A partir do início de abril, voluntários do Centro de Valorização da Vida (CVV) começaram a notar um crescimento acentuado na quantidade de contatos com pedidos de informação e ajuda. Os e-mails diários mais do que quintuplicaram, passando de uma média de 55 para 300. Os acessos ao site saltaram de 2,5 mil ao dia para 6,7 mil. Os telefones tocaram sem parar – em Porto Alegre, o número de ligações dobrou –, muitos deles acionados por adolescentes às voltas com sintomas depressivos e pensamentos suicidas. Vários desses jovens citaram, como gatilho para a ligação, o seriado 13 Reasons Why, que estreou no dia 31 de março na Netflix. “Eu me identifico com a Hannah”, contaram muitos deles.

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Hannah Baker é a personagem principal da série, uma estudante de Ensino Médio que tira a própria vida, mas antes deixa um conjunto de gravações em fitas cassete nas quais aponta as motivações que a teriam levado ao suicídio: bullying, violação da privacidade, assédio, incompreensão, estupro.

A série também abalou adultos, que ficaram alarmados e receosos em relação aos filhos, e mobilizou psiquiatras e psicólogos, muitos dos quais atiraram-se a maratonas madrugada adentro para terminar os 13 episódios e avaliar que tipo de impacto a peça de ficção poderia ter sobre seus pacientes. Em apenas duas semanas, o espinhoso tema do suicídio adolescente virou assunto de conversa nos consultórios, na escola, no café, na sala de jantar, nas redes sociais.

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Por um lado, essa repercussão teve um efeito que especialistas consideram positivo: chamou a atenção para um problema extremamente sério e que com frequência passa despercebido, abrindo caminho para que as pessoas estejam atentas a sinais de risco e que busquem auxílio. Um forte indício de que isso está acontecendo é justamente o aumento da procura pelos serviços de prevenção, como o CVV. A outra face da moeda, no entanto, é o temor, manifestado por vários profissionais, de que a maneira como o suicídio é abordado no seriado possa encorajar comportamentos parecidos.

– Estou acompanhando as repercussões com certa apreensão, mas ao mesmo tempo com uma expectativa positiva. Temos aconselhado aos pais que assistam também, que conversem, que deixem os filhos à vontade para falar sobre aquilo que a série desperta neles. Esse é a boa expectativa, a oportunidade de conversarmos sobre isso – afirma o psiquiatra Neury José Botega, professor da Unicamp e autor de livros como Crise Suicida: Avaliação e Manejo e Comportamento Suicida. – Por outro lado, sou crítico a características do seriado. Há uma romantização do suicídio, e a cena que mostra o suicídio, a nosso ver, não é recomendada. Está em todos os manuais de prevenção não transformar a pessoa que se mata em herói e não mostrar detalhes do método. São princípios não cumpridos pela série.

Outro profissional que demonstra preocupação é Rafael Moreno Ferro Araújo, coordenador do Comitê de Prevenção do Suicídio da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul (APRS). Quando conversou com ZH, ele ainda estava planejando ver os episódios, mas manifestava receio a partir das informações que tinha reunido:

– Há um período em que o adolescente passa a desidealizar os pais. Nessa frustração, busca outras figuras de referência e de identificação. Tendo acesso a esse tipo de mídia, modelo, pode se identificar e ter comportamentos semelhantes. Daqui a pouco, vamos ter jovens que vão querer fazer a mesma coisa, se matar e deixar gravações, achando que depois vão ser famosos, que as pessoas vão lembrar deles. Desse ponto de vista, é preocupante.

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Distância da realidade

A psiquiatra Berenice Rheinheimer, que em sua dissertação de mestrado abordou a tentativa de suicídio na infância e na adolescência, também acredita que o seriado pode desencadear mortes. Lembra que notícias de suicídio podem levar à imitação e que, quanto mais jovem se é, maior a influência dos outros. Para Berenice, o único aspecto positivo de 13 Reasons Why é o de trazer o assunto ao debate. A trama tem, segundo a médica, inúmeras inverossimilhanças na comparação com a vida real – a principal delas é o fato de a protagonista não apresentar doença mental.

– A grande maioria dos adolescentes que cometem suicídio ou que fazem tentativa de suicídio ou que se cortam sem a intenção de morrer têm alguma patologia mental. O bullying que a Hannah sofreu também é diferente do que acontece na realidade. Ela tinha amigos, ainda que mudasse de grupo quando acontecia um problema. Não era um bullying tradicional. A criança ou o adolescente que sofrem bullying geralmente não conseguem se relacionar, são perseguidos, alguns chegam a sofrer violência física. Não é isso que o seriado mostra.

Há posições mais otimistas. Christian Kieling, coordenador do Programa de Depressão na Infância e na Adolescência (Prodia) do Hospital de Clínicas, a princípio estava preocupado com algumas informações que recebeu e tratou de assistir a todos os episódios, depois que pacientes perguntaram se era apropriado ver a série ou não:

– Tinha lido muita coisa nas redes sociais, dizendo que no final se vangloriava o suicídio. Mas assisti e não fiquei com essa impressão. É preciso alertar que tem cenas muitos fortes e que o último capítulo é muito explícito. Não recomendaria para alguém que tem problema mental e está passando por um momento delicado. Mas acho que a série traz à tona o debate, e é fundamental que a gente possa falar sobre suicídio. Parte do problema, e o próprio seriado mostra isso, é a dificuldade de falar abertamente e de buscar ajuda observa.

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Diante da polêmica, o Netflix afirmou ter tratado o assunto com o máximo cuidado, recorrendo à consultoria de especialistas durante a produção. Também ressaltou que, ao final do último episódio, há um documentário de 30 minutos sobre o tema. Nele, o desenvolvedor do programa, Brian Yorkey, afirma que se trabalhou duro para que as imagens da morte de Hannah não fossem gratuitas: “Queríamos que fosse difícil de ver, para ficar claro que não há nada que valha a pena (no suicídio)”.

ONDE BUSCAR AJUDA

Centro de Valorização da Vida

Oferece ajuda por telefone, chat, skype, e-mail e presencialmente

Telefones 141 (24 horas, para todo o país) e 188 (gratuito, apenas para o RS)

www.cvv.org.br

facebook.com/cvv141

– O Programa de Depressão na Infância e Adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre tem limitações de atendimento, mas é possível pedir encaminhamento para lá em qualquer posto de saúde pública

SITES COM ORIENTAÇÃO

> Setembro Amarelo

> Movimento Conte Comigo

> Associação Brasileira de Estudos e Prevenção ao Suicídio

> Cartilha Suicídio: Informando para prevenir

Produzida pela Associação Brasileira de Psiquiatria e do Conselho Federal de Medicina. Disponível no site do CVV, na aba Conheça Mais ou em zhora.co/cartilha-prevenir

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