Uma série de áudios, publicados neste domingo (17) pela jornalista Miriam Leitão no jornal O Globo, revelam detalhes de sessões de tortura durante a ditadura militar. Nas gravações, há relatos de uma mulher que sofreu um aborto após choque elétricos e um ministro que denuncia a confissão de um roubo a banco obtida a marteladas. 

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Com mais de 10 mil horas de gravação, o material, que traz relatos das sessões do Superior Tribunal Militar (STM), foi analisado pelo historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 

Ao O Globo, o historiador explicou que, em 2006, o advogado Fernando Fernandes pediu ao STM acesso às gravações, porém não conseguiu. Ele, então, fez um pedido ao Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou a liberação do conteúdo. 

Fico explica, ainda, que o STM, na época, não obedeceu a decisão, sendo que em 2011 a ministra Carmén Lúcia determinou o acesso irrestrito aos autos, decisão que foi referendada pelo plenário.

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O professor disse, em entrevista ao g1, que analisa os áudios desde 2018 e já está na metade do processo. Os autos abrangem o período de 1975 e 1979. 

— Quando a gente vive tempos traumáticos, algumas pessoas tendem a criar memórias que as apaziguem com o passado. Outra coisa é a história. Não há dúvida que houve tortura, isso é óbvio. É até um pouco reiterativo, repetitivo dizer que houve tortura. Houve. Ponto final. Claro que houve. Outra coisa é a memória que algumas pessoas constroem, de negação da tortura — conta. 

Em 2014, 377 pessoas foram responsabilizadas por crimes cometidos durante a ditadura, entre os quais tortura e assassinatos. O documento também aponta que 434 mortes e desaparecimentos no período, além de 230 locais de violações de direitos humanos. 

Veja o conteúdo dos áudios: 

  • Choque elétrico leva mulher a ter aborto

Em dos trechos revelados na coluna, o general Rodrigo Octávio descreve o caso em que uma mulher grávida de 3 meses sofreu um aborto após “castigos físicos” no Doi-Codi, órgão militar da ditadura. Ele diz, também, que conforme o marido da vitima, ela sofreu “choques elétricos em seu aparelho genital”. 

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“Na defesa das salvaguardas dos direitos e garantias individuais, expresso no artigo 153, parágrafo 14 da emenda constitucional 69, como consequência não só de nossa evolução política, lastreada em secular vocação democrática e formação humanística, espírito cristão, com o compromisso assumido na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovado em resolução da terceira sessão ordinária da Assembleia das Nações Unidas, tais acusações, a meu ver, devem ser devidamente apuradas através de competente inquérito, determinado com base no inciso 21 do artigo 40, da lei judiciária militar, Decreto Lei 1.003 de 69”, afirma. 

“É preciso que se evidencie de maneira clara e insofismável que o governo, através das Forças Armadas e dos órgãos de segurança, não pode responder pelo abuso e a ignorância e a maldade de irresponsáveis que usam torturas e sevícias para obtenção de pretensas provas comprometedoras na fase investigatória, pensando, em sua limitação cerebral, que estão bem servindo à estrutura política e jurídica regente, quando na realidade concorrem apenas na prática desumana, ilegal em denegrir a revolução retratando a sua configuração jurídica do Estado de Direito e abalando a confiança nacional pelo crime de terror e insegurança, criados na consecução honesta e urgente dos objetivos revolucionários”, acrescenta.

