A Inteligência Artificial está literalmente invadindo nossas vidas nas mais diversas áreas, impactando profundamente a forma como nos relacionamos com o mundo e com as pessoas. Na vitivinicultura, não é diferente: estamos acompanhando o que a IA pode fazer e até onde pode chegar neste universo absolutamente sensorial, emocional e humano que é o dos vinhos. Até que ponto a transformação da cadeia de produção vai melhorar a qualidade do vinho que chega à nossa taça? Muitas dúvidas, dilemas e questionamentos nos fazem refletir profundamente a este respeito, tendo consciência de que esta mudança está apenas começando.

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Mas o que podemos esperar de mudanças nos vinhos? Será que teremos melhores safras, vinhos mais acessíveis, sustentáveis, de alta qualidade e com alma? Porque, sim, o vinho tem alma! Na prática, a Inteligência Artificial está transformando bastante o mundo dos vinhos, indo da produção até a experiência do consumidor. O avanço da IA na viticultura tem causado uma calorosa discussão entre as pessoas do setor: uns a veem como verdadeira aliada, enquanto outros a encaram como uma grande ameaça para a cadeia de produção do vinho.

Com relação à preocupação sobre a IA substituir empregos em diversos setores, os produtores de vinho acreditam que os humanos seguirão sendo essenciais na “criação” dos vinhos, com a IA atuando apenas como uma ferramenta para otimizar processos. No vinhedo australiano Mount Langi Ghiran, por exemplo, uma solução de IA monitora os níveis de água e as previsões de colheita, permitindo um planejamento mais preciso do uso de equipamentos de transporte. Já a Viña Concha y Toro, do Chile, utiliza IA para obter estimativas de rendimento mais precisas e coletar informações detalhadas sobre suas uvas. A IA também prevê o volume de uvas de cada vindima, considerando variáveis como clima, umidade, radiação e vento, ajudando a mitigar os impactos das mudanças climáticas. Outro exemplo de viticultura com alta tecnologia acontece no deserto de Negev, em Israel, onde a irrigação de altíssima precisão libera cada gota de água e nutrientes de forma quase individualizada para cada planta de vitis vinifera, conforme a necessidade.

Como sabemos, um vinho pode ser monovarietal — feito somente com uma uva — ou multivarietal, também chamado blend, que mistura duas ou mais uvas. No Rio Grande do Sul, na Vinícola Casa Tertúlia, nasceu o primeiro vinho no mundo cujo blend foi escolhido pela IA. O vinho foi produzido com a combinação das uvas Marselan, Cabernet Sauvignon, Merlot e Teroldego, de diferentes safras. O “degustador virtual”, isto é, a IA, analisou mais de 10 mil combinações possíveis para formular a “receita” perfeita — a quantidade exata de cada uva para chegar ao melhor blend possível.

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Atualmente, laboratórios e até startups estão desenvolvendo sensores de ponta para decodificar os aromas contidos no vinho. Em São Carlos (SP), pesquisadores criaram nanosensores de celulose que florescem na presença de taninos — componentes importantes do vinho que definem corpo, sabor e estrutura, sobretudo nos tintos. Tecnologias como essa também permitem mensurar, de forma rápida e precisa, os níveis de ácidos, álcool, açúcares e compostos voláteis dos vinhos. Com equipamentos baseados em IA, é possível realizar análises químicas de última geração, ajudando enólogos a ajustarem seus blends e a maximizar ou minimizar características específicas do vinho.

Outro aspecto do uso da IA envolve análises sensoriais baseadas em big data, nas quais algoritmos mensuram e decodificam as preferências do consumidor, chegando até a prever tendências de consumo. Softwares de análise processam padrões de compra e feedbacks coletados em redes digitais, permitindo identificar preferências de perfis de vinhos por aromas, teor alcoólico ou até estilos. Isso possibilita adaptar rótulos e produtos para nichos específicos, tudo com base em modelos estatísticos.

Durante toda a trajetória da espécie humana, passamos por momentos históricos, fases culturais e sociais, e vimos novos instrumentos e hábitos sendo incorporados ao cotidiano — inclusive novas formas de pensar sobre os mais diversos assuntos. A IA é apenas mais um instrumento: recomenda filmes de acordo com nossas buscas, nos direciona para o que mais consumimos e “aprende” com base nos nossos padrões. Ela segue instruções programadas, mas não possui consciência nem emoções, como nós, humanos, em toda a nossa complexidade.

Isso me traz incertezas e inseguranças legítimas sobre a utilização das IAs, sobretudo em temas que envolvem questões individuais e éticas. Corremos o risco de uma padronização que, a mim, particularmente, assusta. Não estamos falando apenas de utilizar a IA para substituir trabalhadores em tarefas perigosas ou exaustivas, repetitivas, insalubres e arriscadas. O perigo real, ao meu ver, está no fato de os seres humanos por trás das IAs não tomarem boas decisões nos “comandos” e, assim, comprometerem o futuro da própria humanidade. Além disso, os profissionais do setor do vinho que não buscarem se qualificar e se aprimorar correm o risco de se tornarem obsoletos e descartáveis.

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Como consequência, todo o mundo do vinho sairia perdendo. Eu, honestamente, acredito que as máquinas jamais nos substituirão nos requisitos que mais nos diferenciam delas: sentimentos, coração, alma, energia, intuição, empatia e amor. Enfim, o que nos torna diferentes e únicos. Afinal, somos humanos, e não máquinas… e isso diz tudo!

Saúde!
Néa Silveira
@neasommeliere