Vilson Groh, em 1978, era um rapaz de 24 anos quando, saído de Brusque, no Vale do Itajaí, chegou a Florianópolis para estudar Teologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Decidiu, ainda universitário, que sua trajetória de fé deveria estar alinhada à busca por justiça social. Optou por seguir o caminho da periferia. Ainda estudante, chegou em 1979 ao Morro do Mocotó, comunidade conhecida da região central da Capital, que nem água tratada tinha, sequer saneamento, ponto de ônibus ou qualquer equipamento que garantisse a qualidade de vida dos moradores. Ali foi acolhido por uma mulher negra, militante e mãe de santo: a sacerdotisa da umbanda Claudete Régis Machado. Da amizade e parceria na luta por direitos, nasceu a percepção em um jovem de que o que faltava à periferia eram oportunidades. E que o respeito entre religiões, classes e raças fazia parte desta busca, o que ele chama de “materialização da esperança”.

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Vilson se tornou, poucos anos depois, o conhecido padre Vilson Groh, que até hoje trabalha para diminuir as diferenças sociais entre o morro e asfalto. Na última terça-feira, dia 6, o padre completou 35 anos de sacerdócio. Neste sábado, ocorre a missa e a celebração dos anos vividos com a comunidade. E motivos para agradecimentos não faltam. Com um instituto que leva seu nome, ONGs espalhadas em rede pela cidade, o padre, com o apoio de centenas de voluntários, religiosos e empresários, tem como principal missão garantir oportunidades a crianças, adolescentes, idosos, moradores de rua e estrangeiros que vieram a Florianópolis em busca de uma vida melhor.

Não é por menos que em toda a sua fala, padre Vilson não usa o singular. Suas ações e discursos estão no plural. Sua casa, no Monte Serrat, também demonstra seu estilo simples. Nas paredes, imagens e lembranças com crianças do Guiné-Bissau, na África, onde também mantém uma ONG. O padre ensina, e seu modo de viver confirma, que não é preciso de muito para ser feliz. Ajudar o outro satisfaz a alma e o coração.

— O elemento fundante na minha vida foi a opção que fiz por um texto bíblico em minha ordenação, de Mateus. Um texto que o Papa Francisco utilizou muito para o Ano da Misericórdia, que trata das questões centrais de Jesus: “Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver”. Eu diria que nestes 35 anos de ministério sacerdotal, primeiro eu agradeço todos os dias por estar nesta estrada. Sou uma pessoa feliz. Se eu morresse, não teria consciência de dizer o que fiz ou o que eu não fiz. A vida foi sempre uma entrega. Esta entrega te dá internamente uma paz interior, que não é a paz dos cemitérios, é a paz da luta.

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Padre Vilson Groh completa 35 anos de sacerdócio

Apesar de Vilson ser o padre do Monte Serrat, foi no Mocotó que seus primeiros passos como militante foram dados. Claudete Régis — Dete, Mãe Dete ou tia Dete, com preferirem — lembra bem da chegada do jovem brusquense.

— Para nós foi uma benção e uma luz quando o padre Vilson apareceu no morro. Aqui não tinha calçamento, não tinha água. Tinham apenas alguns poços de água espalhados em pontos difíceis, e no verão tinha fila. Lembro quando nós e o padre Vilson saímos para procurar um olho de água. Ele vinha no fim de semana, e assim o trabalho foi começando. Começamos um trabalho de comunidade — recorda dona Dete.

Esta ligação com a mãe de santo é fundamental em sua vida, enfatiza padre Vilson. Rompeu com diversos paradigmas e traçou seu caminho.

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— Foi sempre importante ter entrado no morro através de uma mulher, negra e de terreiro. Criei um olhar sobre a compreensão da cultura popular, das comunidades empobrecidas, da comunidade afro e do por quê elas estavam em periferias — comenta o padre.

Vilson, que quando chegou ao morro ainda não era padre, se inseriu nos terreiros com dona Dete. Ele lembra que, no princípio, um religioso jovem com ideias tão libertárias, e num terreiro de umbanda, era visto com certa desconfiança por membros da Igreja Católica.

— No primeiro momento criou um pouco de estranheza. Da minha parte, eu sempre mantive diálogo, por mais que este diálogo muitas vezes se desse num campo de conflito — observa Vilson.

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Para a mãe de santo, foi a partir da chegada do padre Vilson e de seus diálogos na época com o bispo Dom Afonso que a Igreja Católica passou a olhar para a umbanda de forma diferenciada.

