Cuidar da saúde emocional das crianças é um desafio para todas as famílias e requer, além da ajuda de um profissional, atenção, cuidado e apoio incondicional
Ser criança não é garantia de bem estar emocional. Entender, antes de mais nada, esse mundo tão complexo faz parte do dia a dia de pais, educadores e da sociedade como um todo
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Na criação dos filhos, existe uma cena quase que comum: pais se equilibrando na corda bamba entre o que é educar, mimar e traumatizar. Além disso, há outro problema. O amor de pai e mãe muitas vezes cego a indícios de que algo na saúde mental do filho não está normal. Sim, as crianças também sofrem de tristezas e angústias, mas as manifestam de forma mais sutil, uma vez que seu repertório é diferente. É o contexto que pode ajudar a indicar se algo realmente é motivo de preocupação. A tristeza em função da troca de escola, da perda do cachorro ou da morte de um familiar é natural, parte do processo da vida. Mas se não há registro de experiências difíceis e a criança perde o desejo de brincar, torna-se apática e deixa de ter vontade de comer, pode ser um alerta para a família. Nesse universo, é difícil apontar regras, mas vale ter em mente que nem todo estresse faz mal à criança — alguns, inclusive, são necessários para o amadurecimento.
— O bebê não nasce organizado, somos nós que organizamos as coisas para ele. Um ambiente sem rotina para comer, dormir ou tomar banho não o ajuda a começar a pôr ordem no mundo. Ele fica atrasado em estabelecer relações de causa e efeito, o que desorganiza a base de pensamento de tempo e espaço e traz prejuízos mais tarde _ diz a psicóloga Vera Zimmermann, coordenadora do Programa Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental do Departamento de Psiquiatria Infantil na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Leia a série de reportagens sobre transtorno emocional em crianças e adolescentes
E se nossas avós repetiam à exaustão “aproveite a infância, a melhor fase da vida”, a realidade — ao menos a atual — é um pouco diferente. Estima-se que, no mundo, uma em cada quatro a cinco crianças e adolescentes sofra de algum transtorno psiquiátrico. No Brasil, onde faltam pesquisas, constata-se que a incidência fique de 7% a 20%. Além disso, entre 50% e 75% dos problemas mentais surgem antes dos 18 anos. Não se sabe ao certo a cauda da maioria dos distúrbios mentais, acredita-se, porém, que estejam diretamente relacionadas a alguns neurotransmissores que ocorrem naturalmente em nosso cérebro, a exemplo da serotonina, dopamina e norepinefrina. Outra crença é a de que um conjunto de fatores estejam envolvidos nas razões pelas quais um indivíduo possa vir a apresentar estas doenças, entre eles a genética (hereditariedade). Em casos extremos, o ambiente também pode afetar mentalmente a vítima. Por exemplo: uma criança que é abusada sistematicamente pelo pai ou outro familiar ao longo dos anos tem a possibilidade de vir a desenvolver distúrbios psiquiátricos mais adiante.
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É na primeira infância que os pequenos formam sua estrutura mental e constroem as sinapses — conexões entre neurônios, por onde circulam os impulsos nervosos, responsáveis por manter memórias e consolidar hábitos. Esses impulsos nervosos traduzem, em eletricidade no cérebro, as emoções e experiências do dia a dia. A neuropediatra Liubiana Arantes de Araújo, presidente do Departamento de Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), explica que a formação da arquitetura cerebral ocorre nos primeiros anos de vida e será o alicerce para todas as outras aquisições ao longo dos anos. Um neurônio se conecta a outro e, nessa fase, as conexões são muito aceleradas.
É importante salientar, também, que a criança avalia o que acontece a partir da reação do adulto, modelo que dá uma ordem de grandeza em relação ao mundo. Se os cuidadores são muito ansiosos e exagerados, ou se não se mobilizam para nada, a criança se pautará por esses valores. Muitas vezes, os medos são intensificados de acordo com o ambiente, diz a psicóloga Vera Zimmermann.
Ainda que a saúde mental na primeira infância preocupe, psiquiatras e psicólogos afirmam que crianças com até seis anos não devem ser medicadas se não for um caso grave e alertam contra o “excesso de patologização”. Por exemplo: se adultos já confundem crise existencial com depressão, o risco é ainda maior com crianças, que também vivenciam tristeza, mas ainda estão construindo a personalidade. O melhor remédio, dizem, é entender a causa do problema e atuar para modificar a realidade.
— Na maior parte das vezes, a criança chega ao psiquiatra por aborrecer o ambiente ou por não corresponder a uma demanda. Já tive um caso de uma criança de 5 anos encaminhada pela escola por não se alfabetizar em duas línguas. Às vezes, ter uma boa saúde mental é não corresponder a certas expectativas, sobretudo aquelas que veem a criança como um investimento que renderá no futuro — diz Francisco Assumpção, coordenador do Departamento de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
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* Colaborou Marcel Hartmann
Três pais de crianças e adolescentes com distúrbios de comportamento conversaram com a reportagem. Os nomes dos entrevistados os nomes verdadeiros foram preservados para garantir a integridade dos envolvidos, conforme o Guia de Ética da NSC Comunicação.
