O desembargador de Santa Catarina João Marcos Buch, famoso por enviar cartas aos presos, resolveu escrever também para uma moradora do Rio de Janeiro. Ela mora no complexo da Penha que, junto com o complexo do Alemão, foi alvo de operação que terminou com 121 mortes. A ação policial se tornou a mais letal da história do Brasil. O magistrado classifica a intervenção como “chacina”.

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Buch conta que viu dona Nice em uma entrevista na televisão. Comovido pelas suas palavras, resolveu escrever sobre o que estava sentindo. “Sua entrevista me marcou profundamente. Moradora desde sempre da Penha, a senhora disse que já não tinha mais esperança, que, nessa altura da vida, tendo visto tanta tragédia, tantas operações policiais, tantas pessoas próximas assassinadas, não acreditava mais que um dia a vida melhoraria — tudo era tristeza.”, diz Buch na carta à qual a reportagem teve acesso.

O relato da moradora carioca motivou a escrita da carta. O magistrado conta que quis trazer um olhar humanizado para uma operação que, muitas vezes, só se vê a partir dos números.

— É uma carta que traz um tom humanizado dessa realidade. Qual é o meu objetivo, a minha vontade? Trazer uma comunicação não violenta, mais fraterna e sensível desta realidade. A gente sabe que, como eu coloco ali, essas questões de violência da nossa sociedade precisam de ações concretas do Estado enfrentando as injustiças que acontecem. Mas, nós precisamos olhar para o ser humano e sentir a sua realidade, sua humanidade e tentar de alguma forma entender que nós estamos juntos nessa vida — reflete.

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Na carta, Buch reflete sobre o papel do Estado nas comunidades carentes do Brasil. “Em meus estudos e em meu trabalho, aprendi algo sobre o fenômeno da violência urbana. Depois de algum tempo procurando entender nossa sociedade, tomei conhecimento de que a fórmula do “confronto” na segurança pública é fadada ao fracasso. A senhora sabe disso bem antes de mim. Essa fórmula ceifa vidas de todos os lados e não supera as dificuldades das comunidades vulnerabilizadas. Por que é tão difícil que governos e autoridades entendam que somente políticas públicas inclusivas — de habitação, saneamento, saúde, educação, empregabilidade, cultura e lazer — articuladas à segurança pública, podem trazer benefícios reais para toda a sociedade?”, comenta na publicação.

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Buch enfatiza que é função do Estado ofertar direitos básicos para a população. Segundo ele, se as comunidades recebessem outras intervenções como saúde, empregabilidade, saneamento, cultura e educação, que amenizassem a carência, a violência não se instalaria na comunidade.

— Quer dizer, se há uma violência ali naquela realidade é porque houve uma falta do Estado em outros equipamentos anteriores. Aí o estado comparece apenas com a segurança pública? Não, a segurança pública tem que ser articulada com inteligência e com essa noção de que só vamos superar a violência, a partir do momento que nós ofertarmos oportunidades aos jovens que moram nessas localidades. Do contrário, tudo acaba piorando e a gente só aguarda uma nova intervenção, uma nova operação que pode resultar nessa chacina — destaca Buch em entrevista ao NSC Total.

Ainda na carta, o desembargador catarinense lembra que  até a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do seu Alto Comissariado dos Direitos Humanos, declarou que a operação policial no Rio de Janeiro ampliou a tendência de consequências extremamente letais sobre as comunidades marginalizadas e enfatizou que as autoridades têm obrigação perante as leis internacionais de direitos humanos.

“Mas o que isso importa, não é? A chacina já aconteceu, vidas foram ceifadas, até policiais morreram — e não consigo imaginar a dor das famílias que tiveram seus entes sequestrados de suas vidas para todo o sempre. Ainda sinto que um dia a justiça alcançará a todos os cidadãos, que as instituições funcionarão conforme a Constituição e que a dignidade da pessoa humana será, em definitivo, fundamento da República”, ainda cita em carta.

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Buch também ressalta que o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu, em uma ação proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (ADPF n.º 635, conhecida como ADPF das Favelas), que o governo do Rio deve seguir diversas regras nas operações policiais, como o uso proporcional da força, câmeras nas viaturas, elaboração de um plano de reocupação de territórios invadidos por organizações criminosas, bem como a entrada da Polícia Federal nas investigações contra milícias e tráfico de drogas interestadual e internacional. “Olha, Dona Nice, parece que o Supremo não foi muito bem respeitado. Creio, inclusive, que logo logo as autoridades terão de prestar contas”, comenta.

Por fim, o magistrado ainda afirma em carta que tem esperanças que “um dia a justiça alcançará a todos os cidadãos, que as instituições funcionarão conforme a Constituição e que a dignidade da pessoa humana será, em definitivo, fundamento da República”.

Leia a carta na íntegra

Uma Carta para Dona Nice

Querida Dona Nice, escrevo-lhe com afeto e respeito.

Meu nome é João Marcos, moro em Santa Catarina e trabalho com a Justiça. Sou desembargador, nome dado a juízes que atuam em recursos nos tribunais.

Na última terça-feira, vi sua entrevista no jornal da TV. A senhora voltava para casa, com sacolas de supermercado nas mãos, e foi parada por uma repórter que queria saber sobre a chacina ocorrida mais cedo nos complexos da Penha e do Alemão, onde mais tarde se viria a constatar que  121 pessoas (pode ser além) haviam sido mortas, na mais sangrenta intervenção da segurança pública já ocorrida no Rio de Janeiro e no Brasil dos tempos atuais.

