O catarinense Murilo Krieger, 75 anos, ocupa um dos postos mais importantes dentro da igreja católica no país. Desde 2011 está o Primaz do Brasil, posição ocupada pelo arcebispo de Salvador, a primeira diocese brasileira fundada em 1551. O brusquense começou sua trajetória em Santa Catarina, mas passou por Paraná e São Paulo antes de chegar à Bahia. Atualmente é vice-presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e uma vez por ano se reúne com o papa Francisco em um encontro tradicional da entidade no Vaticano. Em entrevista ao DC, dom Murilo fala sobre o trabalho de arcebispo em Salvador. Além disso, defende o atual posicionamento do líder da igreja católica no enfrentamento aos casos de pedofilia

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Como é o seu trabalho em Salvador?

Cheguei em março de 2011, há sete anos e meio. Aqui o povo me acolheu com muito carinho. É um povo aberto, generoso e simples, não é formal. Mesmo em casas muito pobres e simples, as pessoas convidam para um café e se mostram de bom coração. Ao longo desses anos, pude conhecer o jeito baiano de ser. São pessoas mais calmas, muito tranquilas. Cheguei à conclusão de que não conseguirei mudá-las, principalmente na questão dos horários. Eles sabem que sou rigoroso e riem comigo da minha pontualidade. Na medida em que fui conhecendo, fui vendo o drama dessa cidade, de praticamente 3 milhões de habitantes, com periferia muito populosa e muito pobre. Além da pobreza se vê muito de perto a miséria, porque a cidade não tem indústrias. Vive de serviços, especialmente do turismo. Com essa crise do Brasil, há vários anos, muitos restaurantes e hotéis foram fechando e muita gente ficou desempregada, sem outras perspectivas de trabalho. Então a gente nota que a miséria e a pobreza cresceram muito e isso é muito preocupante.

Por outro lado, cresce a economia informal, mas gera insegurança. Esse é outro problema, a insegurança. Em muitos lugares, na periferia, não se pode fazer nada à noite pelo medo que as pessoas têm de sair de casa, de voltar muito tarde para casa. Vai limitando o tempo para a gente encontrar as pessoas. Mesmo assim o povo concentra sua alegria e humor. Do ponto de vista religioso, aqui é uma cidade que tem muitas religiões. O católico, de modo geral, participa, reza, canta, tudo normal como em Santa Catarina e em qualquer outro Estado.

Existe diferença na fé entre uma região do país e outra?

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A religiosidade aqui é muito forte. Ela se expressa nos católicos, evangélicos e no candomblé. Há um grupo mais intelectual que tem mais esse sincretismo, pega um pouco de cada religião. Mas a maioria dos católicos não tem isso. Em algumas igrejas, há um pouco da presença especialmente do candomblé. As pessoas participam com grande respeito. Não mudamos nossos atos litúrgicos por causa deles, nunca proibiremos de participar. Essa religiosidade se manifesta de muitas formas. As grandes festas de padroeiros, por exemplo. Não há quem venha a Salvador e não vá ao Santuário do Bonfim, e o povo daqui vai muito lá. É um dos lugares onde encontro o povo mais atento para escutar uma homilia, uma explicação de evangelho. Gosto muito de celebrar lá. Quanto à ação pastoral, há os mesmos desafios que em outros lugares, mas aqui nota-se que há muito voluntariado, disponibilidade para os trabalhos da igreja, é só animá-los que respondem imediatamente.

O senhor falou sobre a questão da insegurança. A atual campanha da fraternidade também trata do assunto. Como a igreja católica pode ajudar o país nesse tema?

Em primeiro lugar, pregando a nossa mensagem, que é de paz, desarmar os corações. Noto que com essa tensão econômica, cresce o número de pessoas que vivem à margem da sociedade e dali para ser um marginal verdadeiro, o passo não é tão grande. Tem muita gente que vive com dignidade, mas têm aqueles que entram no campo do desespero. O desafio nosso é espiritual de desarmar corações e fazer voltar à esperança. Outro é a necessidade de uma ajuda imediata aos pobres. E temos aqui nas paróquias uma grande rede de solidariedade. Estamos incentivando aqui os empreendedores católicos, pessoa com pequenas indústrias e comércios. Eles se reúnem em oração e reflexão. Tenho insistido que a melhor forma de manifestar amor ao próximo é criar empregos. Sabemos que isso é um desafio, é algo responsável, mas eles têm sido sensíveis ao meu apelo. É a necessidade de lutar para não desempregar ninguém, o que sei que não é fácil.

A igreja, geralmente, está muito próxima das pessoas. Imagino que a situação econômica do país se reflita diretamente no dia a dia de vocês.

