Por Sansara Buriti, especial
Um casal, duas culturas, muitos desafios. O encontro de pessoas de diferentes cantos do mundo não é uma novidade. Mas, nos últimos tempos, o aumento da mobilidade e a facilidade de se conectar por meio da internet fazem com que seja cada vez mais comum a formação de casais binacionais. Mas se no início do relacionamento as diferenças culturais são um fator de atração, com o passar do tempo podem ser justamente o ponto de conflito entre os envolvidos. Como lidar com isso? Para marcar o Dia dos Namorados, casais interculturais de Santa Catarina compartilham suas experiências.
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Seguindo o coração
Quando abriu o presente dado pela sogra, a fonoaudióloga alemã Maria Teresa Leitner, 29 anos, nem pensou duas vezes antes de falar que não tinha gostado e queria trocar.
– Era uma roupa de cama, mas eu não gostei do estilo, sabia que não iria usar. Fui sincera e pensei no lado prático – diz Maria Teresa, que hoje lembra da situação constrangedora de forma bem-humorada.
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– Minha mãe ficou envergonhada, se sentiu mal. Expliquei para ela que os alemães são mais diretos na linguagem,tentei mostrar o lado bom disso, mas claro que na hora a atitude da Maria Teresa teve um impacto – conta o engenheiro de automação catarinense Gabriel Paim, 32 anos.
Os dois se conheceram em 2009 durante um festival de música alternativa em Berlim. Gabriel fazia um estágio em uma multinacional de tecnologia em Munique, e Maria Teresa estudava fonoaudiologia em Potsdam. Depois do evento, passaram a conversar com frequência pela internet, se encontraram algumas vezes, mas sem pensar em planos futuros. Dois meses depois de se conhecerem, Gabriel retornou ao Brasil. As conversas continuaram por mais alguns meses até ele convidá-la para conhecer o Rio de Janeiro, de onde é uma parte da família.
– Floresta Amazônica e Rio Janeiro eram as poucas referências que eu tinha do Brasil. Quando cheguei, achei o clima muito quente. Estava totalmente perdida, não entendia nada de português, mas desde o início gostei da comida caseira, tipo arroz e feijão. Não existe restaurante a quilo na Alemanha, então até eu saber lidar com todo o excesso de comida, passei mal algumas vezes. Hoje sei deixar um espacinho para a sobremesa – brinca Maria Teresa.
Até que ela viesse definitivamente para o Brasil foram dois anos de namoro à distância. A decisão de construir uma vida longe da Alemanha não foi bem recebida pela família, principalmente pela mãe.
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– Ela dizia que eu estava deixando a família para trás, mas o que eu podia fazer? Mesmo sendo de lugares tão diferentes, eu e o Gabriel merecíamos uma chance. Na vida não temos garantia de nada. Penso que nos arrependemos mais das coisas que deixamos de fazer do que das que fazemos. Hoje fico pensando como seria se eu não tivesse seguido meu coração? – lembra emocionada.
A mudança para o país do cônjuge pode gerar situações de dependência, especialmente quando não se domina o idioma local. É importante ter paciência e maturidade para encarar o período de adaptação sem culpar o outro.
– O fato de eu ter vindo para o Brasil para viver com o Gabriel não faz dele o responsável pela minha felicidade. Eu vim porque quis, não vou fazer disso um peso para ele carregar – afirma Maria Teresa.
– No início ela era tímida e introspectiva, então percebeu que para socializar e fazer amigos teria que aprender português. Começou a estudar muito, ficava até tarde da noite com os livrinhos de gramática, prestava atenção aos detalhes da pronúncia das palavras – lembra Gabriel.
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O esforço deu resultado: a pronúncia do português de Maria Teresa é realmente impressionante. A não ser que ela diga, é praticamente impossível saber de sua origem alemã. Morando há seis anos em Florianópolis, ela agora encara um novo desafio: a maternidade. Iva, de nove meses, inspirou a fonoaudióloga a criar no Facebook a página Mamãe Alemã. A ideia é compartilhar informações sobre diversos temas, como introdução alimentar, desenvolvimento dos bebês e educação bilíngue.
– Vamos dar todo o carinho e aconchego para a nossa filha, mas sempre dando espaço para ela se sentir livre. A próxima geração vai olhar menos para as diferenças e mais para o que temos em comum uns com os outros. Sobre minha experiência no Brasil, posso dizer que aprendi com o Gabriel uma forma mais leve de viver, aceito mais os altos e baixos da vida – diz Maria.
– Com a Maria aprendi a ser mais pragmático e mais firme com as coisas que quero. Morar em outro país abre a cabeça de uma forma única, pois nos faz questionar a nossa própria cultura. A Iva vai crescer tendo pontos de vista diferentes, creio que isso é uma oportunidade de ter mais senso crítico sobre o que normalmente consideramos óbvio – afirma Gabriel.
Parceria musical e afetiva
A música uniu a pianista e cantora paulista Dayana Núñez, 34 anos, e o filósofo e multi-instrumentista Jeff Nefferkturu, 31 anos. Os dois se conheciam de vista e descobriram as muitas afinidades depois de madrugadas conversando na internet. Marcaram encontro na casa dela para apresentar composições próprias, e assim nascia a parceria musical e afetiva que já dura três anos.
