A mente de um habitante do século XXI não está acostumada à calmaria. O normal para todo mundo é o corre-corre, os mil afazeres em um só dia, o fluxo quase excessivo de informações, interações, atividades. É só reparar na enxurrada de posts que tomaram conta das redes sociais nas últimas semanas: o que não falta é gente reclamando do tédio causado pela chamada "quarentena", o isolamento social necessário para combater a disseminação do novo coronavírus. E é nessa falta, tanto do que fazer quanto do contato humano, que as pessoas encontram refúgio em algo que não só distrai, mas, em grande medida, nos humaniza: a cultura.

Continua depois da publicidade

Em página especial, saiba tudo sobre coronavírus

Serviços de streaming de música e conteúdo audiovisual, livros físicos ou e-books, apresentações artísticas via redes sociais, passeios virtuais por museus e cidades históricas, videogame, contação de histórias para as crianças: mesmo quem está trabalhando em esquema de home office tem mais tempo (e talvez até mais vontade) de se dedicar a esse tipo de atividade neste período.

– Se não fosse a música, as artes, o movimento do cinema, quão mais difícil seria esse momento? – pondera Chico Martins, compositor e guitarrista da banda florianopolitana Dazaranha. – O mundo perdeu um pouco de cor com tudo o que está acontecendo, e a arte vem devolver essa cor. Estamos sendo lembrados da importância da cultura. A arte está sempre tão presente que não reconhecê-la como fundamental soa até como ingratidão.

Da porta para fora, porém, a situação é outra – e a cultura, paralisada pela proibição de realizar eventos e pelo próprio medo das pessoas de sair de casa, vive um de seus períodos mais desafiadores. Uma estimativa recente, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), aponta que o prejuízo na área, que responde por 2,64% do PIB brasileiro, pode ser de mais de R$ 100 bilhões. Já um estudo da Abrape (Associação Brasileira dos Promotores de Eventos) estima que cerca de 580 mil profissionais do setor podem ficar desempregados nos próximos meses.

Em Santa Catarina, um formulário criado para levantar o número total de cancelamentos causados pelo coronavírus reuniu mais de mil respostas, de produtores e artistas de diversas regiões do estado, que totalizaram mais de 10 mil eventos suspensos, adiados ou definitivamente cancelados em função da pandemia.

Continua depois da publicidade

Talvez um dos aspectos mais cruéis da situação atual seja o fato de que a área da cultura e do entretenimento, depois de um 2019 difícil, via 2020 com otimismo:

– Nós viemos de um 2019 que foi muito ruim no setor da cultura – afirma a produtora de eventos Eveline Orth, que trabalha na área há 28 anos. – 2020 assinalava uma recuperação, ainda que pequena, da economia; e o setor da cultura começou com muito otimismo. Tínhamos uma agenda fortíssima de shows no país inteiro, nacionais, internacionais; porque todo mundo acreditava que este ano ia responder muito melhor que o ano passado.

Se havia muitos eventos marcados, é evidente que a onda de cancelamentos e adiamentos veio com muito mais força do que teria acontecido em um ano fraco. O músico Chico Martins conta que todos os shows na agenda do Dazaranha foram cancelados; já que, nas palavras dele, "um show é justamente o inverso do que é recomendado no momento." O maestro Jeferson Della Rocca, da Camerata Florianópolis, também diz que todos os concertos planejados pela orquestra para os meses de maio e abril foram suspensos.

– A Camerata chegou a fazer uma pré-temporada; fizemos o Summer Festival no começo do ano. – ele conta. – Todo ano fazemos espetáculos populares nos primeiros meses. E, no dia 12 de março, fizemos o concerto de abertura da temporada erudita. Tínhamos mais de trinta eventos agendados nos próximos meses, e cancelamos todos até maio. Quase a totalidade das receitas da orquestra vêm de vendas de ingressos e de patrocínios para os eventos – ou seja, se os eventos não acontecem, não há patrocínio. A escola de música da Camerata também está fechada. Isso é bastante grave, porque todos os músicos da Camerata são profissionais: vivem exclusivamente do trabalho com música.