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Muito. Mas aí alguém pode dizer que isso não é problema da igreja, por isso que existem políticos, economistas… A verdade é que tratamos com seres humanos, não com anjos. Se os nossos fiéis fossem anjos a gente não precisaria se preocupar com isso. Mas Jesus também se preocupou com isso quando viu a multidão que o acompanhava, há três dias, faminta e que os próprios apóstolos colocaram o problema de como alimentar os 5 mil homens, sem contar mulheres e crianças. E Jesus disse: “dai-lhes vós mesmos de comer”. Ele queria que eles buscassem a solução. E ela foi original. Havia um menino com cinco pães e três peixes, Jesus os abençoou e os distribuiu à multidão. Jesus veio nos ensinar que não devemos ficar esperando só solução do alto. Se fizermos a nossa parte, Deus completa o resto. A gente nota esses pequenos gestos de solidariedade. E não estamos falando de pessoas que sejam ricas, mas sim que doam do seu tempo, do seu amor e se dedicam. E o meu bem vai se multiplicando. A gente vê que a solução dos nossos problemas não virá de algum milagre ou de uma alma generosa que de repente resolve mudar tudo, virá de pequenos gestos de solidariedade de multiplicação, de gestos de amor.

Passamos por um momento de eleições em que a intolerância se revelou com força. Como o senhor acha que isso pode ser enfrentado?

Em grande parte, isso é resultado da situação econômica, da insegurança. As pessoas estão muito raivosas, cada uma fechada nas suas ideias. Isso é muito difícil de dialogar, ao menos conhecer a maneira de pensar do outro, aceitar o diferente. Tenho pregado muito isso, que não podemos nos considerar combatentes de uma guerra porque daqui a pouco as eleições passam e o ódio e esses sentimentos ficam no coração das pessoas, que vão se manifestar de outras formas. Precisamos aprender que todos podem ter suas convicções, lutar por candidatos que acreditam, mas no respeito ao outro. Tanto como direita quanto a esquerda, todos ficam exacerbados, e a tensão aumenta a violência a partir de qualquer pavio que se acenda. Temos que entender que o Brasil, diferente de outros países, tem sociedade forte. Outros países dependem exclusivamente do governo. Aqui, mesmo que o governo vá mal, a sociedade consegue superar e buscar dar a volta por cima, buscar novos caminhos. Temos reservas de respeito e solidariedade, que estão se esgotando um pouco, e isso nos preocupa.

Como o senhor vê o atual momento da igreja católica?

Delicado. Todos esses problemas que estão aflorando aqui ou ali penso que no fundo acabam nos lembrando uma passagem do apóstolo Paulo: “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus”. Vejo assim: se uma pessoa tem câncer e ele não se manifesta, ela vai fazer um exame e descobre que está com câncer. Essa descoberta não é o mal, o problema é o câncer na pessoa. O exame apenas mostra o problema escondido. Vemos que por vezes a igreja, por descuido, admitiu pessoas para o sacerdócio que não tinham condições, tiveram comportamento errado, que muitas vezes era encoberto e agora vemos que é negativo, até para a credibilidade da igreja. Então o papa Francisco agora vê o problema e decidiu examiná-lo para tentar extirpar o mal para que isso não se repita. Deus está querendo nos mostrar que não podemos tapar o sol com a peneira, nem colocar os problemas para debaixo do tapete. Está na hora de enfrentá-los. Senão uma minoria acaba prejudicando o trabalho de uma imensa multidão. Temos mais de 400 mil padres, claro que bastam 200, 300 terem se comportando ao longo das últimas décadas que prejudica o prestígio de todos os outros.

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Esses fatos que atingem a imagem da igreja dizem respeito aos casos de pedofilia? Essa á a preocupação?

A gente vê que o católico que é convicto, tem boa formação, sofre com isso, chora e se sensibiliza. Dos católicos, um terço é convicto, conhece bem sua fé. Um outro terço tem sua ligação com a igreja, mais afetiva, de batismo, casamento, e não tem uma prática constante. No terceiro terço, estão o que foram batizados, mas sem ligação com a igreja. E esse grupo, claro, fica presa fácil de qualquer nova proposta. Só Deus não erra, só ele é a verdade. Se a igreja fosse perfeita, na hora que eu ou qualquer fiel entrasse, ela deixaria de ser perfeita. Porque todos levaríamos nossas limitações. E Jesus deixou claro que não veio para salvar os bons, ele disse: os bons não precisam de médicos, mas os doentes sim.

Para o senhor, então, essas questões, precisam ser enfrentadas?

Sem dúvida nenhuma. Jesus disse: a verdade os libertará. Tanto que o papa está com tolerância zero. Não importa quem erra, se é padre ou bispo. Se está provado que errou, ele merece. O que também está acontecendo é que qualquer notícia que não tem nenhum fundamento aparece como verdade. Eu, por exemplo, sou bispo. E recebo muitas denúncias. Na maioria dos casos, vou verificar e não têm nenhuma consistência. Por trás há desejo de vingança, retaliação, mas não tem consistência. É o preço que se paga nesse momento.

Onde está o caminho para a igreja católica a partir de agora?