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  • Ministro diz que começa a acreditar nas torturas

Outro áudio traz uma fala do ministro togado Waldemar Torres da Costa, de 13 de outubro de 1976, onde ele diz durante o julgamento da Apelação 41.229: 

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“Começo a pedir a atenção dos meus eminentes pares para as apurações que são realizadas por oficiais das Forças Armadas. Quando as torturas são alegadas e às vezes impossíveis de ser provadas, mas atribuídas a autoridades policiais, eu confesso que começo a acreditar nessas torturas porque já há precedente. ”

  • “Prato para os inimidos do regime”

“Quando aqui vem à baila um caso de sevícias, esse se constitui um verdadeiro prato para os inimigos do regime e para a oposição ao governo. Imediatamente, as agências telegráficas e os correspondentes os jornais estrangeiros, com a liberdade que aqui lhes é assegurada, disseminam a notícia e a imprensa internacional em poucas horas publicam os atos de crueldade e desumanidade que se passam no Brasil, generalizando e dando a entender que constituímos uma nação de selvagens”, diz um trecho do almirante Julio de Sá Bierrenbach, de 19 de outubro de 1976, durante o julgamento da apelação 41.264. 

“Não podemos admitir é que o homem, depois de preso, tenha a sua integridade física atingida por indivíduos covardes, na maioria das vezes, de pior caráter que o encarcerado”, acrescenta. 

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  • Homem confessa crime após receber marteladas

Outro trecho, em 15 de junho de 1976, o ministro togado Amarílio Lopes Salgado cita que um homem suspeito de assaltar dois bancos estava presso quando houve um outro assalto. Ele, então, acabou confessando o crime após receber “marteladas”: 

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“É que ele [suspeito] alega que […] esse [outro assalto] ele não podia [ter cometido] porque estava preso. ‘Eu estou preso, estava preso na Ilha Grande’. Faz uma diligência e vem isso aí. Vou dar uma cópia para o procurador-geral porque esse moço apanhou um bocado, baixou hospital e citou o nome das duas pessoas que martelaram ele. […] Eles podem negar, mas que os nomes dos dois estão aí, estão. É fulano e beltrano. Martelaram esse moço, daí a confissão dele. Em juízo, ele confessa que não podia: ‘Eu estava lá na Ilha Grande’, no dia 26. ‘No dia 30, eu fugi e assaltei o banco tal no dia 31 e no dia 4 assaltei outro banco, mas no dia 26, não’. As declarações dele são longas, acho que no acórdão devia ser feito menção a isso.”

  • Grande constrangimento

Em 9 de junho de 1978, o general Augusto Fragoso diz em um julgamento que, como único representante do Exército na ocasião, sentiu “grande constrangimento” ao saber de acusações que, para ele, “não foram apuradas devidamente”. 

“ Eu, nesses 50 e tantos anos de serviço, vivendo crises militares de 30, 32 e 35, nunca vi, nunca ouvi, acusações desse jaez feitas a órgãos do Exército. Acho que nosso Exército, seguindo exemplo das forças irmãs, devia rapidamente ser recolher aos afazeres profissionais”, disse. 

Por último, o áudio de uma sessão de 19 de outubro de 1977 mostra o brigadeiro Deoclécio Lima de Siqueira dizendo que um ministro falou que um tribunal não poderia receber “indiscriminadamente toda e qualquer suspeita de sevícia”. Ainda segundo ele, se isso ocorresse, o STM poderia comprometer “aqueles que, de boa fé, com idealismo e patriotismo, se contrapõem à subversão”.

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Advogado confirma casos de tortura 

A reportagem do “O Globo” também publicou um trecho em que o advogado Sobral Pinto afirma, em 20 de junho de 1977, que há casos de tortura. 

“Os senhores ministros não acreditam na tortura. É uma pena que não possam acompanhar os processos como um advogado da minha categoria acompanha para ver como essa tortura se realiza permanentemente. E nesse processo, senhores juízes, há prova documental da tortura que sofreu Marco Antonio. Há um laudo firmado por médicos militares atestando essa tortura. O ilustre eminente advogado de Marco Antonio, doutor Mario Simas, vai mostrar aos senhores ministros esse documento”, afirma. 

O g1 tentou contato com o Exército e o Ministério da Defesa a respeito do conteúdo dos áudios, mas não teve retorno até a publicação. 

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