Por Fernanda Volkerling/Especial
No site de uma das maiores e mais conhecidas agências de modelos do Brasil, a Ford, o casting feminino é composto por 227 mulheres. Destas, nem 10% são negras, apenas uma tem menos de 1,70m de altura e raríssimas são as que apresentam alguma pequena tatuagem aparente. Entre os homens, dos cerca de 115 nomes, a lógica se mantém a mesma. A página traz ainda uma seção separada com quatro modelos femininas ¿plus size¿ – as aspas são necessárias. Sobre cada uma destas pessoas, sabemos apenas sua altura, manequim, medidas corporais, tamanho do sapato, cor do cabelo e dos olhos. Diz o ditado que a beleza está nos olhos de quem a vê. A questão é saber com quais olhos estamos vendo: com os nossos ou com os de uma cultura excessivamente pautada para não aceitar a imagem da diferença e da singularidade, tanto no âmbito do corpo quanto das ideias e atitudes.
Continua depois da publicidade
Com até 100 convidados, os mini weddings ganham força entre casais
A Squad Brazil, agência de street casting que se define também como um coletivo de influenciadores, aposta na segunda opção, mas apenas para lançar uma fagulha em sentido contrário. No Instagram, onde boa parte do elenco é descoberto e apresentado, é possível notar uma pluralidade bem mais ampla de silhuetas, etnias, cortes de cabelo e estilos. Em suma, os rostos e corpos que a Squad oferece ao mercado publicitário parecem conter um componente da realidade brasileira que escapa – ou não interessa – às grandes agências.
Já virou lugar comum afirmar que a moda e a publicidade do século 21 vêm explorando, muitas vezes às últimas consequências, um conceito de beleza corporal bastante restrito e que, embora comece a dar sinais de desgaste em seu status hegemônico, ainda opera com certa tranquilidade em capas de revistas, passarelas, outdoors e comerciais de TV. Em uma ida à banca, qualquer pessoa pode constatar que, salvo raríssimas exceções, apenas dois fatores podem levar alguém, seja homem ou mulher, a estampar uma capa: a estética da magreza e do corpo eternamente jovem – ainda que isso não corresponda inteiramente ao real, mas a uma manipulação digital da fotografia – ou o status social, no caso de celebridades e personalidades de alguma maneira influentes. Esse modelo é um círculo vicioso difícil de quebrar: se de um lado as agências oferecem o que o mercado supostamente procura, também o mercado se vale do que as agências disponibilizam.
Continua depois da publicidade
Com apenas quatro meses de atividade, a Squad vem cavando um pequeno buraco – pequeno, mas já bastante significativo – neste modelo. Surgida da parceria entre a stylist e produtora Thais Mendes e a produtora executiva Patricia Veneziano, a partir de uma defasagem detectada por elas no mercado brasileiro em relação a grandes centros culturais como Londres e Berlim, capitais onde o casting de rua e o questionamento ao status quo da indústria já são práticas estabelecidas. Com uma proposta pioneira em ternos de Brasil, a Squad busca reunir um elenco que represente de maneira mais real a juventude brasileira contemporânea, com tudo o que ela possa conter de único, inovador e até mesmo de revolucionário. Além disso, é preponderante que todos os modelos tenham voz própria: estilo de vida, ideologias que defendem e outros projetos profissionais são tão importantes quanto um rosto que traduza a juventude brasileira.
– Muitas pessoas do casting fogem do padrão de alguma forma, e todas tem total liberdade pra serem elas mesmas. Muitas meninas da agência são declaradamente feministas, muitos são considerados outsiders, vindo de backgrounds de alguma maneira marginalizado pela sociedade, mas todos estão traçando seus caminhos de acordo com as próprias regras – descreve Thais, que responde pela direção criativa e de elenco.