Em primeiro lugar, confio no poder da oração. Temos que pedir a Deus que olhe com clemência e misericórdia para nós. A segunda, essa busca de transparência por parte da igreja faz com que melhore a credibilidade. Qual outra instituição do mundo, e não vou citar aqui, porque seria retaliado, faria o que a igreja está fazendo? Mas a gente sabe que são muitos grupos de profissionais e entidades em que esse problema de pedofilia é grave e sério. A igreja está se colocando, dando seu rosto para bater. É porque ela quer isso. Essa transparência da igreja também serve para mostrar aos que pretendem entrar na igreja e enganar os formadores e depois ter respaldo que as coisas não serão mais respaldadas. Essa transparência do papa Francisco é muito positiva porque deixa claro que não há espaços para quem não entrar com propósitos sérios. Tanto assim que desde o final do pontificado de João Paulo, passando por Bento XVI, a igreja começou a tomar medidas sérias e o número diminuiu drasticamente. A maioria dos casos que atualmente vieram à tona são de 1940 aos anos 2000.

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Como a igreja pode se aproximar dos jovens, ainda mais diante das novas tecnologias?

A linguagem dos jovens é a rede social, e a igreja precisa ocupar mais esse espaço através do próprio jovem. Eu como bispo me defendo, mas não tenho a facilidade de uso e nem a linguagem, então vale aquilo que o Conselho do Vaticano II dizia, que o jovem deve ser o primeiro e imediato apóstolo de outro jovem. Justamente por isso que o Papa convocou um sínodo que será em outubro com quase 500 pessoas para tratar como evangelizar os jovens. Ali estarão representantes de todos os países do mundo, cada um levando sua preocupação e sua esperança. E no final esse material é entregue ao Papa. E ele nomeará uma comissão que cuidará dessa proposta. Tenho certeza que haverá uma insistência de evangelizar pelos meios tradicionais, mas para atingir os jovens a igreja precisa se utilizar do bom uso das redes sociais.

Como o senhor vê o atual formato da missa?

Noto como um grande desafio. Não basta ter um evangelho que é uma boa nova. Isso é uma boa proposta. Dito num português de marketing, não basta ter um bom produto, você precisa saber apresentá-lo, ser atrativo para o outro. Noto que há uma necessidade dos nossos padres saberem se comunicar bem. Não basta estar convicto de uma verdade, é preciso saber transmitir uma verdade de uma forma que o outro entenda e a partir disso faça uma opção. Penso que esse sínodo será muito oportuno. Mas o Papa, há dois anos, num documento sobre a alegria, ele dedicou um capítulo sobre a homilia da missa pedindo aos sacerdotes que fossem mais dedicados no preparo, não só no conteúdo, mas na forma de apresentar aquele conteúdo. No passado, como havia apenas televisão, não havia problema que o padre falasse por meia hora na missa, até o pessoal ficava contente. Hoje, se falar mais de 10 minutos, todo mundo começa a se mexer na cadeira porque a vida é muito dinâmica. E esses 10 minutos precisam ser bem preparados e para poder atingir o coração das pessoas.

O papa Francisco vem sendo elogiado pelas pessoas. Por que ele é diferente dos outros papas?

Penso que o principal é porque ele é um Papa muito ligado ao povo no dia a dia. Quando foi arcebispo de Buenos Aires, pegava ônibus e metrô para celebrar missa nas periferias. Sempre brinco que se eu fizer isso em Salvador vou chegar sempre atrasado, porque o trânsito é muito complicado. Ele sempre manteve esse contato muito informal, deixa logo as pessoas muito à vontade. Essa informalidade é própria de quem sempre esteve perto do povo.

O que o senhor leva de SC para o sacerdócio?

As raízes da fé, de uma fé recebida em família. Levo o valor da família, esse é algo que os catarinenses têm muito a mostrar para o Brasil. Depois a organização, essa capacidade de organizar tudo, porque aqui a vida é muito intensa, se não fosse organizado o pessoal iria sofrer mais ainda. Trouxe a fidelidade da palavra dada. Quem está em Santa Catarina talvez não perceba que nem sempre é tão comum como aí. E trouxe acima de tudo o jeito descontraído de viver. Penso que a igreja não é minha é de Jesus. O primeiro responsável por ela é ele.

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O que o senhor espera do Brasil daqui para frente?

Espero que de tanto sofrimento tome força o bom senso. Se a gente olhar bem, grande parte dos nossos problemas é por falta de bom senso. É que vai se manifestar por falta de cultura, de respeito à propriedade, que não é do governo. Isso é do povo. Na medida em que dilapida o patrimônio público é o povo que terá menos hospital, menos segurança, menos estrada. Essa é a concepção que muitas vezes nossos políticos não têm. O Brasil não tem uma grande montanha de ouro que cada um está tirando um pouco mais de ouro do que deveria. O dinheiro é fruto do trabalho e salário que é para o bem comum. Então espero que de todas essas notícias de corrupção, todo esse sofrimento, essa campanha política, o Brasil não seja de um pequeno grupo, de uma determinada mentalidade. Ou o Brasil é de todos, ou será de ninguém. E aí passaremos por problemas que outros países estão passando.

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