Uma referência nacional na checagem de fatos, assim podemos definir a jornalista Cristina Tardáguila. A mineira natural de Belo Horizonte mudou-se para o Rio de Janeiro com menos de um mês de vida e cresceu no estado que outrora foi chamado de Guanabara. Por isso, carrega um pouco do tradicional sotaque carioca.
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Graduada pela UFRJ, tem pós-graduação em jornalismo pela Universidad Rey Juan Carlos, em Madrid, e MBA em Marketing Digital pela Fundação Getúlio Vargas. Fundou a Agência Lupa, uma das principais e referência no Brasil na checagem de fatos. Dirigiu a empresa de novembro 2015 a abril de 2019, quando se licenciou para assumir o cargo de diretora adjunta da International Fact-Checking Network (IFCN), que funciona dentro Instituto Poynter, na cidade de Saint Petersburg, na Flórida. O instituto é um dos principais lugares do pensamento sobre o jornalismo nos Estados Unidos, um grande observatório da imprensa.
Desde maio do ano passado, a jornalista de 39 anos vive nos Estados Unidos e no início do ano passou a liderar um grupo de 90 checadores de 39 países para desmascarar e destruir notícias falsas ligadas ao novo coronavírus, que até a última quinta-feira, dia 13, havia causado a morte de pelo menos 1,3 mil pessoas.
Ela conta que esse trabalho teve início no começo do ano, mais precisamente no dia 24 de janeiro, quando Cristina entrevistou um pesquisador que estava fazendo um trabalho sobre a China e ele questionou se haviam notícias sobre oito pessoas que foram presas acusadas de serem desinformadores. Na oportunidade, eles haviam publicado nas redes sociais chinesas que havia um vírus mortal, muito perigoso, parecido do Sars, em Wuhan – episódio que mais tarde veio a se confirmar, com a epidemia do novo coronavírus.
O episódio intrigou a jornalista, e a partir da procura desse pesquisador por notícias, o grupo acionou um checador em Taiwan – pois o grupo não conta com um profissional na China – para obter informações sobre os presos.
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– Passamos alguns dias tentando localizar informações sobre essas oito pessoas, e nada. A China é complicado. Você não consegue dado, não consegue contato com ninguém, você manda e-mail e ninguém responde – conta.
A partir desse episódio, Cristina e a jornalista de Taiwan escreveram um artigo sobre a dificuldade de checar informações sobre os presos. Então, as duas jornalistas passaram a trabalhar em conjunto para monitorar a possibilidade da prisão de novas pessoas e o que efetivamente se sabia sobre o vírus. Entre os detidos estava o Dr. Li Wenliang, médico que morreu no dia 6 de fevereiro, e que havia alertado sobre o vírus.
A partir desse episódio, o IFCN montou uma colaboração de checagem de fatos e desinformação sobre notícias envolvendo a epidemia na China. Desde então, até o fim da manhã da última quarta-feira, dia 12, o grupo já havia feito 391 checagens de informações falsas que circulavam sobre o novo coronavírus.
Em entrevista, por telefone, ela falou sobre os desafios do trabalho, sobre o papel do jornalismo profissional no combate às notícias falsas e à desinformação, e deixou um recado para quem produz e compartilha fake news. Confira a seguir:
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Quais são as notícias falsas mais recorrentes sobre o coronavírus?
A loucura sobre os morcegos é disparado o conteúdo mais falso que se viu até agora. “Sopa de morcego é a causa do coronavírus” apareceu em praticamente todos os 39 países que participam da colaboração. Curiosamente, são vídeos que foram gravados em Palu, um pequeno país no (Oceano) Pacífico, onde realente se come sopa de morcego. É estranho, mas é culturalmente aceito naquela comunidade você comer sopa de morcego. E esses vídeos gravados em Palu estão sendo distribuídos na internet como se fossem de Wuhan, ou da China, em qualquer lugar. E como se tivessem sido a causa do coronavírus.
