Com somente 15% da sociedade que se declara “preta” ou “parda”, Santa Catarina é o Estado com menor população negra para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O que não quer dizer que, por aqui, essa população sofra menos com as violências. As mortes de mulheres negras avançaram 133,4% de 2005 a 2015 no Estado, uma taxa mais de quatro vezes superior ao de mulheres não-negras, de 30,6% no período, de acordo com o Atlas da Violência 2017, um estudo elaborado entre o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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A elevação dos feminicídios contra essa população superou a média nacional e de todas as outras unidades federativas, exceto do Ceará, Rio Grande do Norte e Sergipe. Uma realidade que precisa de enfrentamento diário, mas que ganha espaço ampliado para discussão no Dia da Consciência Negra, lembrado nesta segunda-feira, 20, no Brasil.
Na visão da socióloga Bruna Pereira, que coordenava o grupo de estudos Mulheres Negras na Universidade de Brasília (UnB) antes de integrar o grupo de pesquisadores visitantes da Universidade da Califórnia em Berkeley, esse cenário é atribuído à discriminação racial: maior onde a negritude é minoria e a cultura européia valorizada, como no Estado.
— O racismo como um fator de desumanização de pessoas negras também conta na hora da violência, indicando, por essa lente, que essa mulher negra é menos humana, que tem um corpo mais forte e, portanto, não é lido como vulnerável e também como de menor valor. Na medida em que mulheres negras estão mais no polo da pobreza no Brasil, também por conta do racismo elas têm menos acesso aos serviços e maior exposição a fatores de vulnerabilidade como a violência — explica.
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“Nó de opressões”
Formado em 2015 na ocasião da Marcha de Mulheres Negras, o coletivo Pretas em Desterro é um dos movimentos sociais que tenta alterar esse cenário no Estado. Para além do racismo, a integrante Cristiane Mare, que também é secretária de mulheres da União de Negras e Negros pela Liberdade em SC (Unegro), também relaciona esses assassinatos à questão econômica. Para ela, o empoderamento é fundamental para o enfrentamento da violência doméstica, que tende a mostrar-se de inúmeras maneiras antes da morte.
— Quando levamos em consideração a interseccionalidade, que lembra do impacto da raça, do gênero, da orientação sexual e da classe social, nos deparamos com enormes diferenças. Nós, mulheres negras, temos menos oportunidades. Ao mesmo tempo, somos alvos mais fáceis. Não ter nenhuma mulher negra, inclusive na sua redação, impacta no crescimento e na manutenção dessa violência, porque temos mais dificuldade em sair do ciclo violento — detalha Cristiane, que também integra o Conselho de Direitos das Mulheres de Palhoça, e diz que esse contexto está associado à escravidão, mas que é reforçado pelas escolhas cotidianas.
Se as mulheres brancas recebem 74% do rendimento médio dos homens, mesmo quando possuem um nível de instrução mais elevado, as mulheres negras atingem apenas 41%, conforme o IBGE estimou em 2014. Ao terem menos oportunidades, as negras tornam-se alvos mais fáceis para as violências. Esse raciocínio, explicitado pela primeira vez pela filósofa norte-americana Angela Davis, é chancelado pela doutora em demografia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Jackeline Romio. Ela salienta que a combinação entre três fatores que formam um “nó de opressões” reflete na alta incidência da violência contra a mulher negra.
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— A interação entre as violências patriarcal, machista e racial multiplicam as chances de as mulheres negras serem acometidas por algum tipo de violação. Trata-se da multiplicidade das formas de opressão, em que a classe social é mais um tipo de violência que interage diretamente com a racista e sexista — detalha a especialista em feminicídios (qualificadora do homicídio em vigor desde 2015 que vale quando o assassinato é praticado contra a vítima em um contexto de violência doméstica ou apenas pelo fato de ela ser mulher).
Faltam políticas específicas e conscientização
Em 2009, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) questionou as mulheres sobre a vitimização por agressão física e o acesso à Justiça. A dificuldade no registro do boletim de ocorrência devido a uma recusa do policial, além da resistência em compreender a denunciante como vítima foram as principais barreiras relatadas pelas mulheres negras. Como consequência ao descrédito em relação à polícia, elas disseram tentar resolver sozinhas tal contexto de violência.
O fato de as mulheres negras terem menor acesso à informação e maior dificuldade para acessar mecanismos de proteção como as defensorias públicas e as delegacias especializadas é lamentado pela diretora executiva da Anistia Internacional Brasileira, Jurema Werneck. Para ela, as mulheres negras continuarão sendo mortas até que estratégias específicas sejam formuladas e implementadas para elas em contraponto a políticas que encaram as mulheres de forma homogênea.
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— Os mecanismos atuais preservam a vida das brancas, mas não a das negras. A política pública que salva a vida de mulheres negras precisa enfrentar o racismo como um todo e o racismo institucional dentro dela — critica a ativista.