Um pai escreveu ao DC contando a difícil situação vivida pela sua família desde que seu filho, hoje com 20 anos, passou a apresentar distúrbios de comportamento. No caso específico, Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC).
“Meu filho tem hoje 20 anos. Em 2016 ele prestou vestibular em quatro universidades, sendo aprovado em todas. Escolheu a UFSC, mas mesmo sendo um aluno exemplar no ensino médio, não se adaptou à universidade. Quando notamos, ele já estava lavando as mãos compulsivamente. O que desencadeou o TOC, mesmo com as constantes intervenções médicas (psiquiátricas e psicológicas), ainda não está devidamente esclarecido. Por hora, parece que pode ter relação com a genética. Depois da lavação de mãos começou a tortura do banho, em torno de uma hora e meia, entre outras manias. Hoje, por exemplo, não faz nada sem estar devidamente “calçado” com luvas. Já toma medicação específica (para depressão e para o TOC) desde junho de 2016. Diante disso, não se manifesta em quantidade por dia, e sim constantemente, diariamente. Melhora em determinados dias, em outros nem tanto. É assim que funciona o tratamento. Está em isolamento em casa. Os médicos não especificam a causa desde transtorno, ainda é um assunto controverso. Ao que parece, carece de estudos científicos. Este distúrbio compromete toda convivência familiar. Nosso filho passou a ser “bebê” novamente. Não sai de casa para nenhuma atividade, a não ser para consultas médicas, ou quando em necessidade extrema. Por tudo isso, a família “vive” em função dele, ou seja, está toda mobilizada em torno do tratamento. A vida pessoal e social fica em segundo plano, pois afinal de contas nosso filho precisa de nós. E até que provem o contrário, para nós a fé e o amor têm parcelas importantíssimas na recuperação desta doença. Uma das grandes barreiras é a falta de associações ou Grupos de Ajuda onde moro (São José), em Florianópolis ou mesmo em Santa Catarina. O diálogo, a troca de experiências, a convivência com outras famílias que passam pelo mesmo problema certamente traria mais alívio e discernimento, além de mais paz para nossos corações. É baseado nisto que faço a sugestão da criação de grupos ou associações para debater especificamente o TOC, em toda a sua amplitude. Em que pese ser necessária, a medicação não trará o efeito desejado se não for aliada a doses gigantescas de amor, paciência e compreensão”.
João (*), 60 anos, bancário aposentado, São José.
“Minha filha sempre foi uma criança com traços de ansiedade. É a filha do meio, foi criada exatamente igual às outras duas, mas ela sempre foi diferente. Nunca conseguiu esperar a sua vez de falar, de comer, de ganhar alguma coisa. Tinha que ser sempre a primeira a ser atendida, senão abria o berreiro, desde muito pequena. Na escolinha era assim também. Exigia atenção máxima das professoras e tinha dificuldade de se enturmar. Com o passar dos anos foi ficando cada vez pior. Roía as unhas desesperadamente, a ponto de sangrar a ponta dos dedos. Tinha medos inexplicáveis, pesadelos que voltavam quase todas as noites. Somente agora, na adolescência (está com 15 anos) foi diagnosticada com um transtorno de ansiedade. A verdade é que muitas vezes chegamos a pensar que ela estava ficando louca. Esses transtornos mentais acabam deixando toda a família doente. Nossa filha agora está fazendo terapia e tomando remédios. Está melhor, mas não quero que ela passe a vida sendo medicada.”
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Maria (*), 45 anos, professora, três filhos, de Florianópolis.
“Nossa família está vivendo uma fase de muita angústia. Temos dois filhos. O menino, de 8 anos, é hiperativo. Já recebeu o diagnóstico de Transtorno do déficit de atenção-hiperatividade (TDAH). Sabíamos que aquela agitação toda dele não podia ser normal. Não presta atenção em nada, nenhum brinquedo o distrai por mais de cinco minutos, não consegue ficar sentado na sala de aula. Desde o jardim da infância recebo reclamações da escola. Esse, aliás, é um problema sério: me parece que a maioria das escolas ainda não está preparada para receber as crianças com algum transtorno. As professoras só nos diziam que ele era “endiabrado”, mas tudo o que queriam era mandá-lo para casa, a fim de que não perturbasse a aula e os colegas. Agora dele vai iniciar um tratamento. Já fomos a vários especialistas, e temos a esperança de que as coisas comecem a melhorar. Segundo a psicóloga dele, não existe uma explicação científica ainda para ele ser assim.
Elisa (*), 38 anos, empresária, de Palhoça
* Os nomes verdadeiros foram preservados para garantir a integridade dos envolvidos, conforme o Guia de Ética da NSC Comunicação
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