Tem um excelente material, quem conseguiu fazer essa checagem primeiro foram os franceses, do France 24. Eles checaram nove vídeos diferentes que circularam na internet em torno desse assunto. Pessoas comendo sopa de morcego, pessoas dizendo que morcego causa isso… Nenhum deles é verdadeiro. Não existe nenhum dado científico, nenhuma colocação científica que atrele o vírus aos morcegos.
Depois, em segundo lugar, é possível apontar os números em torno do total de mortos e o total de infectados… as pessoas estão completamente loucas. Oscila de 10 mil a 25 mil mortos. Isso é, no mínimo, 10 vezes mais do que o número real. A capacidade dos indivíduos de simplesmente postar uma informação totalmente errônea. É óbvio que os dados da China são duvidosos. Agora, os dados da OMS, a gente não pode questionar, né? Costumo dizer que o checador não vai refazer o Censo. Tenho que acreditar que o Brasil tem 210 milhões de habitantes. Certo? Nesse caso, é a mesma coisa. Não vamos conseguir ir a Wuhan ver se tem tantos mortos. Vou ter que acreditar nas instituições que normalmente acertam ou têm bons dados. A OMS não fala em 10 mil, nem em 25 mil. Esses dados estão se replicando de forma inacreditável por diversos países do mundo. Da China ao Paquistão, na Índia, Tailândia, Espanha, Itália, Brasil…
Em terceiro lugar, as falsas formas de prevenção e de cura. Isso é muito grave. Porque isso sim, coloca em risco a saúde humana. Viralizou aqui nos Estados Unidos muito que beber água sanitária previne o vírus. Água sanitária mata, se você beber. Isso é muito sério. A gente até soltou um alarme a todos os checadores, dizendo que isso é prioridade número um. Isso sim pode matar. E coisas que são efetivamente ineficazes, como tomar sopa de alho. Aí, é o contrário, né? Você tem o coronavírus, e em vez de ir ao médico, está se tratando com sopa de alho. As duas coisas (beber água sanitária e tomar sopa de alho) são muito populares e muito perigosas.
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Como devemos proceder ao receber uma informação sobre a doença?
O primeiro movimento é não compartilhar. A gente “tem que segurar o dedinho”. Segundo, uma boa medida é pesquisar, dar uma olhada no que já foi publicado. Uma simples busca no Google. A chance de alguém já ter checado aquela informação é grande. Terceiro, localiza as plataformas de checagem do seu país. No Brasil tem três plataformas atuantes dentro da aliança: Lupa, Aos Fatos e Estadão Verifica. Os três estão aceitando pedidos de checagem.
Em última instância, é tão fácil checar. Há muitas maneiras de verificar o dado, né? (Confira uma lista de publicações checadas pelo grupo e confirmadas como notícias falsas) Mas acho que o mais importante é não repassar, se você não tiver certeza absoluta.
Qual é o papel do jornalismo profissional no combate às notícias falsas, no caso da coronavírus?
Entendo que primeiro a gente não pode subestimar o problema. Sei que o Brasil tem milhares de questões ao mesmo tempo, e como estou acompanhando muito de perto a cobertura de vários países sobre o assunto ao mesmo tempo, acho que o Brasil ainda está subestimando o problema. Sei que não temos nenhum caso confirmado na América do Sul ainda, acho que a gente ainda está subestimando um pouco.
Acho que a gente precisa tratar isso com seriedade. Primeiro fazer um trabalho profundo sobre prevenção. Cobrar das autoridades se eles estão preparados mesmo. Como é que a sociedade está sendo informada? Ontem (terça-feira, dia 11) fiquei sabendo que existe um canal do Ministério da Saúde, um WhatsApp, em que você pode se informar. Gostaria de ver isso muito amplificando.
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A prevenção é fundamental. Os checadores estão atacando as notícias falsas. O jornalismo precisa trabalhar na prevenção. O que o cidadão comum precisa saber para se proteger e o que ele precisa fazer se ele estiver se sentindo estranho? Isso preciso ter um canal imediato com as autoridades. Vejo que isso está acontecendo em outros países. Creio que a mídia pode colaborar com isso.
