Meu avô era uma pessoa econômica. Posso constranger a família, mas preciso admitir que, na verdade, ele era um sovina clássico, daquele que vestia camisa puída enquanto o dinheiro abarrotava caixas de sapato. Minha avó padecia para esticar a grana da feira, comprar presentes para os netos ou um vestido novo. “Vó, como você aguenta o vô?”, questionávamos, indignados. “Ele tem muitas qualidades”, ela justificava. E tinha mesmo. Como também um punhado de outros defeitos.
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Ser humano nenhum é uma obra-prima irretocável. Todos nós temos imperfeições. Algumas mais graves, outras nem tanto. Podemos estar mais ou menos conscientes de nossas partes ásperas, pontiagudas ou ferozes. Mesmo assim, na hora de viver perto… ai, como o outro é difícil! Como isso me irrita! Isso o quê? Vai depender de como as características, digamos, menos virtuosas daquela pessoa afetam quem está ao redor. É extremamente pessoal. Atraso, bagunça, egoísmo, consumismo, impaciência, teimosia, carência, grosseria, prepotência… Qual delas fermentou aí dentro? E o que dá para relevar?
“Quanto maior a intimidade, mais enxergamos os defeitos das pessoas, porque, na convivência diária ou intensiva, ninguém consegue esconder o que é. E somos uma totalidade”, aponta a psicóloga clínica Maira Moura. Com o tempo, em muitos casos, críticas e reclamações vão se tornando frequentes, podendo ofuscar traços e gestos que tanto nos encantavam naquele ser, seja um amante, um amigo, um familiar.
Conheça os seus limites
No entanto, alerta a psicanalista Keila Bis, não devemos tomar por naturais as implicâncias e os desentendimentos desmedidos, que, feito infiltração na alvenaria, vão minando a relação. “Há muitos relacionamentos em que isso não existe porque as pessoas são mais flexíveis, não são críticas, não se veem como as donas da verdade ou já entenderam que nós todos temos nossas particularidades e que, por isso mesmo, temos que saber relevar a dos outros”, ela frisa.
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Veja bem, estamos falando de características ou atitudes de que desgostamos em alguém ou que não se alinham aos nossos valores. O que é totalmente diferente dos comportamentos “tóxicos”: aqueles que ferem, rebaixam e prejudicam o outro.
“Cada um precisa saber ou ir conhecendo seus limites, que, com o passar do tempo, podem ir mudando. Ou seja, algo que não se suportaria no passado agora é facilmente suportável. Contudo, há coisas que não devem nunca ser acatadas: violência física, verbal, humilhações, subjugações, autoritarismo, preconceito, desrespeito com os limites do outro”, lista Keila.
De onde veio este rótulo?
Feita essa urgente ressalva, voltemos aos defeitos que, para alívio geral, nos humanizam. Carolina Nalon, mediadora de conflitos e fundadora do Instituto Tiê, considera que encasquetar com as imperfeições alheias denuncia o nosso olhar viciado. Aquele viés implacável que nos leva a etiquetar pessoas, aprisionando-as numa pintura monocromática.
“Podemos começar tomando consciência dos rótulos que demos para os outros. Será que eles são só isso mesmo? Até porque esses carimbos não passam de interpretações nossas, e não uma verdade sobre o outro”, ela distingue.
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Em vez de enxergar rótulos, a comunicação não violenta procura o que está no verso deles: nossas necessidades não atendidas. Justamente o que deveríamos comunicar ao outro em vez de atacá-lo por nos frustrar ou contrariar.
Por exemplo, se você considera seu amigo egoísta, reflita: o que eu estou precisando nessa relação que não estou tendo? Será que careço de mais apoio, empatia, atenção? Por outro lado, se ele não está me oferecendo essas coisas é porque, provavelmente, está focado em atender alguma outra necessidade dele, que pode ser qual?
A importância do diálogo
A partir dessas ponderações internas, orienta Carolina, podemos abrir a conversa; de preferência, num momento tranquilo, pois aí ela terá mais chances de ser uma ponte bem pavimentada pela escuta e pela expressão autêntica dos sentimentos em questão.
“Talvez o que irrita o outro seja algo difícil de ser percebido em nós, e vice-versa. Por isso, pode haver o acordo de um sinalizar mútuo quando o comportamento acontecer. Mas é importante pactuar com alguém que esteja a fim de contribuir para a relação, e não somente querer provar o quanto o outro é péssimo fazendo o que faz”, ela reitera.
