Os dedos quase centenários ainda têm força para dedilhar delicadamente as cordas do violão e entoar cantos de Terno de Reis. Aos 93 anos, o mestre João Antônio Schmitz é referência na tradição açoriana que se mantém até os dias atuais em Joinville, cidade do Norte de Santa Catarina. Para ele, levar músicas e mensagens de fé às famílias da região é um chamado que atende com muita emoção e prazer.

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Cultura do Terno de Reis

Nascido em Biguaçu no ano de 1932, João se apaixonou pela música, principalmente, devido à sua fé. Ainda na infância conheceu as emocionantes melodias do Terno de Reis. Na época, morava em uma fazenda com a sua família e recebia, constantemente, a visita de um grupo tradicional para tocar os cânticos em sua casa.

Foram letras de fé e comunhão, que falam principalmente sobre o nascimento de Jesus Cristo e a época de Natal, que fez João querer aperfeiçoar seu talento musical. Junto com o irmão Manoel, seu João começou a cantar e tocar violão em festas da cidade. Passaram alguns anos em Rio do Sul, antes de se instalarem em Itajaí.

Lá, foram convidados a fazer um programa de rádio e começaram a atuar como a dupla Remanso e Remansinho. Com o sucesso, após três anos foram chamados para trabalhar na capital catarinense, Florianópolis.Lá, inclusive, adicionaram um terceiro integrante à parceria, o Roberto.

— A gente não ganhava muito dinheiro. O que a gente ganhava não dava para viver só de música. Então eu saí da rádio, fui trabalhar de marceneiro e morei em várias cidades — relembra.

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Como surgiu o grupo Estrela Guia?

Em 1975, seu João radicou-se em Joinville, a maior cidade do Estado. Na mesma época, passou a fazer parte da igreja Cristo Ressuscitado, no bairro Floresta, zona Sul do município. A convite do Padre Luiz Facchini e da comunidade, passou a compor músicas para celebrar o Natal.

— Consegui compor a maioria dos hinos, alguns em parceria com outras pessoas da comunidade. Aí, fizemos uma missa de Terno de Reis. Essa missa deu muita repercussão e outras comunidades também adotaram a nossa missa. E, como sempre, no Natal a gente fazia as cantorias de Terno de Reis. Aí eu fui compondo mais músicas e, em 1999, gravei o primeiro CD com meu irmão, meu filho e amigos — conta.

Assim nasceu o Estrela Guia, atuante até os dias de hoje. O grupo já gravou seis álbuns, o último feito totalmente em mídias digitais, com registro físico apenas em pendrive. Ao longo da carreira, seu João compôs 50 músicas, sendo 30 sozinho e 20 em parceria. Ainda, 44 são do tradicional Terno de Reis, cinco sertanejas e um hino religioso.

O principal destaque, entre os sucessos do Estrela Guia, vai para uma música que não teve a participação direta do mestre João. Isso porque no álbum de número cinco, o “Lá do céu desceu um anjo”, a faixa final é uma homenagem ao patriarca. Com letra e melodia feitas pelos netos do seu João, a música “Acordes maiores” fala sobre a vida do homem que sempre buscou pela justiça, igualdade e fé para a sua comunidade.

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Por que as visitas do Terno de Reis emocionam tanto as famílias?

Em 2025, completou 50 anos que seu João mora e vive em Joinville. Nesse período, fez muitas visitas para levar as músicas e a fé para as famílias da região, principalmente da zona Sul da cidade.

— A gente sempre priorizou ir nas casas onde tinham pessoas idosas que não podiam caminhar, sair para outro lugar para ver o Terno de Reis. É muito gratificante quando a gente visita essas casas das pessoas idosas que se emocionam, que choram. E isso acontece todos os anos quando a gente visita as casas — relembra.

Seu João conta que duas visitas marcaram muito a sua trajetória como cantor de Terno de Reis. Em um caso, o patriarca da família estava muito doente e, com todas as dores que um câncer na garganta em estágio avançado proporciona ao corpo humano, dizia estar cansado de viver.

— Ele só falava assim: “Eu quero morrer, eu quero morrer”. Aí a família nos convidou para ir lá cantar. Aí nós fomos. Ele estava numa cama, assim na varanda, e acompanhado. Ele estava com câncer na garganta, mas ele começou a cantar, queria cantar junto. Aí depois ele disse: “Eu não quero mais morrer. Eu quero ficar aqui pra ano que vem vocês virem aqui de novo”. As filhas choravam, emocionadas. Acho que não demorou um mês, dois meses, e ele faleceu — recorda.