Continua depois da publicidade

– Tudo parou – completa o multi-instrumentista Alegre Corrêa, expoente da música instrumental brasileira. – Todas as coisas em que eu estava trabalhando foram suspensas. O mesmo aconteceu com muitos colegas, amigos meus, que inclusive moram no exterior, na Áustria, na França, na Alemanha. Eu tive muita coisa cancelada também, especialmente eventos na Europa. Mas que bom que essas coisas foram adiadas, porque imagine se eu estivesse lá quando isso estourasse, e não conseguisse voltar para casa? Acho que o pessoal da música clássica e do jazz, da música instrumental, foi o mais afetado, porque esses artistas dependem muito dos shows ao vivo para pagar as contas.

Alegre comenta também que, embora a parte de eventos seja a mais óbvia quando se pensa nos impactos causados pela pandemia de coronavírus no setor artístico, os músicos também perderam outros tipos de trabalho e de fonte de renda:

– Por exemplo, se um estúdio encomendou uma trilha sonora para um comercial, ela voltou atrás e cancelou, porque as empresas não sabem o que vai acontecer daqui para a frente – aponta. – Está tudo suspenso.

– Eu trabalho exclusivamente com bilheteria. – fala Eveline Orth, sobre as consequências financeiras que sua produtora já enfrenta. – O capital de giro saiu e não está entrando. É um fluxo que foi quebrado. Nós trabalhamos o tempo todo com planejamento de médio e longo prazo; e agora, o que não conseguimos fazer é justamente planejar. Temos que ver como ficam as coisas dia após dia. Também não adianta sobrecarregarmos o segundo semestre; então eu estou tendo que fazer escolhas, abrir mão de alguns eventos. Mas já estou considerando que este vai ser um ano em que eu vou ter só uns quatro meses de faturamento.

Continua depois da publicidade

Embora os artistas sejam os primeiros profissionais que vem à cabeça quando se pensa nos afetados pela crise, há toda uma cadeia produtiva que às vezes acaba esquecida:

– São seguranças, motoristas, profissionais de limpeza, de camarins, bilheteiros, porteiros, gente que trabalha com iluminação, com sonorização, garçons – lista Eveline Orth. – É toda uma cadeia que está paralisada neste momento.

– São centenas de pessoas envolvidas – declara Jeferson Della Rocca, ao se referir especificamente aos espetáculos da Camerata Florianópolis; e citar como exemplos, entre outros, os divulgadores de eventos e até mesmo as empresas de ônibus que transportam os músicos para apresentações no interior. – Em relação aos artistas, aqueles que têm seu ganha-pão no couvert artístico em bares são os primeiros a ser seriamente afetados, tendo dificuldades até mesmo para pagar aluguel, comprar comida.

Produtores e artistas catarinenses são unânimes ao afirmar que "o setor cultural foi o primeiro parar", por causa das medidas que proibiram aglomeração de pessoas (e que afetaram todos as áreas dentro deste campo, de bares a grandes festivais); "e vai ser o último a voltar", por diversos motivos.

Continua depois da publicidade

– Nossa atividade é basicamente calcada em aglomerar pessoas – ri o maestro Jeferson Della Rocca. – E hoje, quando você anda na rua, vai ao supermercado, parece que as pessoas se olham com medo, com um ar de "não chegue perto de mim". Emocionalmente, está todo mundo bem abalado com isso. Esse tipo de sentimento vai perdurar por um tempo. E nesse intervalo muitos dos grupos e estabelecimentos podem acabar encerrando as atividades, fechando as portas.

– As pessoas vão demorar a se sentir novamente seguras a ponto de se colocar em ambientes fechados, cheios de gente – concorda Eveline Orth. – É bastante complexo. Sempre que reagendamos um show, continuamos na dúvida se essa nova data já vai ser de fato possível. Eu já estou questionando shows que agendei para o final de junho. Nós certamente vamos viver uma ressaca financeira de que ainda nem temos dimensão.

– A parte cultural vai demorar a se restabelecer. Quando a coisa aperta, as pessoas, é óbvio, priorizam comida e saúde. Não vai ser fácil. – resume a produtora cultural Luanda Wilk. Foi de Luanda a iniciativa de organizar o formulário online para descobrir quantos eventos já haviam sido afetados em Santa Catarina, citado no início da matéria.

