Nesta quinta-feira (07), o filme “Ainda Estou aqui”, primeiro longa original Globoplay, indicado pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil na disputa pelo Oscar 2025, estreia nos cinemas de todo o Brasil. O que poucas pessoas sabem é que a obra é uma adaptação do livro “Ainda Estou Aqui”, de Marcelo Rubens Paiva.

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Lançado em agosto de 2015, a obra é uma narrativa da história vivida pela família do autor. Nas telas de cinemas, Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, mãe de Marcelo, é interpretada por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, em diferentes fases da vida, e o pai, o deputado Rubens Beyrodt Paiva, é retratado pelo ator Selton Mello.

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Livro que deu origem ao filme “Ainda Estou Aqui”

Em uma narrativa em primeira pessoa, Marcelo mergulha no passado para contar a história da mãe e do pai, morto durante a ditadura, e os impactos da Ditadura Militar no Brasil para o país e em especial a luta de sua família para que os horrores cometidos contra a humanidade entre 64 e 85 não fossem esquecidos.

Em um vai e vêm no tempo, Marcelo conta desde história sobre as raízes italianas da família, dos momentos vividos com os primos, tios, avôs, irmãs e pais na fazenda de dois mil e quinhentos alqueires onde o avô plantava banana e mexerica, assim como relembra como os pais se conheceram, e se aprofunda na vida e morte do pai e em como a mãe, Eunice, teve papel fundamental nos anos que se seguiram durante o regime autoritário e depois do fim dele.

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A obra resgatada desde a vida da família quando o golpe começou, até a prisão e morte de Rubens Paiva, a luta da mãe e o passar dos anos da vida de Eunice até a velhice.

Vida e morte de Rubens Paiva retratadas no livro “Ainda Estou Aqui”

Em 20 de janeiro de 1964, seis militares entraram na casa família Rubens Paiva. Dois levaram o ex-deputado cassado, Rubens Paiva, para prestar depoimento. Outros quatro ficaram com a família, dentro de casa, com cortinas e portas fechadas, impedindo que eles saíssem e levando para prestar depoimento qualquer amigo da família que chegasse ao local. O pequeno Marcelo, autor do livro, com 11 anos, foi responsável por escapar pela garagem e correr pelas ruas da cidade para entregar a amigos dos pais um bilhete escrito pela mãe. Foi ao abrir o papel que soube o que estava em casa: “Rubens foi preso, ninguém pode vir aqui, senão é preso também”, relatou com coragem Eunice.

A prisão de Rubens Paiva aconteceu mais de seis anos depois de ele ter o mandato cassado pela ditadura. Durante esse tempo que antecedeu sua prisão e morte, Rubens chegou a tentar fugir do país e ficou exilado na embaixada da Iugoslávia, no Rio de Janeiro. Depois viajou pelo mundo. Fora do Brasil, o ex-deputado passou meses longe da mulher e dos filhos.

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As ações do marido fizeram Eunice desconfiar que ele, cassado e visado, “fazia alguma coisa contra o regime que combateu e contra quem perdeu” e sabia de detalhes das entranhas da luta. Isso porque o marido já demonstrara publicamente em 64 que era contra o regime autoritário, tendo, quando o golpe se tornou uma realidade, entregue uma arma para a esposa e os dois então dormiram com o dedo no gatilho à espera que militares pudessem irromper no apartamento que a família estava.

Filha e Eunice também foram levadas ao DOI CODI

Mas em janeiro de 71, um dia depois de Rubens sair para nunca mais voltar, a esposa Eunice e a filha mais velha Eliana, também foram levadas ao DOI-CODI do Rio de Janeiro para serem interrogadas. Vendadas, foram fichadas e passaram a precisar responder perguntas. Com três dos seis membros da família Rubens Paiva presos, os outros três foram separados e enviados cada um para um lugar por familiares e amigos.

A jovem, menor de idade à época, foi liberada no dia seguinte. Já Eunice passou 12 dias presa no DOI-CODI, sem notícias dos filhos, sem ver o sol, sem visitas e por dias esquecida em uma cela. Naqueles dias, ainda sem saber o motivo da prisão e que o marido já havia sido morto, um soldado entregou para ela um chocolate e disse não concordar com o que estava sendo feito. Marcelo relata no livro que quando a mãe estava presa, se sentia “contraditoriamente aliviada”, pois viu uma foto do marido e acreditou que ele estava vivo e no mesmo local que ela.