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Jeff é de Cabo Verde, país africano formado por um arquipélago de dez ilhas na região central do oceano Atlântico. Vivendo em Florianópolis desde 2007, formou-se em filosofia e atualmente estuda música na Udesc, universidade onde Dayana é graduada no mesmo curso.
– Através dele conheci mais a cultura cabo-verdiana. Me interessei muito pelo lado matriarcal presente no batuku e na tchabéta, que são músicas cantadas e tocadas por mulheres. Quando canto, me sinto de alguma forma conectada com elas – explica Dayana sobre essas manifestações tradicionalmente femininas da ilha de Santiago, que representavam a resistência e a luta das mulheres escravizadas contra o colonialismo.
Por causa de Dayana, Jeff passou a ter ainda mais contato com a música popular brasileira. O repertório musical da dupla reflete a bagagem cultural de cada um, mesclando canções em português, criolo cabo-verdiano e também guarânias, chamamés e chacareras, influência que Dayana recebeu da mãe paraguaia.
– Ela canta muito bem em criolo e faz sucesso entre a comunidade musical cabo-verdiana, inclusive foi citada em um site de Cabo Verde sobre estrangeiros que divulgam a música do país em outras partes do mundo. Além disso, é uma excelente professora, muito didática e sempre buscando aprender – elogia Jeff.
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Os dois planejam viajar para o Paraguai, Índia e vários países africanos para conhecera música e a cultura local e também compartilhar sua arte. Apesar dos pequenos conflitos do dia a dia de um casal intercultural, Dayana acredita que eles lidam bem com as diferenças. O estranhamento acaba sendo maior por parte de quem está de fora da relação.
– Quando falo que meu companheiro é de Cabo Verde, as pessoas sempre perguntam se ele toca percussão ou se é refugiado. Também questionam as roupas que ele usa, os cabelos. É um pouco desgastante ficar explicando e desfazendo esses estereótipos que as pessoas tem sobre os africanos – desabafa.
– Para o relacionamento entre pessoas de culturas diferentes dar certo é preciso ter boa vontade e tentar entender o outro sem julgar – acredita o cabo-verdiano.
No início do namoro, ela mostrou a Jeff uma composição que batizou de Penhasco, porque não tinha um final resolvido.
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– Ele me convenceu a terminar a composição. Eu retomei, criei uma letra e agora a música se chama Moça, o amor não dói – conta Dayana.
Pensamentos alinhados
O Brasil sempre esteve perto de Emiliano Machado, 35 anos. Precisamente a cinco quadras de distância da casa dele. Nascido em Rivera, cidade uruguaia que faz fronteira com Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, o consultor em gastronomia teve contato coma língua portuguesa desde a infância. Aos 16 anos, saiu da pequena cidade para conhecer o mundo. Viajou para vários países, morou na Argentina e no México, mas sequer imaginava criar raízes no Brasil.
A convite de um amigo, veio morar em Florianópolis há quatro anos. Logo no primeiro dia conheceu Fernanda, que viria a ser sua futura esposa.
– O amigo do Emiliano também era meu amigo, fazíamos pós-graduação na mesma turma, e eles chegaram juntos numa feijoada no centro da cidade. Nos conhecemos lá, e desde esse dia começamos a sair com a mesma turma. O que me chamou a atenção nele era o fato de ser diferente, ter morado em outros países, algo que eu sempre quis fazer – lembra a designer de produto Fernanda Brocatto, 33 anos.
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– Sempre achei a Fernanda muito inteligente, com valores claros e sabendo onde queria chegar. Eu vinha de uma espécie de adolescência prolongada e estava com vontade de formar uma família, ficar mais tranquilo. Nosso encontro mostrou que estávamos com pensamentos alinhados – conta Emiliano.
– Conhecer a pessoa que o filho ou a filha escolheu para ficar é algo impactante para os pais, ainda mais se for um estrangeiro. Eu brincava com o pai da Fernanda dizendo que ele devia parar de ficar mudando de time toda hora e torcer para o Corinthians. Ele virou para ela e soltou a frase que nunca vou esquecer: Você foi arranjar um cara uruguaio e corintiano! – ri Emiliano, garantindo ter uma relação amigável com o sogro, independente das divergências futebolísticas.
O encontro de Fernanda com a família de Emiliano no Uruguai foi mais tranquilo do que ela imaginava.
– Pensei que poderia haver um pouco de ciúme por ele ser o filho mais velho e único homem da família, mas me dei muito bem coma mãe e as irmãs dele, mesmo não falando espanhol – diz a designer.
Há dois meses a família aumentou com achegada de Alexia, primeira filha do casal. Desde o início da gravidez eles pensaram em nomes que pudessem ser pronunciados facilmente em vários idiomas, atitude que confirma os princípios que pretendem transmitir à filha.
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– Vamos criá-la para ter asas e pensamento amplo, conhecer e morar em outros países, se for da vontade dela. Vou ensinar o espanhol, pois falar outro idioma possibilita mais oportunidades. Por vir de um país pequeno, com pouca indústria e dinheiro, acredito que sou menos materialista. Concordo com o José Mojica (ex-presidente do Uruguai) que diz que quanto mais a gente tem, mais a gente necessita. Os uruguaios são menos consumistas, aprenderam ase virar com pouco, e eu tento trazer essa simplicidade para a nossa vida – afirma Emiliano.