Qual é o país está criando mais fake news sobre o coronavírus?
Impossível medir. Poderia até dizer, com base nas notícias falsas checadas, mas isso tem a ver com a quantidade de trabalho feito pelos checadores. Mas certamente a Ásia tem muito mais. Tenho visto muitas coisas em Taiwan, Coreia do Sul e até Índia. São muito, muito fortes, muitos problemas. Muitas coisas, por exemplo, de novos casos, novas mortes. Esse tipo de notícia. Desalojaram um shopping center não sei aonde. É grave! Você já imaginou isso no Brasil?
Acho que isso também é um trabalho da imprensa. Saber se Brasil está realmente preparado: estoque, médicos, enfermeiros, hospitais, leitos, tudo isso. Como é que a gente enfrenta a desinformação nesse grau? Se eu, por exemplo, inventasse agora que a escola do seu filho foi desalojada. Como é que a Secretaria de Educação ia lidar com isso? Não é uma questão apenas médica.
Outra coisa que me preocupa, bem focado no Brasil. O maior parceiro comercial do Brasil é a China. Quais são os produtos vitais que não serão mais importados, porque há várias empresas na China que não estão mais levando seus funcionários para as fábricas, por uma questão de saúde. Vai ter uma redução evidente na produção de determinados produtos. Como isso impacta no dia a dia dos brasileiros? Será que a gente está preparado para isso? A gente está enxergando isso tudo? Já vi que há cálculos de impacto no PIB, mas e no dia a dia. Me interessa o pequeno. Peças de carro, por exemplo. Vai faltar peça para produzir carro?
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A desinformação aliada às notícias falsas estão entre os principais males da atualidade?
Claro que sim. A gente já viu casos no Brasil de notícias falsas provocando mortes. Tem o caso da Fabiane de Jesus, em 2014, lá no Guarujá (SP), por ser confundida com uma suposta feiticeira, uma pessoa que estaria sequestrando crianças para fazer magia negra. Já temos isso na nossa história. Poxa, água sanitária para curar coronavírus mata. Sopa de alho para quem tem coronavírus, provavelmente mata.
Informação é unidade básica de todas as nossas decisões. Seja o alimento que você vai comer e a quantidade de calorias que ele tem, se você quer emagrecer. Seja em quem você vai votar. Se você tem informações de qualidade, você tem mais chances de tomar boas decisões. Se você tem informações de má qualidade, você tende a tomar péssimas decisões.
Às vezes de forma involuntária, às vezes porque a pessoa só recebe aquilo, só tem acesso àquilo. A desinformação nos coloca numa situação de risco elevadíssimo. E o excesso de desinformação, ainda mais na área de saúde, nos coloca em eminente risco de vida. Entrar em pânico ou ignorar uma doença as duas coisas são igualmente perigosas. Você precisa ter a informação real, com fatos de qualidade, com bom tratamento.
A China, país onde foi registrado o início da epidemia, é conhecida por tentar controlar as informações, em especial na web. Como se dá o serviço da equipe na apuração de dados e fatos para combater as fake news ligadas ao coronavírus?
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Dificilíssimo. É muito, muito complicado. A gente já publicou quatro reports, dois por semana, fazendo um apanhado do que está acontecendo na semana. O segundo deles foi justamente sobre isso. A China tem dois fatores muito interessantes. Um deles é o seguinte: a China não tem Google, não tem Facebook, não tem Twitter, a China tem as suas própria plataformas de redes sociais. O que acontece? Checadores, sobretudo do ocidente, além da barreira da língua, óbvio, eles não têm contas nessas mídias e não têm o know how de investigar dentro dessas redes. Essa foi a primeira barreira. A gente aprendeu muito a utilizar o que os chineses usam.
