A suspensão das exportações de pescado brasileiro para a União Europeia, que passou a valer nesta semana, é o mais recente capítulo de uma sucessão de entraves no setor, que se arrastam há pelo menos dois anos. Falta de estatísticas, de gestão eficiente e denúncias de corrupção fazem parte de um roteiro que coloca em risco o futuro da pesca no país e atinge especialmente Santa Catarina, que concentra o maior polo pesqueiro nacional, na região de Itajaí.
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Um dos únicos armadores do país autorizados a capturar peixe-sapo, conhecido no exterior como tamboril, o empresário itajaiense Manoel Cordeiro foi um dos mais impactados pela suspensão das exportações. Em 2017 ele enviou 360 toneladas de pescado à Europa, e meses atrás negociou com uma empresa na Espanha a venda de toda a sua produção anual.
Os espanhóis acompanharam a descarga do peixe, em Itajaí, e o processo passou no crivo. Mas a suspensão das exportações tornou o negócio incerto. Esta semana ele fez os últimos ajustes no barco, para voltar ao mar _ ainda sem saber se terá para quem vender o peixe. Além da Europa, outro mercado do peixe-sapo é a Coreia do Sul. O preço, no entanto, é 12,5% mais baixo.
_ Como só tenho permissão para peixe-sapo, se não conseguir outro mercado eu tenho que parar_ diz.
Entre os pescadores, há temor de que as exportações travadas resultem em demissões. Somente a exportação absorve cerca de 10 mil trabalhadores em Santa Catarina, que tem um volume anual de 2 mil toneladas de pescado enviadas ao exterior.
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Cassiano Fuck, um dos maiores exportadores de ova de tainha em Santa Catarina, investiu no ano passado US$ 50 mil para expandir mercado na Europa, que é a principal consumidora do produto _ o mais valorizado da pesca catarinense. A empresa dele, em Itajaí, enviou em 2017 o equivalente a US$ 2 milhões em ovas, principalmente para a Itália. A suspensão tem causado grande apreensão, especialmente por não haver ainda um prazo para terminar.
_ Se o setor não se mexer, (a suspensão) é algo que levará dois, três anos para reverter _ alerta o empresário.
Esta não é a primeira vez que os exportadores de pescado têm problemas no Brasil. Em 2016, logo que a pesca foi absorvida pelo Ministério da Agricultura (Mapa), depois do Ministério da Pesca ser extinto, houve atraso na emissão dos certificados de captura, documentos necessários para o envio de pescado à Europa. Cordeiro, o armador que trabalha com peixe-sapo, recebeu contêineres de volta mais de uma vez, porque o certificado não foi emitido a tempo.
A suspensão das exportações para a União Europeia foi uma decisão do Mapa, em resposta a um relatório que apontou irregularidades que não haviam sido sanadas desde a última inspeção, em 2012. A medida foi uma maneira de evitar um embargo unilateral por parte dos países europeus, que seria mais difícil de reverter.
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Especialistas ouvidos pela coluna disseram que, embora tenha assustado o setor produtivo, a medida foi acertada. Por ser um problema apontado pela própria União Europeia, que indica problemas na regulação e na fiscalização no Brasil, suspender as exportações é um “aviso” ao mercado internacional de que o Brasil está disposto a fazer as adequações necessárias. Caso contrário, o governo brasileiro colocaria em cheque seu próprio sistema de fiscalização _ inclusive em relação a outros produtos.
É diferente da Operação Carne Fraca, em que a denúncia partiu dos próprios órgãos regulatórios brasileiros. Para o mercado, foi uma demonstração de que o país estava atento à qualidade do produto.
Controle de metais pesados e de desembarques aparecem em auditoria
Três pontos aparecem no relatório da União Europeia como problemas no pescado brasileiro. Nas embarcações visitadas, algumas precisam melhor o controle de temperatura e de maior cuidado com a qualidade da água dos barcos. Há pedido para verificar a regulamentação dos locais de desembarque. E, por fim, para melhorar o controle de metais pesados, como cádmio e estrôncio, no peixe que é exportado. Essa última questão foi considerada parcialmente corrigida desde 2012, quando foi feita a penúltima vistoria. Mas os europeus pedem que as indústrias realizem mais testes.