– Eu sempre insisto na questão de levarmos a cultura a sério: não encarar só como "entretenimento" ou algo supérfluo, mas sim como algo essencial, tanto para o nosso convívio quanto para o desenvolvimento da sociedade. – diz Luanda. – Acho que é o momento perfeito para mensurarmos o quanto a cultura move a economia, quanta renda gera, quantos empregos gera. Quanta gente vive e opera nesse grande ecossistema para que as coisas funcionem de forma harmônica? Quantos profissionais estão envolvidos para fazer acontecer um espetáculo?

Continua depois da publicidade

Foi da produtora cultural Luanda a iniciativa de organizar um formulário online para descobrir quantos eventos já haviam sido afetados em Santa Catarina
Foi da produtora cultural Luanda a iniciativa de organizar um formulário online para descobrir quantos eventos já haviam sido afetados em Santa Catarina (Foto: Luanda Wilk)

Ela explica que foi com esse objetivo em mente que organizou o formulário; inicialmente, de forma bastante simples. Mais tarde, o Conselho Estadual de Cultura partiu do documento para organizar uma versão mais aprofundada.

– A adesão das pessoas foi incrível – narra Luanda. – Nós recebemos muitas respostas logo nas primeiras 24 horas. O formulário traduziu em números todos esses profissionais que muitas vezes são invisíveis, passam despercebidos por tanta gente.

A pesquisa foi integrada às iniciativas do projeto ConectArteSC, criado por parte da classe artística de Santa Catarina já na primeira semana de quarentena, para pensar alternativas para a manutenção da receita de músicos e outros profissionais do setor.

– Nós queremos seguir a quarentena, não queremos que as autoridades encerrem o isolamento social. Acreditamos que essa é a única maneira de conter a disseminação do vírus e parar a pandemia. – Luanda faz questão de enfatizar. – Mas como os artistas podem apoiar o isolamento e ao mesmo tempo encontrar maneiras de se manter? Como podemos usar esse momento tão difícil para chamar atenção para questões problemáticas do meio cultural e dar mais visibilidade para os artistas?

Continua depois da publicidade

– Como eu trabalho com produção e sou "a louca das tabelas", estou tentando fazer listas e criar instruções para dar respaldo a artistas para que possam, por exemplo, fazer o recolhimento correto do seu rendimento em streaming: são centavos de dólar a cada vez que alguém ouve uma música online, mas isso, somado, acaba ajudando os artistas, ainda mais nesse momento emergencial – ela exemplifica. – Estou organizando possibilidades de financiamentos coletivos; tanto os únicos quanto os recorrentes, com pagamentos mensais. Estou trabalhando em cobranças de mecanismos de fomento; de forma coletiva, junto a outros artistas e produtores. Perdemos algumas ferramentas, mas estamos aprendendo a olhar para outras.

Na opinião da produtora Luanda Wilk, três frentes precisam se unir para que a produção cultural aconteça: artistas e produtores culturais; público – que consome e gera renda -; e políticas públicas, que "precisam ser feitas para que haja mecanismos democráticos abertos a todas as linguagens e profissionais". Ela ainda cita a imprensa como parte importante do processo, uma vez que a mídia pode divulgar o trabalho artístico e colocar as três primeiras frentes em contato.

– É essencial que o público perceba que tem como ajudar os artistas – ela ressalta -; seja ouvindo as bandas em serviços de streaming, apoiando projetos de financiamento coletivo, divulgando o trabalho dos músicos, até mesmo cobrando políticas públicas das autoridades.

Chico Martins, do Dazaranha, também destaca outro aspecto importante do ConectArteSC: manter a produção acontecendo – mesmo que com cada um na sua casa.

Continua depois da publicidade

– Quem é designer se ofereceu pra fazer isso, quem tem estúdio em casa se ofereceu pra fazer aquilo… – diz o músico. – Estava sobrando profissional, e aí a produção começou a acontecer. Eu escrevi duas canções para o ConecArteSC; uma já saiu, a Perto do Coração, e a outra está em produção agora. O tema que inspira essa primeira canção é justamente nossa situação atual: quando você trabalha com isso, parece que tudo se reflete em música.

Outra iniciativa surgida ao meio à crise foi o Respiro Festival: um festival de música online, via redes sociais, apresentado a cada final de semana por músicos catarinenses. O projeto partiu das jornalistas Carol Macário e Yasmine Holanda, e tem entre seus apoiadores o músico Alegre Corrêa.