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Já em uma outra visita, o grupo Estrela Guia conheceu uma mãe que tinha acabado de dizer adeus a um de seus filhos.

— A mãe disse que o Terno de Reis foi levar uma força para ela continuar acreditando em Deus e ter esperança de uma vida mais feliz. Que o filho dela não ia voltar mais, mas ela ganhou muita força com a nossa presença, com a nossa cantoria — conta.

Fé e luta

Andando lado a lado com a música, seu João também trabalhou intensamente pela comunidade da zona Sul de Joinville. Junto com o padre Facchini, uma forte liderança católica da cidade — falecido em 2018 —, ele fundou a Pastoral Operária durante a Ditadura Militar no Brasil.

— A gente atendia as lutas dos trabalhadores. A gente tinha uma grande amizade, trabalhava junto. A gente viajava, participava de reuniões fora, no Rio de Janeiro, São Paulo, aqui em Santa Catarina, várias cidades. Fazia intercâmbio com as outras paróquias. E eu sempre tava junto com o padre Luiz — recorda.

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Juntos levavam amor, alegria e muita música aos que mais precisavam na época do Natal. Fosse durante as missas na paróquia fundada no mesmo ano em que seu João chegou a Joinville, ou na casa de cada família da comunidade.

— Desde sempre a preocupação era compor música que leva mensagem, mensagem de alegria para as pessoas e também divulgar a evangelização — afirma.

Natal de música

Seu João descreve a época natalina, que inicia no primeiro domingo do Advento e segue até o Dia dos Reis, em 6 de janeiro, como um “tempo que emociona”. Atualmente, o grupo Estrela Guia é composto por 11 pessoas, incluindo o seu João, que mesmo aos 93 anos continua ativo, tocando violão e cantando nas igrejas e casas joinvilenses.

Ele conta que quando o Natal já está se aproximando, o grupo se reúne para iniciar os ensaios e planejar a temporada de Terno de Reis. O mais importante é escolher a música certa para pedir licença às famílias e a liberação para entrar e saudar a todos.

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—  A gente tem aquela expectativa de que vai chegar o Natal. E nós que estamos envolvidos na música é mais emocionante. Porque a gente tem a nossa música que leva essa mensagem de anunciar o Natal, anunciar o nascimento de Jesus — diz.

Em 2025, a temporada de cânticos já iniciou. A primeira visita ocorreu no dia 7 de dezembro na casa de uma família vizinha ao seu João, no bairro Petrópolis. Já no dia 10, o grupo visitou o seu Renato, um senhor de 96 anos morador da localidade conhecida como Km 7, também na zona Sul da cidade.

Festival de Terno de Reis

O amor pelo Terno de Reis é tão grande que, em 2003, seu João e a família criaram um festival para reunir e reconhecer grupos por toda Joinville. A ideia partiu do genro Vilmar Rebello, que ajudou a angariar apoio para a iniciativa.

A primeira edição foi realizada no bairro Comasa, na região leste do município. Desde então, todos os anos são marcados pela confraternização dos grupos. A de 2025 ocorreu em 13 de dezembro, na Paróquia Nossa Senhora de Belém, no bairro Boehmerwald.

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Projeto cultural

Para o próximo ano, seu João e a família têm planos de expandir ainda mais a atuação. Um projeto de difusão e manutenção da cultura açoriana, por meio do Terno de Reis, foi aprovado neste mês pela Lei Rouanet. O texto foi proposto por um dos netos de seu João, o Luis Guilherme Schmitz de Souza, que mora junto com ele e também faz parte do Estrela Guia.

Agora, a família trabalha nos próximos passos para colocar em prática as 27 apresentações gratuitas planejadas na proposta. Com o aval da lei federal, empresas tributadas pelo regime de Lucro Real podem abater parte do Imposto de Renda devido, sem custo adicional ao patrocinador, para o grupo Estrela Guia.

O objetivo da proposta é levar o Terno de Reis a mais domicílios, lares de acolhimento para idosos, celebrações religiosas e espaços comunitários, promovendo inclusão social e valorização do patrimônio cultural imaterial local.

O projeto será comandado pelo mestre João, reconhecido pela sua atuação no Estado com a Medalha de Mérito Cultural Cruz e Sousa, além de ser eleito Cidadão Honorário de Joinville pela Câmara de Vereadores no ano de 2009. Além dos reconhecimentos oficiais, o que o seu João leva no coração é, de fato, o carinho das famílias que já encantou em todos os anos cantando o Terno de Reis.

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