ratoeiras espalhadas pelo chão, o que gerou uma cobrança por melhorias. Mesmo que dentro das unidades exista atividades sociopedagógicas para os menores infratores, os adolescentes reclamaram de ociosidade. “A unidade possui espaço com disponibilidade de abrigar cursos profissionalizantes, contudo, não estão sendo ofertadas atividades dessa natureza internamente, e não há também possibilidade de participação em eventos de qualificação externos.” Um agente ouvido pela reportagem confirmou que o prédio da Serra Catarinense é um dos mais precários do Estado. Em entrevista ao DC, o diretor do Dease, Zeno Tressoldi, diz que a unidade de Lages é a próxima a passar por reforma.

Agentes cobram mais mudanças estruturais

No dossiê do Sintespe, os agentes fazem uma série de apontamentos e cobranças ao Estado. Os pedidos vão desde a separação dos níveis masculino e feminino para que não ocorram tumultos até a promoção e previsão da fiscalização das unidades de internação pelas entidades de defesa dos direitos humanos. “As atividades pedagógicas são indispensáveis no processo de ressocialização dos adolescentes. Porém, essas atividades vêm sendo oferecidas de maneira inadequada, causando pouco aproveitamento ou, até mesmo, efeito negativo”, diz o texto. O dossiê ainda relata interrupções pontuais de aulas feitas em parceria com o Centro de Educação para Jovens e Adultos (Ceja).

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