Uma vez lá dentro, apanhando para aprender a usar a plataforma, investigar, entrar em contato com as pessoas, tal. Não existe dado oficial confiável. E os próprios chineses falam isso. Têm os dados, você pode usá-los, a gente sempre faz isso, mas você já parte do princípio que deve estar com um pé atrás. Porque o governo chinês é engessado, tem um interesse político nessa questão. Tudo que vem da China, você tem que pensar 10 vezes. Tudo que vem dos meios oficiais da China você tem que ler com esse olhar. Ler, levar em consideração e fazer esse aposto: “Essa informação vem de um meio de comunicação do Estado”. Sempre tem que deixar o público ciente de que aquele dado vem de uma fonte interessada, politicamente interessada. É assim que os checadores vêm usando os dados da China.
Uma epidemia como essa do coronavírus desperta o medo e também a necessidade de encontrar um culpado, abrindo a portas para comentários carregados de xenofobia. A equipe checou informações que continham alguma ligação com xenofobia?
A gente viu notícias relacionadas a isso. Por exemplo, pessoas de traços asiáticos serem expulsas de lugares. Em vários lugares. Em termos de checagem, conteúdos para checar, não têm. Noticiário, sim. Vários checadores comentaram sobre isso. Para checagem é preciso conter um dado falso. Agora, essa coisa da culpa é bem interessante. Já tentaram culpar o Bill Gates. Tem coisas assim: “São os americanos tentando matar os chineses”, “São os chineses querendo matar metade dos chineses”.
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Levantamento feito pelo Instituto Poynter, dos EUA, apontou que 16 nações criaram nos últimos anos legislações próprias para combater a disseminação de desinformação nas redes sociais. Em reportagem da Folha de S. Paulo, você aponta que as maiores dificuldades nesse tipo de legislação é conseguir definir o que é uma fake news. Então, do ponto de vista legal e jurídico, como agir para controlar esse “mal”?
A IFCN se posiciona de forma contrária a qualquer iniciativa que busque regular por meio de leis, por entender que não existe definição adequada para o conceito de notícias falsas, em nenhuma parte do mundo. Partindo desse pressuposto, a IFCN tem duas propostas, uma de curto prazo e outra de longo prazo.
A proposta da IFCN é, a curto prazo diminuir a competição entre os jornalistas, para que eles colaborem com mais frequência, troquem informação com mais velocidade. Do que serve a briga pelo furo, pelo clique, no universo da checagem? Nada. Zero. A briga é maior, é lá fora, é contra a desinformação. A manchete, o clique, pouco importa.
E a longo prazo, que se entende de uma vez por todas, de que a gente precisa de mais checadores para fazer a checagem simples, enquanto os checadores profissionais fazem as checagens complicadas. Para que isso seja alcançado, tem que ter um semestre em algum lugar no ensino médio, ou na universidade.
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Como fazer com que as pessoas entendam que a informação é o melhor remédio para combater as notícias falsas?
Eu adoraria que as pessoas ficassem sem informação um dia. Tira delas as informações. Tira o acesso ao celular, ao rádio, à televisão, tira delas a informação por um dia para que elas sintam o que é o mundo sem informação. Mais de um dia, tira uma semana.
O que acontece hoje em dia? A gente recebe a informação em excesso e de forma gratuita. E aí, muitas vezes de baixa qualidade. Então, as pessoas se sentem informadas, “over” informadas. E elas esquecem o valor da informação. Se você tirar das pessoas isso, elas vão perceber a falta que a informação faz. O valor que tem a informação. Como a informação é um bem valioso.
Qual recado você dá para as pessoas que produzem ou compartilham notícias falsas?
Vou dividir em duas partes. Primeiro, se você faz de forma inocente, sem perceber, que você reflita e segure o “dedinho”. Que o seu dedo não seja o gatilho mais rápido do faroeste. Pense duas vezes antes de encaminhar qualquer coisa, se você faz de forma inconsciente. Você não precisa ser o plantão do Jornal Nacional. Não tem a necessidade de você ser a primeira pessoa a contar uma fofoca, a encaminhar um link, não precisa. E se você faz de forma consciente, seja por uma questão ideológica, por uma questão financeira, que você pense que alguém poderá fazer contra você algum dia. Que o dano causado é uma onda que se propaga. E que as vezes você pode estar do outro lado da onda. Você sempre pode ser afetado pelo dano que você causa.
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