Mais do que um catálogo de manequins vivos, a Squad tem o objetivo de trabalhar com a chamada youth culture em sentido mais amplo, abordando não apenas a imagem estática mas também o modo como esses adolescentes e jovens vivem, pensam e se relacionam. A chegada da Squad acabou causando furor no universo model, e chamando a atenção de uma enorme quantidade de jovens que não encontram representatividade nem oportunidades em outras agências.
– Sabíamos que seria um processo interessante, mas não imaginávamos que estaríamos causando uma pequena revolução. Temos muitos adolescentes e pessoas jovens seguindo o trabalho da Squad, as fotos e vídeos e depois os perfis de cada um dos modelos, e pra eles isso é quase revolucionário: uma agência que incentiva aquilo que em outros lugares é considerado um ¿defeito¿, os faz pensar que é ok ser você mesmo, não precisar se anular pra se encaixar em padrões impostos. Isso pra qualquer jovem que vive em uma cultura conservadora como a brasileira é inspirador.
Continua depois da publicidade
O corpo fala
Os padrões estéticos e culturalmente aceitos da forma humana, assim como a busca por adequação, acompanham a civilização pelo menos desde a Grécia antiga, quando os corpos eram exaustivamente trabalhados nas primeiras academias, de onde saíam soldados e atletas. De lá pra cá, a anatomia humana foi tanto escondida na Idade Média quanto glorificada a partir do Renascimento, época em que a nudez e as curvas voltaram a aparecer nas obras de arte. Já no século 20, as mudanças passaram pelo elogio à androginia, à voluptuosidade das curvas e, mais recentemente, à magreza. A era das super top models, nas décadas de 1980 e 1990, marca uma virada no modelo estético hegemônico: a beleza ditada pela publicidade passa a excluir o excesso, seja ele de curvas, de pele, de marcas ou mesmo de significados.

Nascida em Brusque, Pamela Molinari, tem mais de 50 tatuagens espalhadas pelo corpo, muitas feitas por ela mesma como hobby. Bailarina e com 22 anos de idade, por conta das tattoos chegou a ser recusada no casting de agências tradicionais – prova de que nem mesmo o corpo esguio e a juventude bastam para atender ao padrão estabelecido atualmente: via de regra é exigida também uma certa neutralidade, um certo silêncio do corpo como suporte para a moda.
Na Squad, encontrou um espaço possível para realizar o sonho de ser modelo e para contar sua história, ao mesmo tempo em que dá aulas de dança em Florianópolis, onde vive há cerca de um ano. O contato com a agência foi pelo Instagram, com o convite da direção de casting para ir a São Paulo fazer um shooting de teste – algumas imagens podem ser vistas no perfil @squadbrazil – No Brasil é difícil ser modelo tatuada. Fora daqui é bem mais fácil, existem marcas grandes que aceitam o fato de você ter várias tatuagens, ou mesmo de não ser alta nem magra. O mais importante pra eles é que você goste do que está fazendo, que seja uma pessoa com estilo. Aqui isso ainda não existia – afirma Pamela.

Também do Vale do Itajaí, a blumenauense Penny é mais uma das jovens em que a Squad vem apostando. Com 20 anos e bem menos de 1,70 de altura, ela está na agência desde dezembro do ano passado e já participou de algumas campanhas.
Continua depois da publicidade
– Eu nunca tinha trabalhado com outra agência nem como modelo antes. Um amigo me avisou que estavam montando a Squad e que o pessoal tinha gostado do meu perfil, então de um dia pro outro eu fui pra São Paulo conhecer – explica.
Há cerca de dois anos veio morar em Florianópolis com o objetivo de experimentar uma nova vida e descobrir aquilo que de fato lhe interessa. Além dos trabalhos que faz pra Squad, gosta de desenhar e também faz as vezes de babá dos pets dos amigos, pra ganhar algum dinheiro extra. Atualmente o plano é ingressar em uma faculdade de artes visuais e aprender a tatuar.
– Acho legal a proposta da Squad porque tá quebrando esse padrão que a moda tem já faz um tempo. Tem 150 pessoas no casting, todas interessantes, mas poucas teriam chance em outra agência de trabalhar com isso, ganhar dinheiro com isso. A Squad que tá dando oportunidade pra essa galera.

