Nas cavernas, o homem perseguia o cheiro do alimento – e saía à caça. No século 21, o cheiro mais perseguido é o da casa – o da segurança – a “rua” anda cada vez mais perigosa.

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A primeira coisa que emerge da minha infância é o cheiro de terra molhada. Parece lugar comum, e é. Mas é, também, a irresistível nostalgia olfativa que persegue todo o vivente. O cheiro de pão, por exemplo. Chegava de carrocinha, o padeiro na boleia, o quadrúpede puxador justificando o ditado “cavalo de padeiro”, parando, digamos, de 50 em 50 metros.

“Ensinado”, detinha-se em todas as casas do Largo Treze de Maio, o cheiro de pão fresquinho, impregnando o ar, anunciando a chegada da padaria móvel. Pão de trigo, de duas metades, o popular “bundinha”. Pão francês. Pão doce coroado de farofa. Cucas de banana. Pão de tranças.

Nunca mais se viu aquela carrocinha na paisagem urbana. Foi tragada pelo progresso. Empinado sobre duas rodas, o traseiro do “veículo” era dividido em dois compartimentos ligados por dobradiças. O padeiro anunciava a sua presença fazendo colidir a tampa do “guarda-pães” contra o batente desse compartimento. A vizinhança identificava o barulho – e começava a sair das portas e portões, em “roupas de estar em casa”, comprando pães variados, sem falar nas roscas de polvilho. O próprio padeiro fazia o troco e seguia rumo ao próximo freguês, levando o pão fresquinho na carroça e alguns micróbios na mão.

Na Praça da Matriz, início do século 20, reuniam-se os “pombeiros”. Os criadores do interior da Ilha e do continente vinham oferecer na praça as galinhas de angola, os perus, as poedeiras, as perdizes e – de quebra – os porcos, vivos, e mais alguns de seus sub-produtos “manufaturados”- as linguiças, os fiambres, as morcilhas.

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Não fui testemunha dos “pombeiros”, mas dos “verdureiros”. Pau de canga atravessado nos ombros, dois grandes balaios nas extremidades, eles povoaram minha infância de pura magia. Ali dentro dos cestos, as frutas, os legumes e as hortaliças. A freguesa apertava a fruta-de-conde, a “laranja-açúcar”. E descobria os caquis, os abacaxis:

– Quanto é o caqui? E o ananás?

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Carroças forradas de areia chegavam aos bairros, vindas das praias, comandadas pelo pregão dos “peixeiros”. Vejo minha avó espremendo a barriga das tainhas, examinando as ovas, regateando o preço. Sinto o cheiro das ovas fritas e a boca “embuchada” pela ingestão de duas grandes rodelas. Sinto a boca cheia. Sinto o cheiro. Sinto a vida.