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Os paulistanos Thais Natale e Daniel Kodama estão juntos desde 1998 e garantem que a estratégia funciona. “É um processo de conscientização mútuo e gradual que pode ser feito com paciência e tato”, explica Daniel. “Assim vamos prestando atenção para não fazermos aquilo de novo”, complementa Thais.
Já Débora Tirabasso e Rafael Drygalla se apaixonaram em 2018 e passaram a viver e a trabalhar juntos no ramo da confeitaria. O arranjo, que poderia acirrar picuinhas, até agora tem sido bem aproveitado para alinhamentos. “Combinamos falar o que nos incomoda para que isso não cresça”, conta Rafael. Já Débora faz uma triagem consigo mesma antes de ter clareza se determinado episódio requer acertos ou se era apenas birra momentânea. Sábia medida.
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Empenho conjunto
Também pode acontecer de a aversão gerada pelo jeito de ser de alguém mostrar algo da nossa personalidade difícil de admitirmos até para nós mesmos. “Esses embates podem ser ótimas oportunidades para refletirmos em que momentos somos egoístas, intransigentes, acomodados, seja em algum grau ou em algum setor da vida”, sublinha Maira. Mas nada de demonizar defeitos de antemão, sem antes examiná-los com sagacidade.
Como a psicóloga lembra, dependendo da situação, podemos nos apropriar dessas características e usá-las em prol das nossas empreitadas de um jeito criativo, afetivo, propositivo. “O egoísmo, por exemplo, pode ser positivo quando alguém precisa sobreviver e se desvencilhar de uma situação abusiva”, ela pontua.
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Ainda assim, é importante saber quando deixar nossos “monstros” quietos. Isso quer dizer, quando não vierem a acrescentar nada. É assim que, muitas vezes, evitamos agressões e acusações que só fazem machucar.
Narciso invertido
Curiosamente, também podemos ficar hipnotizados por nossas próprias falhas. Tal qual um Narciso invertido. Como observa Anna Carolina Saragiotto, facilitadora de comunicação não violenta, podemos estar tão preocupados com nós mesmos que somente miramos nossos defeitos ou aquilo em que não nos destacamos.
“A grande sacada da comunicação não violenta (CNV) é saber que os defeitos ou os julgamentos moralizadores, que muitas vezes enxergamos nos outros e em nós mesmos, só nos afastam da nossa verdadeira conexão”, ela destaca.
Então, quando buscamos nos compreender em nossa precária condição, nossa vulnerabilidade partilhada emerge como a bandeira da trégua. “É dessa forma que vamos reduzir a violência no mundo e dentro de nós, baseando-nos na vulnerabilidade e no reconhecimento e expressão de sentimentos e necessidades tanto nossos quanto das outras pessoas”, resume a facilitadora.
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A mudança começa por você!
Uma coisa é inegável: não dá para ficar apontando os defeitos dos outros e dizendo que eles têm de mudar se nós mesmos não estamos fazendo esforço nenhum para nos aprimorar em nome de uma relação mais harmoniosa, alegre, pacífica, amorosa ou mais interessante.
Relações são feitas de pessoas, e a responsabilidade está dividida entre todas elas. Além disso, ressalta Keila, relacionamentos não são desculpa para mudar o outro, e sim oportunidades preciosas para a gente se alargar, se transformar, superar egoísmos, autoritarismos, orgulhos e outras mazelas.
Esse assunto remete àquele jogo de varetas coloridas. Cada um de nós se parece com aquele emaranhado cheio de ângulos, inclinações, partes estáveis e outras bambaleantes. Por isso, não é prudente sair arrancando varetas desavisadamente. Há que sossegar as mãos antes. Tendo clareza e aceitando quem a gente é para não pregarmos nos outros rótulos que, não raro, dizem tanto sobre nós e nossos próprios desafios.
Claro que, se o desgaste beirar o impossível, é preciso refletir se ainda faz sentido manter a relação, reconhecendo os próprios limites. Do contrário, vale recordar um pensamento certeiro da escritora Clarice Lispector: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é aquele que sustenta um edifício inteiro”.
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Fico imaginando meu avô com a carteira aberta, sempre de roupa nova, carrinho do supermercado transbordando. Não, esse seria outro homem. Jamais meu avô amado. Refuto a visão e, em pensamento, saio correndo para abraçar aquele senhor ranzinza, trajando camisa surrada, do jeitinho que ele, arrimo de família desde cedo, conseguiu ser.
Por Raphaela de Campos Mello – revista Vida Simples
É jornalista e ainda se atrapalha um bocado no jogo de varetas.
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