Em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, seis empresas tiveram irregularidades identificadas pela auditoria _ por isso o restante dos empresários se sentiu “punido” injustamente com a suspensão das exportações. Entretanto, embora o setor produtivo alegue que não foi informado pelo governo sobre os questionamentos da União Europeia, os itens estão disponíveis na internet, em um site mantido pela própria organização, onde estão os relatórios de auditorias e análises em alimentos e saúde.
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Chefe do Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Mapa em Santa Catarina, Clóvis Serafini informou, por e-mail, que a fiscalização é feita dentro das indústrias periodicamente e, quando são identificados problemas que prejudiquem a integridade sanitária do pescado são tomadas providências para que o produto não chegue ao consumidor. “Os achados apontados pelas autoridades europeias, que culminaram na recente suspensão das exportações de pescados para aquele mercado, não têm ligação direta com problemas de sanidade nos pescados brasileiros que possam impactar na saúde da população”, explica.
Há, no entanto, a necessidade de aumentar a fiscalização. A indústria brasileira cresceu, as exportações também, mas o volume de fiscais no Ministério da Agricultura não aumentou na mesma proporção. Em nota, o Sindicato Nacional dos Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical) creditou a crise à falta de pessoal e de capacitação na inspeção e na fiscalização agropecuária no Brasil, agravada pelas constantes mudanças na gestão da pesca brasileira.
Três ministérios em dois anos
O Ministério da Pesca foi uma das pautas extintas pela então presidente Dilma Rousseff (PT), no final de 2015, como forma de enxugar a máquina pública. O escândalo da Operação Enredados, deflagrada meses antes pela Polícia Federal, que investigou a negociação de licenças de pesca e levou autoridades e representantes sindicais à prisão _ inclusive em Santa Catarina _ ajudou a colocar o ministério na mira.
Desde então a Secretaria Nacional de Pesca, que passou a responder pelo setor, já “mudou-se” três vezes. Primeiro, para o Ministério da Agricultura, onde deu os primeiros passos para reestruturação. Demorou, mas o Mapa estava aos poucos absorvendo as demandas da pesca e começou a colocá-las em dia. Em março do ano passado, no entanto, o presidente Michel Temer (PMDB) decidiu transferir a pesca para o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC).
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A transferência teria sido negociada politicamente com o PRB, partido interessado na gestão pesqueira. A mudança, no entanto, deixou a pesca com um “pé” em cada ministério: parte das atividades não podem ser geridas pela indústria, já que se trata de extrativismo, e permanecram no Mapa.
Em novembro, a pesca foi absorvida pelo gabinete da Presidência da República. A mudança, no entanto, não ocorreu efetivamente. A Secretaria Nacional de Pesca está temporariamente lotada em uma sala do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sem estrutura de trabalho.
Apesar da transferência, ainda é o MDIC que responde à imprensa sobre a pesca. Questionado sobre os problemas que envolvem o setor _ entre eles a falta de estrutura, o ministério respondeu apenas que “não teve tempo hábil para levantar as informações solicitadas”.
Até agora, a Secretaria Nacional de Pesca não se manifestou oficialmente sobre a suspensão da exportação do pescado brasileiro.
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Gestão depende de estatísticas
O vaivém entre ministérios é recente, mas a falta de gestão no setor pesqueiro não é novidade. Ao longo dos anos, faltam pesquisas e dados estatísticos oficiais contínuos, que auxiliem na tomada de decisões. Essa falta de informações foi o que ocasionou a judiacialização da pesca da tainha, que determina, em curto prazo, a extinção da captura pela frota industrial.