Silêncio das vítimas
Entre as mulheres que foram vítimas de violência doméstica, é comum o silêncio. No universo das negras, ele impera. Vanda Pinedo, ativista do Movimento Negro Unificado em Santa Catarina, explica os motivos. Para ela, a situação é ainda pior porque estas mulheres sofrem uma série de traumas que passa pelo racismo, exclusão social, viver em locais violentos, até chegar à violência doméstica.
— Há medo, vergonha de falar, de expor isso, de ser recriminada. Para a mulher negra é ainda pior pela questão do racismo, pelo que elas já sofrem no seu cotidiano, pela violência que já existe nas comunidades, onde as mulheres são arrimo de família. É uma violência muito velada, ela é invisível. Quando a gente fala da violência contra a mulher negra, as pessoas não dimensionam esses fatores.
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Para Vanda, a falta de instrumentos adequados para a denúncia é outro problema enfrentado pelas vítimas.
— O número de casos com certeza é maior por conta dessa condição. Os equipamentos públicos que atendem essa mulher não podem ser os mesmos equipamentos que atendem outros tipos de violência. Falta equipe multidisciplinar, uma pessoa que atenda adequadamente. Já é muito caro ela ter que falar de algo que acontece na casa dela.
Para Vanda, esta é uma realidade que precisa ser dialogada pela sociedade, “mas mais que isso, é preciso que o poder público tome para si a responsabilidade”.
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*Colaborou Stefani Ceolla
Mulheres negras morrem mais
Divulgado em junho, o Atlas da Violência 2017, um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revela um cenário alarmante para as mulheres negras. Enquanto a mortalidade daquelas não negras reduziu 7,4% entre 2005 e 2015, o índice de mortes de mulheres negras teve aumento de 22% no mesmo período. São 3,1 mortes de mulheres não negras contra 5,2 mortes de mulheres negras no Brasil. Veja os dados de Santa Catarina na comparação com o país:
Taxa de homicídios de mulheres (por 100 mil habitantes)
SANTA CATARINA
2005: 2,2
2006: 3,0
2007: 2,3
2008: 2,7
2009: 2,9
2010: 3,4
2011: 2,3
2012: 3,1
2013: 3,0
2014: 3,2
2015: 2,8
BRASIL
2005: 4,1
2006: 4,2
2007: 3,9
2008: 4,1
2009: 4,3
2010: 4,4
2011: 4,4
2012: 4,6
2013: 4,6
2014: 4,6
2015: 4,4
Taxa de homicídios de mulheres negras (por 100 mil habitantes)
SANTA CATARINA
2005: 1,7
2006: 4,2
2007: 1,6
2008: 2,1
2009: 2,0
2010: 3,6
2011: 1,2
2012: 3,7
2013: 3,3
2014: 4,3
2015: 4,0
BRASIL
2005: 4,3
2006: 4,6
2007: 4,3
2008: 4,6
2009: 4,9
2010: 5,2
2011: 5,3
2012: 5,5
2013: 5,4
2014: 5,4
2015: 5,2
Múltiplas opressões
O Instituto Patrícia Galvão – Mídia e Direitos reúne dados sobre violência contra a mulher. Abaixo, um compilado sobre as violações praticadas contra as negras:
— A mulheres brancas recebem 74% do rendimento médio dos homens, mesmo quando possuem um nível de instrução mais elevado, já as mulheres negras atingem apenas 41% (IBGE/2014);
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— 58,86% dos registros de violência doméstica referem-se a mulheres negras (Central de Atendimento à Mulher — Ligue 180/2015);
— 68,8% das mulheres mortas por agressão são negras (Diagnóstico dos homicídios no Brasil/ Ministério da Justiça/2015);
— As negras têm duas vezes mais chances de serem assassinadas que as brancas. Taxa de homicídios por agressão: 3,2/100 mil entre brancas e 7,2 entre negras (Diagnóstico dos homicídios no Brasil/Ministério da Justiça/2015);
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— Entre 2003 e 2013, houve uma queda de 9,8% no total de homicídios de mulheres brancas, enquanto os homicídios de negras aumentaram 54,2% (Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil (Flacso, OPAS-OMS, ONU Mulheres, SPM/2015);
— As negras são maioria entre as vítimas de tráfico de pessoas (Ministério da Justiça);
— As mulheres negras também registram mais ocorrências de assédio moral e sexual no trabalho (Ministério Público do Trabalho);
— As mulheres negras são 53,63% das vítimas de morte materna, considerada por especialistas como uma ocorrência evitável com acesso a informações e atenção adequada do pré-natal ao parto (Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde/2015);
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— 65,9% das mulheres submetidas a algum tipo de violência obstétrica no Brasil são pretas ou pardas (Estudo “Desigualdades sociais e satisfação das mulheres com o atendimento ao parto no Brasil”/Cadernos de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz/2014).
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