– Gostei muito da iniciativa. Acho que este é um momento em que nós temos que estar presentes na vida das pessoas – diz o artista. – E foi uma iniciativa criativa, rápida, com uma programação muito boa. Estamos levando um festival de música de nível internacional para dentro da casa das pessoas.

– Foi uma iniciativa inspirada em outros movimentos que já estavam rolando pelo Brasil e pelo mundo, e motivada pela percepção de que a música conecta as pessoas, evoca memórias, nos faz lembrar de quem gostamos – explica Carol Macário. – Queríamos reconectar o público com a arte nesse momento de pandemia, mesmo que de forma não-presencial. E, claro, também é uma forma de divulgar o trabalho dos músicos de Santa Catarina. Temos muitos artistas incríveis por aqui.

Continua depois da publicidade

De início, a ideia era basear as apresentações em lives, mas a própria instabilidade da rede de internet, muito exigida em todo o mundo em um período em que tanta gente está em casa e utilizando dados, prejudicava a qualidade dos shows. Assim, a equipe pensou em um novo formato: agora, os artistas gravam as performances, que depois são disponibilizadas no IGTV do perfil @respirofestival no Instagram. Os organizadores pesquisam também maneiras de montar um fundo ou show solidário para arrecadar recursos para artistas e outros profissionais que têm sofrido perdas financeiras desde o início da quarentena.

No final de março, a Camerata Florianópolis lançou uma campanha de financiamento coletivo para patrocínio de recitais virtuais
No final de março, a Camerata Florianópolis lançou uma campanha de financiamento coletivo para patrocínio de recitais virtuais (Foto: Toia Oliveira)

Jeferson Della Rocca conta que, além de estar engajada no ConectArteSC, a Camerata está criando iniciativas para resolver questões próprias da orquestra. No final de março, a Camerata lançou uma campanha de financiamento coletivo para patrocínio de recitais virtuais.

– Não vai ser a orquestra completa tocando, mas recitais para violino solo, violoncelo solo, piano e violino, canto e piano, várias formações instrumentais diferentes. – explica o maestro. – Também estamos criando um portal que vai servir para disponibilizar apresentações virtuais com interação com o público; além de abrigar nosso acervo de DVDs e vídeos, que estará disponível em sistema pay-per-view. É uma maneira de garantir que nosso público possa continuar acompanhando a Camerata e também nos auxiliar nesse momento, já que tivemos uma queda de 100% na receita.

Ele diz que, ao longo dos três próximos meses, a orquestra também pretende se dedicar à gravação de CDs e DVDs.

Continua depois da publicidade

– Temos muito material que gostaríamos de registrar, e geralmente não conseguimos por causa da correria das nossas apresentações ao vivo.

O Dazaranha também tem buscado se reinventar online:

– O que nós temos feito são shows online, lives, e estamos pensando em maneiras de monetizar essas apresentações – diz Chico Martins. – Essa ideia não é nova, claro, muitos artistas já têm feito isso; mas agora essa modalidade de shows ganhou muita força. Mas isso vai ser construído aos poucos; até porque muita gente está sem ganhar dinheiro. Principalmente quem é autônomo está com a vida muito abalada neste momento.

O setor cultural como um todo se vê em uma fase de reinvenção – e, talvez, seja uma oportunidade para que a própria sociedade passe a ver a arte com novos olhos.

– Talvez agora comece a haver uma preocupação maior em garantir que os direitos autorais sejam devidamente pagos aos artistas, pelo YouTube e outras plataformas digitais, para que eles possam sobreviver nesses momentos, depender menos dos shows ao vivo – especula Alegre Corrêa. – Ninguém vive sem música, ninguém vive sem arte. Todo mundo passa o dia inteiro acessando arte, em diversas plataformas, diversos formatos. É justo que quem produz esses materiais receba o suficiente para ter uma vida digna.

Continua depois da publicidade

– Hoje nós precisamos nos unir para ajudar a sociedade como um todo. Se você pensar em só salvar e proteger sua família, daqui a pouco, de um jeito ou de outro, a crise vai bater na sua porta – o músico continua. – Eu acho que o mundo não vai ser o mesmo daqui para a frente. Tudo vai mudar.

Destaques do NSC Total