— Antes, não nos viam como uma religião. Diziam que era uma seita, macumba. Eu sempre digo para o padre Vilson: a umbanda e o catolicismo andam em paralelos. Não têm muitas diferenças. As cores que nós usamos na umbanda são as mesmas cores que os padres usam. A única diferença é que nós usamos a cachaça, a igreja católica usa o vinho — explica dona Dete.

Ela lembra que, quando comemorou 25 anos de casada, padre Vilson realizou uma missa junto dos umbandistas. Um momento inesquecível.

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(Foto: Felipe Carneiro / Agencia RBS)

Crianças e adolescentes como prioridade

As ideias do padre foram tomando forma. Através do trabalho iniciado pela Irmã Edwiges na década de 1980, criou-se a Associação de Amigos da Casa da Criança do Adolescente do Mocotó (Acam), que hoje faz parte do Instituto Vilson Groh (IVG). Hoje, acredita o padre, é o único equipamento de referência na comunidade que olha pelos jovens. Tira eles da ociosidade, da violência e ainda os encaminha para o primeiro emprego.

Também é a ONG que garante uma série de ações na comunidade, como as pinturas coloridas nas casas pelo projeto Mocotó-Cor, que tem parceria com entidades privadas, e que também está reformando as escadarias do morro.

A rede do IVG ainda abrange comunidades como o Monte Cristo, com o Centro de Educação Popular (Cedep), a primeira ONG criada pelo padre, há quase 30 anos. Fazem parte ainda da rede o Centro Cultural Escrava Anastácia, o Centro Social Elisabeth Sarkamp, o Centro Cultural Marista São José, a Associação João Paulo II e o Centro Educacional Marista Lúcia Mayvorne. Além disso, a rede ainda oferece cursinho pré-vestibular gratuito para os jovens da periferia.

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— Nós trabalhamos nas ONGs a construção de um projeto de vida para a criança. Uma vez conversava com um menino, e perguntei para ele qual era o sonho dele. “Meu sonho é ser traficante”, ele disse. “Estudar dói a cabeça, e trabalhar na picareta faz calo na mão”. Hoje ele cresceu, fez faculdade de administração, trabalha, tem dignidade. E perguntei o que mudou no curso da vida dele. Ele disse: “projeto social. Ali dentro me deram oportunidade de estudar e me inseriram no mercado do trabalho. E isso mudou toda a minha vida” — afirmou padre Vilson.

Monte Serrat como casa

(Foto: Felipe Carneiro / Agencia RBS)

Já ordenado como padre, conforme combinado com o bispo, Vilson morou um ano na Catedral, e em 1983 se mudou para o Monte Serrat. Dona Dete lembra que o padre ficou dividido na época.

— A gente estava torcendo para ele vir para o Mocotó. Mas o Monte Serrat passou uma rasteira na gente e ele foi para lá. Ele esteve sempre presente nos dois espaços da mesma forma — conta a mãe de santo, rindo.

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Na época, a igrejinha do Monte Serrat estava precária e nem uma reforma resolveria. Com a chegada de Vilson, um novo espaço começou a ser construído no local onde é hoje. E toda uma relação com aquelas pessoas também.

— Se você olhar em todas as nossas comunidades de periferia em Florianópolis, tudo o que temos de instrumentos e equipamentos coletivos foi conquistado pelos processos de luta, manifestações. Foi o caso do Monte Serrat. Nosso papel é tornar a esperança em concretude, em material. A esperança não pode ser um discurso vazio — defende o padre.

Dentro da igreja, padre Vilson mostra a Nossa Senhora do Monte Serrat, uma santa negra, que representa toda a essência desta comunidade militante. A imagem está há 90 anos no bairro. O altar da igreja, detalha o padre, também tem história.

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— O entendimento que eu tenho da Eucaristia é de que a mesa de um altar possa se tornar a mesa da comunidade. A mesa da inclusão, da partilha. Essa mesa tem de estender o entendimento do bem comum, que nada mais é do que a justiça social. E a justiça social é gerar oportunidade. Materializar o direito — define.

No bairro, além da igreja, um projeto social surgiu. O padre fala com carinho de dona Darcy Vitória de Brito, de 77 anos, que junto a outros moradores, quis dar um caminho às crianças do Monte Serrat. Nasceu a ONG Escrava Anastácia, que acolhia os pequenos no contraturno escolar e assim não deixava ninguém na rua. Hoje, no morro há uma casa de acolhimento para moradores de rua e uma casa de abrigo para crianças em situação de vulnerabilidade.