Outro sinal da falta de gestão reflete na pesca do atum. No ano passado, pesquisadores ligados ao Subcomitê Científico do Atum e Afins pediram demissão coletiva por falta de recursos para coleta segura de dados. Isso agravou a situação do Brasil junto à Comissão Internacional para Conservação do Atum do Atlântico (ICCAT), que há anos não recebe dados concretos brasileiros.
Se o problema não for resolvido até março, o Brasil poderá perder a autorização para captura do atum, que é alvo de pelo menos 60 embarcações em Santa Catarina.
_ Para traçarmos uma política adequada precisamos saber quem pesca, o que pesca, onde pesca, quanto, quando e como se pesca. O que é trazido para terra, para ser comercializado, e o que é descartado de volta ao mar. De posse das informações, precisamos de financiamento para pesquisa aplicada. Isso é o que gera recomendações técnicas e politicamente isentas, que devem ser discutidas com a sociedade de forma organizada e estruturada _ diz a bióloga Mônica Peres, diretora da ONG Oceana no Brasil.
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A instituição tem feito um trabalho paralelo para obtenção de dados estatísticos para a pesca. A última iniciativa foi o Tainhômetro, que permitiu aos próprios pescadores fazer a contagem da tainha capturada em Santa Catarina. Os números poderão embasar o estabelecimento de cotas de captura para a tainha, que são pleiteadas pelo setor produtivo.
_ O manejo de cada pescaria deve ser um processo contínuo, gradual, planejado. Dessa forma, saberemos quais serão as regras que irão vigorar em 2,3, 5 anos. Cabe ao setor pesqueiro cumprir as regras acordadas, e produzir informações confiáveis de sua atividade. São eles que sabem o que e quanto pescaram. E cabe ao governo organizar um sistema eficiente, que não permita que a pesca se autodestrua, gerando sobrepesca dos seus recursos-alvo e desequilíbrio em seus ecossistemas _ diz Mônica.
Embora ainda resistente, o setor produtivo tem percebido a necessidade de uma gestão sustentável de pesca para que a atividade perdure. Em outubro o Sindicato dos Armadores e da Indústria da Pesca de Itajaí e Região (Sindipi) e o Coletivo Nacional de Pesca (Conepe) trouxeram a Santa Catarina pesquisadores e representantes do governo da Noruega, país que foi um dos pioneiros em adotar medidas alternativas para o controle de pescaria.
O embaixador norueguês, Nils Martin Gunnen, relatou a séria crise causada pelo excesso de capturas _ a sobrepesca _ pela qual o país passou nas décadas de 1960 e 1980, e como ela foi resolvida com união entre a indústria pesqueira, governo e pesquisadores, em busca de um denominador comum.
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Os problemas da pesca:
Sobrepesca – Não há controle no aumento do esforço de pesca no Brasil. Em tese, “todo mundo pode pescar”, o que tem sobrecarregado algumas espécies.
Pesca da tainha – há indícios de sobrepesca e proposta para instituir cotas de captura. O Ministério do Meio Ambiente reluta em aceitar as cotas e defende medida judicial que acaba com a pesca industrial.
Atum – por falta de dados estatísticos, o Brasil pode perder autorização internacional para capturar atuns. Isso afetará não apenas as exportações, mas também o abastecimento do mercado interno.
Portaria 445 – pesquisadores listaram espécies que estão ameaçadas de extinção e precisam ter a captura suspensa _ é o caso de alguns tipos de raias e tubarões. O setor produtivo discorda e reclama das multas pesadas que recebe ao capturar espécies proibidas.
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Estatística – faltam dados consolidados e constantes sobre o que se captura no Brasil. Informações vindas do sistema de rastreamento via satélite e dos “mapas de bordo”, que indicam a localização dos barcos, estariam encaixotados na Secretaria Nacional de Pesca devido às constantes mudanças.
Documentação – a emissão de licenças para embarcações e de carteirinhas de pescador, necessárias para os trabalhadores embarcados, está atrasada há meses. A mudança do Ministério da Agricultura, que tem bases regionais, para o Ministério da Indústria, agravou o quadro.