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Em uma relato emocionante, Marcelo Paiva dá a oportunidade do leitor ver a dor do filho revisitando a tortura do pai nas páginas de “Ainda Estou Aqui”. O escritor coloca o telespectador da história da família dentro de uma cabeça imaginária do pai, e pondera sobre o que Rubens Paiva deve ter se questionado nos momentos finais de vida, após perder o “timing” de fugir e a oportunidade de não só preservar a própria vida, mas também a da família.

Imaginar o que o pai passou e o que se passou na cabeça dele só foi possível anos depois, quando pessoas que estavam detidas no mesmo lugar que o deputado cassado relataram terem ouvido seus gritos durante a tortura imposta à ele. O ex-preso político Edson de Medeiros foi um dos que presenciou o sofrimento de Rubens na mão dos militares. Relatou ao Ministério Público Federal (MPF) que ouviu os gritos dele abafados pela música Jesus Cristo e depois viu os agentes “retirarem da cela um corpo inerte e totalmente coberto”.

“Imaginar este sujeito boa-praça, um dos homens mais simpáticos e risonhos que muitos conheceram, aos quarenta e um anos, nu, apanhando até a morte… É a peste, é a peste, Augustin. Dizem que ele pedia água a todo momento. No final, banhado em sangue, repetia apenas o nome. Por horas. Rubens Paiva. Rubens Paiva. Ru-bens Pai-va, Ru… Pai. Até morrer”. Marcelo Rubens Paiva, em “Ainda Estou Aqui”, biografia de sua família

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Na biografia familiar, Marcelo conta que a mãe talvez nunca tenha perdoado a onipotência e teimosia do marido, que “queria lutar quixotescamente numa guerra já perdida” e assim arriscou a vida de toda família. “Talvez a dor da tortura não chegasse aos pés da descoberta de que tomou decisões erradas, arriscou a vida da mulher e dos filhos, crianças ainda. Deve ter sido sua derradeira tortura”, relata o filho em “Ainda Estou Aqui”.

Por anos, ela não o perdoou por colocar a família em risco, numa luta desigual, desorganizada, praticamente perdida. Para muitos, meu pai foi um herói que não fugiu à luta. Para ela, deveria, sim, ter seguido para o exílio, quando soube que a família poderia passar pelo que passou. Mas lutou por ele a vida toda. Lutou para descobrir a verdade, para denunciar a tortura, os torturadores. Marcelo Rubens Paiva, em “Ainda Estou Aqui”

A versão contada por testemunhas é muito diferente da versão oficial apresentada e reafirmada pelo Exército durante anos sobre a morte do marido de Eunice e pai de Veroca, Eliana, Nalu, Babiu e Marcelo. Segundo o alto escalão do exército, Rubens teria sido sequestrado por terroristas enquanto fazia reconhecimento de aparelhos em um fusca. Versão só desmentida oficialmente em 2014.

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Rubens Paiva morreu no ano que o único filho homem completou 11 anos, o tornando o único homem da casa. “Meu olho ficou triste, como de nenhum outro moleque. Muitos passaram a me evitar. Eu era filho de um terrorista que atrapalhava o desenvolvimento do país, eles aprendiam com alguns pais e professores, liam na imprensa, viam nos telejornais (…) A censura e o milagre brasileiro cegavam”.

Heroína da família

Marcelo narra que agradeceu internamente aos miliares por Eunice não ter sido morta: “Obrigada por não terem matado minha mãe”. Além disso, conta que soube que a história da mãe, a quem descreve como a “heroína da família” precisava ser contada no dia que o pai “morria por decreto”, ao ver a mãe levantar o atestado de óbito para a imprensa.

Gesto que só ocorreu após 25 anos de luta e espera para que a morte por tortura de Rubens fosse reconhecida e se tornasse uma morte por decreto. Em 23 de fevereiro de 1996, se fez história, ao ser entregue à família o atestado de óbito de Rubens Beyrodt Paiva, nos termos do artigo 3º da Lei 9140, de 4 de dezembro de 1995, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas no período entre 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, quando centenas de pessoas foram mortas pela Ditadura Militar no Brasil.