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Sua entrevista me marcou profundamente. Moradora desde sempre da Penha, a senhora disse que já não tinha mais esperança, que, nessa altura da vida, tendo visto tanta tragédia, tantas operações policiais, tantas pessoas próximas assassinadas, não acreditava mais que um dia a vida melhoraria — tudo era tristeza. Em seguida, a senhora se despediu da repórter e retomou seu caminho para casa, cambaleante, cansada, segurando as sacolas.

Hoje já é domingo; faz cinco dias que eu penso na senhora, faz cinco dias que estou andando ao seu lado, faz cinco dias que tento carregar as suas sacolas até sua casa. Por isso, querida Dona Nice, com o coração inquieto, mesmo sem saber nada da sua vida, senão o fato de que a senhora perdeu a esperança, resolvi lhe escrever.

Eu sei que esta carta nunca chegará a seu destino, pois nunca a postarei. Impotente que sou para modificar um átomo de sua vida e para lhe oferecer uma centelha de esperança, escrevo-lhe porque não consigo fazer diferente, porque não sei mais se a esperança também me abandonou.

Assim como nas favelas de Florianópolis,  já estive em favelas do Rio; já me encharquei da beleza e da bondade de pessoas que tão bem me acolheram. E já testemunhei muita dor e injustiça. Entretanto, o fato é que nada mais conheço, além de que a vida de quem mora nessas comunidades periféricas é carente de direitos e de oportunidades.

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Sabe, Dona Nice, sempre tive o cuidado de não me arvorar em senhor das verdades, e me incomoda muito ver quem acha que sabe de tudo — cegado por redes sociais e algoritmos —, pessoas com quem é impossível argumentar com base em fatos e lógica. É desolador ouvir suas vozes celebrando a chacina, justificando o horror com acusações sem conhecimento de causa sobre crimes antes cometidos. De onde vem esse ódio? De que veneno se alimentam esses seres humanos? Onde está sua bondade, sua compaixão?

Fico a pensar o que essas manifestações causam na senhora, que tanto já testemunhou e viveu. Será que a senhora ainda chora, ainda se revolta com a opressão e a violência que sua comunidade sofre? Essa chacina, para mim, que vivo em um apartamento confortável, localizado em um bairro seguro, saneado, arborizado, com espaços de cultura e lazer, provocou espanto, lamento e indignação. Porém, quando a pessoa tem sua dignidade tão ferida e há tanto tempo, ela acaba perdendo a consciência de que aquela situação fere de morte seus direitos. Então, não sei o quanto isso tudo lhe afetou; só sei que a esperança lhe foi roubada.

Em meus estudos e em meu trabalho, aprendi algo sobre o fenômeno da violência urbana. Depois de algum tempo procurando entender nossa sociedade, tomei conhecimento de que a fórmula do “confronto” na segurança pública é fadada ao fracasso (a senhora sabe disso bem antes de mim). Essa fórmula ceifa vidas de todos os lados e não supera as dificuldades das comunidades vulnerabilizadas. Por que é tão difícil que governos e autoridades entendam que somente políticas públicas inclusivas — de habitação, saneamento, saúde, educação, empregabilidade, cultura e lazer — articuladas à segurança pública, podem trazer benefícios reais para toda a sociedade?

No país, nós temos o Supremo Tribunal Federal (STF). Pois bem, a mais alta corte da Justiça definiu, em uma ação proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (ADPF n.º 635, conhecida como ADPF das Favelas), que o governo do Rio deve seguir diversas regras nas operações policiais, como o uso proporcional da força, câmeras nas viaturas, elaboração de um plano de reocupação de territórios invadidos por organizações criminosas, bem como a entrada da Polícia Federal nas investigações contra milícias e tráfico de drogas interestadual e internacional. Olha, Dona Nice, parece que o Supremo não foi muito bem respeitado. Creio, inclusive, que logo logo autoridades terão de prestar contas.

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Aliás, até a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do seu Alto Comissariado dos Direitos Humanos, declarou que essa operação policial — que eu chamo de chacina — ampliou a tendência de consequências extremamente letais sobre as comunidades marginalizadas e enfatizou que as autoridades têm obrigação perante as leis internacionais de direitos humanos.

Mas o que isso importa, não é? A chacina já aconteceu, vidas foram ceifadas, até policiais morreram — e não consigo imaginar a dor das famílias que tiveram seus entes sequestrados de suas vidas para todo o sempre.

Ainda sinto que um dia a justiça alcançará a todos os cidadãos, que as instituições funcionarão conforme a Constituição e que a dignidade da pessoa humana será, em definitivo, fundamento da República.

Dona Nice, inspirado na leitura de um livro chamado Antes que as Palavras te Abandonem, de um grande amigo, Leonardo Tônus, em que um imigrante, à procura de um amigo refugiado afegão em Berlim, escreve-lhe cartas, eu lhe digo que, se pudesse, eu a abraçaria e afirmaria, com o coração aberto, que não importa mais o resultado da luta, mas a capacidade de entender o seu chamado.

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Dona Nice, neste Brasil tão sangrento, de séculos de escravidão, racismo, patriarcado e colonialismo, não tenho o direito de lhe pedir que volte a ter esperança. Entretanto, ouso lhe pedir outra coisa: atenda nosso chamado, não desista de mim, não desista de nós, não desista da humanidade. 

Querida Dona Nice, a senhora é a nossa esperança, volte,

João Marcos Buch

Desterro, 02/11/25 – finados