Com apenas 18 anos, Isadora Cordeiro é outra catarinense que ganhou lugar na Squad por também representar essa nova geração, e por não caber dentro dos estereótipos que o mercado ainda tenta reverberar na sociedade. Depois de sair de Campos Novos, no Meio-Oeste, ela hoje vive em Itajaí onde estuda uma de suas grandes paixões, a fotografia. Com piercings, tatuagens e um rosto que passa longe do comum, ela defende essa nova visão que a agência começa a introduzir na moda brasileira.
Continua depois da publicidade
– Ninguém na Squad pede suas medidas para ver se bate com o perfil de modelo padrão nem interferem na sua imagem. Mas isso não significa que não tenha pessoas magras e altas, tem de todo tipo e estilo. Magras, gordinhas, trans, cabelo colorido, ruivo, cacheado, liso, com tatuagem, piercing, cada um se destaca à sua maneira. Além disso são pessoas com ideias, talentos, digital influencers e alguns já têm carreira própria. Tudo isso é importante, pois a agência não quer só mais um modelo, quer alguém com voz para que possa colaborar com a marca – destaca.
Sem influência
Desde pequeno, Ariel Modara sempre se sentiu identificado ao gênero masculino, embora ao nascer tenha sido biologicamente reconhecido e registrado como menina. Dos brinquedos da infância até o final da adolescência, embora soubesse do seu desejo de se afirmar como garoto, foram muitas as vezes em que se deparou com as dificuldades de estabelecer uma identidade de gênero que não seja a do senso comum. Foi só no final do ano passado, aos 21 anos, quando pesquisou a fundo sobre terapias com hormônios e decidiu iniciar um tratamento desse tipo, que ele rompeu de vez com os paradigmas sociais que insistiam em defini-lo como mulher.

– Cresci ouvindo várias pessoas dizendo que eu deveria ser modelo, que eu tinha um rosto diferente. Mas eu era visto como garota, e eu mesmo não me via assim, então não conseguia me imaginar como uma modelo mulher, coisas do tipo emagrecer, usar salto alto etc. Foi quando soube dessa proposta diferente da Squad, de buscar pessoas com histórias de vida e sonhos por trás, e não só um rosto estereotipado.
Com pouco mais de três meses de terapia, ele comemora nas redes sociais a cada pequena mudança que seu corpo reflete. A principal delas é a voz, que já começou a ficar mais grave. O apartamento de um cômodo onde ele mora no bairro Serrinha, em Florianópolis, também deixa à mostra uma identidade em fase de consolidação: posters do Pokémon, do Star Wars e jogos de videogame dividem espaço com o que ele mesmo define como objetos de socialização mais associados ao lado feminino – mas isso também não deixa de ser uma forma de questionar a demarcação cultural dos gêneros.
Continua depois da publicidade
Enquanto aguarda o início das aulas da graduação em Design na UFSC, no segundo semestre, ele faz aulas de desenho e posta conteúdos na internet, entre eles vídeos no quais relata o decorrer do processo com o hormônio. – Recebo muitas mensagens. Tem pessoas transfóbicas que deixam comentários de ódio, mas a maioria é muito positiva e apoia. Tem pessoas que vem falar que de alguma forma eu as ajudei, inspirei. Uma menina estava internada e disse que na UTI ela pensava muito em mim, porque ela sente uma felicidade quando assiste meus vídeos. Quando vi isso, valeu tudo a pena – declara Ariel.
Em uma fotografia postada em seu perfil no Instagram, ele aparece em seu aniversário de seis anos e a legenda informa: ¿até esta idade eu era puramente eu, sem influências, mas então começaram os comentários maliciosos e eu comecei a tentar ser uma garota. Esta fase durou 15 anos e por 15 anos eu vivi outra vida. Estou feliz em estar de volta.¿