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Em “Ainda Estou Aqui”, Marcelo mostra a força de uma mulher que seguiu lutando para que não só a morte de Rubens Paiva fosse reconhecida, mas de todos os mortos pelo regime autoritário. “A família Rubens Paiva não é vítima da ditadura, o país que é. O crime foi contra a humanidade e não contra o Rubens Paiva”, disse Eunice inúmeras vezes para os filhos.

A mesma mãe, que aos 18 anos entrou na faculdade de Letras do Mackenzie em primeiro lugar, repetiu o feito aos 42 anos. Já viúva e com os filhos para cuidar, ela entrou para direito e se transferiu para a mesma faculdade que fez o primeiro curso e ao longo dos anos que sucederam a morte do marido foi firme ao defender: “A Família Rubens Paiva não chora na frente das câmeras, não faz cara de coitada, não se faz de vítima e não é revanchista. Trocou o comando, continua em pé e na luta.

Nas mais de 300 páginas, Marcelo mergulha na relação com a mãe, que era de uma “objetividade abismal”. Relata que por vezes quis que ela fosse mais carinhosa como tias e primas e que inclusive queria ouvir sermões, como quando a namorada de Marcelo engravidou e ele procurou Eunice pedindo dinheiro para que a jovem fizesse um aborto. Ela apoiou sem reprimendas, ou quando ele pegava o carro, ainda menor de idade, para passear pela cidade e fumar com os amigos, e ela ao invés de brigar, dizia que se ele fosse parado era pra avisar que o documento da Ordem dos “A-de-vo-ga-dos” da mãe estava no porta-luvas.

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O mergulho no passado da mãe cita Lula, que quando ainda era líder sindical dos metalúrgicos visitou a casa da família Paiva. E com quem Eunice, considerada “um ícone da redemocratização, dividiu a luta pela Anistia, pelas Diretas, pela redemocratização.

Mas ela não parou por ai, passou a advogar pela causa indígena, nasceu então uma outra e nova Eunice, uma que passou a ser conhecida como Eunice Paiva, não Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva ou a esposa de Rubens Paiva. Uma mulher que viu semelhanças entre o que aconteceu na ditadura ao que se estava sendo praticado contra comunidades indígenas, após ouvir relatos de torturas e desaparecimentos de povos assim como os que o marido e os parceiros contra a ditadura foram submetidos. Passou a ser conhecida como autoridade em direito indígena.

E foi assim, que nos anos que se seguiram após o fim da ditadura, os filhos viram renascer uma outra mãe.

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A importância da memória

No prefácio do livro, Marcelo traz a história de trás pra frente. Relembrando quando em 2008, depois de 48 anos, Marcelo “virava mãe da própria mãe”, após Eunice, advogada, tanto de familiares, amigos e também de figuras e empresas importantes ao longo da vida, ficou “à deriva da própria memória”, ao ser diagnosticada com Alzheimer. Sem conseguir lembrar de coisas importantes, a mãe de Marcelo, Veroca, Eliana, Nalu e Babiu passou a precisar dos cuidados da família. E no dia 30 de janeiro de 2008, Marcelo assumia a tutela de Eunice, assumindo assim a responsabilidade jurídica e criminal da mãe, de 77 anos.

Ao falar do esquecimento da mãe, Marcelo aborda o poder e a importância da lembrança e da memória, fundamentais quando o assunto são acontecimentos históricos como a Ditadura Militar. Quando ainda estava viva, Marcelo falava da mãe já no passado. Mas ela fez questão de lembrar, “caso alguém não tivesse reparado”: “Ainda estou aqui”

Eu ainda estou aqui. Ainda estou aqui.
Sim, você está aqui, ainda está aqui.
Minha mãe, aos oitenta e cinco anos, não entrou no Estágio IV, o pior de todos. Sua vida tem muitos atos. Teremos mais um. Enquanto a morte do meu pai não tem fim

Marcelo Rubens Paiva, Ainda Estou aqui.

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