Vilson abriga ainda, atrás da igreja, um grupo de senegaleses que se mudou para Florianópolis. No Dia da Consciência Negra, em novembro, foi feita uma celebração baseada na religião muçulmana, da qual os senegaleses são adeptos. No encontro, eles leram uma passagem do Alcoorão que falava de Nossa Senhora.

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A fé entra onde o Estado não chega

Para o padre Vilson há uma razão muito clara para a violência presente nas áreas de periferia, que em Florianópolis, e na grande maioria do país, são habitadas por comunidades negras: o tráfico se cria onde o Estado não está.

— São territórios que têm muito mais a presença da polícia do que escolas públicas, cultura, centros de saúde, espaços de referência de trabalho. Quando nós investimos na educação, damos um salto na qualidade de vida e no processo afirmativo da comunidade — avalia.

Ele diz, de maneira irônica, que “não passou um helicóptero por aqui e jogou jovens com armas na mão”:

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— O processo de materialização do narcotráfico nas comunidades nasce ao longo do tempo pela não presença do Estado nestes espaços. A periferia não é violenta. Violentas são as estruturas que se produzem onde o Estado não está. Ninguém nasce violento. Se aprendeu a ser violento, é possível desaprender. Eu acredito nisso — afirma.

O padre mantém ainda uma visão crítica sobre como a segurança pública é tratada:

— A nossa política anti-drogas é um tiro no pé. Investimos só no processo repressivo. Quanto custa uma subida de 30 policias ao morro, em termos de desgaste psíquico dos policias, de estresse, arma, carro? Se você usar o investimento da polícia ao longo de um ano e materializar isso em projetos, abrir times de futebol, investimentos em esportes radicais às crianças, o impacto é muito maior e melhor — sugere.

Vilson cita a escola Lúcia do Livramento Mayvorne, no Monte Serrat, como exemplo que esta ideia dá certo. O governo queria fechá-la. A comunidade foi para a rua, protestou, e a decisão foi revertida. Isso porque os Irmãos Maristas assumiram a gestão. Hoje, conta Vilson, 600 estudantes são atendidos.

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— Nesta semana os boletins foram entregues e 99% dos pais compareceram para buscar. Isso é uma busca de território, de direito — avalia.

Redução da maioridade penal

Já no ano passado, Vilson Groh se manifestou publicamente contra a redução da maioridade penal para 16 anos. Para ele, se misso ocorrer, “vão ver que a situação não melhorou e vão diminuir para 15, e depois para 14”. Ao invés de investirmos em escolas e centros de profissionalização, profetiza o padre, se investirá em presídios juvenis.

— A tendência nossa no Brasil é recair sempre para as consequências, e nunca sobre uma perspectiva em longo prazo. Hoje um menino atendido em uma de nossas ONGs custa cerca de R$ 300 por ano. Um jovem na cadeia custa R$ 2.700. Um jovem em um centro de ressocialização custa cerca de 4 mil. Estamos investindo na punição e não na prevenção — argumenta.

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Ele critica também o baixo investimento na área social:

— O social não pode ser migalha de assistencialismo. O social é uma política elaborada a partir de 1988, com a Constituição. Temos que ter uma política social, como é a política da educação, saúde. Ao mesmo tempo temos que trabalhar evolução de mecanismos e controle da sociedade civil sobre a gestão pública e isso significa exercer nossa cidadania — orienta Vilson.

Mesmo caminho do Papa

Hoje, o padre Vilson se mostra satisfeito em saber que seu caminho é respaldado pelo Papa Francisco:

— Uma igreja enlameada com o sofrimento do povo, e não uma igreja perfumada e bonita, como disse o Papa. Ele disse que prefere os padres com cheiro do povo do que com cheiro de perfume francês. Este é um recado de um papa latino-americano, que viveu em um continente com um grande problema cultural de injustiça e desigualdade.

E com satisfação, olha para os 35 anos que se passaram, mas pensa no futuro:

— Temos que passar pela terra e deixá-la melhor. Não podemos passar em vão. A beleza do significado do sentido da vida é a abertura com o outro. Nós acreditamos que a esperança não é um movimento em que as coisas caíam do céu. O verbo esperançar te põe em movimento.

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Serviço

O quê: Missa que celebra os 35 anos de sacerdócio do Padre Vilson Groh. Terá apresentações culturais e coquetel.

Quando: Sábado, às 19h30min.

Onde: No Centro Educacional Marista Lucia Mayvorne, no Monte Serrat.

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