Em 1938, a insatisfação de alguns grupos políticos contra o governo de Getúlio Vargas motivou um movimento chamado “Camisas-Verdes”. Doutrinados pelos ideais fascistas que vinham em ascensão na Europa, integrantes da chamada Ação Integralista Brasileira (AIB) tentaram um golpe de Estado — sem sucesso. Seis meses após a falha intentona, catarinenses envolvidos no esquema foram presos e levados à Penitenciária da Pedra Grande, em Florianópolis. E foi justamente lá que o blumenauense Júlio Baumgarten escreveu em um papel higiênico memórias recém-descobertas. O objeto se tornou item histórico e, agora, faz parte do acervo do Arquivo de Blumenau.

Continua depois da publicidade

Receba notícias de Blumenau e região por WhatsApp

As folhas finas e com textos escritos em alemão foram encontradas dentro de uma caixa de charutos, no fundo de um armário. As palavras, rabiscadas minuciosamente e cuidadosamente a lápis, revelam as lembranças de Baumgarten durante os primeiros dias na cadeia. Além dele, que era editor do jornal “Blumenauer Zeitung”, outros 18 conterrâneos foram detidos acusados de envolvimento na ação subversiva que tentou tomar o Palácio da Guanabara e tirar Vargas do poder. O texto (confira na íntegra abaixo), não revela grandes epopeias, mas o curioso cenário de um prisioneiro quase nove décadas atrás. As explanações vão desde o sabor da comida — muitas vezes elogiado —, a falta de cigarros, até o comprimento da barba. 

Veja fotos da descoberta

“Após uma noite mais ou menos mal dormida, ressoam na sexta-feira cinco batidas secas de sino — aparentemente 5h —, horário geral de despertar. A vida começa em todos os cantos das enormes instalações. A sexta-feira trouxe consigo as primeiras surpresas e decepções. Às 6h da manhã, uma xícara de café repugnantemente doce e um pão, que não é muito ruim. No decorrer da manhã havia uma série de formalidades a serem cumpridas, todas para o álbum criminal”, revela Júlio Baumgarten no diário escrito em papel higiênico após a primeira noite na penitenciária.

Continua depois da publicidade

Descoberta do testamento de Dr. Blumenau é novo capítulo para a história do Vale

Para Sueli Petry, historiadora e diretora do Patrimônio Histórico e Museológico de Blumenau, essa descoberta corrobora o conhecimento sobre aqueles tempos da Era Vargas:

— É muito significativo porque [os relatos no papel higiênico] vêm para fortalecer o que já se conhecia, complementando o acervo documental tanto sobre integralismo, quanto sobre prisioneiros — destaca Sueli. A historiadora reforça que a cidade, à época, tinha uma forte aproximação com a AIB, inclusive com a eleição do integralista Alberto Stein, em março de 1936. Stein foi afastado do cargo em um “antigolpe de Estado”, dando lugar a José Ferreira da Silva. 

Golpe previa tomada da prefeitura e até de rádio

A Ação Integralista Brasileira planejava, também, um movimento subversivo em Blumenau. No dia 10 de março de 1938, Ewald Mund reuniu integralistas de confiança, como Arioswaldo Guimarães e Flávio Ferraz, informando-os sobre a iminente revolução integralista em todo o país. Mund organizou listas com nomes de integralistas que seriam divididos em grupos para tomar a prefeitura, a Rádio Clube de Blumenau e a Casa Hoepcke S/A, onde havia armamentos necessários. 

Quem foram os 310 primeiros imigrantes de Blumenau? Veja se o seu sobrenome está na lista

Ele também recrutou pessoas como Julio Baumgarten e Erwino Possamai para ficarem de prontidão e participarem ativamente da revolução, caso necessário. Outros, como Nicácio Schaeffer e Curt Boehme, foram convidados a se apossar de depósitos de munições e outros pontos estratégicos na cidade. Esses detalhes estão descritos na tese de doutorado de Clayton Hackenhaar, intitulada “O integralismo em SC e a tentativa de golpe de março de 1938”.

Continua depois da publicidade

Ou seja, na prática os integralistas blumenauenses aguardavam apenas um aval do Rio de Janeiro para, então, concretizar também o golpe na maior cidade do Vale do Itajaí. Todo esse plano foi estopim para uma investigação que, meses mais tarde, terminaria na prisão de Baumgarten em Florianópolis.

— Essa descoberta histórica não só nos ajuda a revelar memórias de eventos que marcaram profundamente o Brasil, mas também nos traz importantes aspectos da vida cotidiana e do pensamento dos nossos antepassados. São relatos que expõem momentos difíceis e controversos da formação da República e nos permitem uma reflexão crítica sobre o passado.  A grandeza da mensagem aliada a humildade da forma do registro, em uma papel higiênico, só reforçam a capacidade do ser humano de resiliência e superação e nos desperta uma grande curiosidade sobre o tema e o desfecho dessa história — afirma o secretário de Cultura e Relações Institucionais de Blumenau, Sylvio Zimmermann.

Ah, e sobre Júlio Baumgarten? Foi solto em 27 de outubro de 1938 por ser réu primário. 

Primeiro registro de uma grande enchente em Blumenau é achado na Alemanha

Leia a tradução do texto na íntegra

1ª Folha de papel higiênico

Penitenciaria da Pedra Grande

Florianópolis, 3/10/38

Melhor Tesouro! (Bester Schatz!)

Como a nossa situação está aqui, podes julgar melhor por este papel! 

Na esperança de que eu consiga fazer chegar essas linhas até ti, eu quero relatar, a seguir, o andar dos eventos até o dia de hoje.  Na 5ª. feira, logo após às 5 horas, chegamos à Polícia da capital. Como havia pessoas a bordo, que já sabiam, que não haveria mais comida na Penitenciaria quando chegássemos, solicitamos ao Capitão em serviço, que nos permitisse ir até um hotel, acompanhados por um guarda, para que pudéssemos comer algo. Resultado: Após aproximadamente uma hora veio um soldado com um prato grande, que continha arroz, picadinho, e alguns pedaços de carne – a primeira refeição na cadeia! Cada um de nós recebeu um prato e uma colher e nós fomos autorizados a nos servir! Aproximadamente às 8 horas todas as formalidades necessárias foram preenchidas, para que pudéssemos ser transferidos para a Penitenciária, onde novamente havia uma série de formalidades a serem cumpridas. Fomos autorizados a pegar na mala a escova de dentes e creme (quem tivesse). Todo o resto ficou na mala, na qual ainda foram colocadas todas as coisas que tínhamos nos bolsos, exceto dinheiro, que foi guardado em custódia especial. O único que fui autorizado a levar para a minha cela foi um lenço, uma toalha de mão, o cobertor de lã e meu casaco, pois havia carência de roupa de cama. Foi dito que nos próximos dias nós poderíamos receber mais alguns itens de nossas coisas, mas até agora ainda nada recebemos.

2ª Folha de papel higiênico

Após sermos, como se diz, completamente desarmados, fomos dirigidos, um após o outro, para sua cela: espaços de aproximadamente 8 m2 com cama (dura como madeira!), pequena tábua de parede como mesa, pequena prateleira de parede, embaixo separado o vaso sanitário e pia; além disso uma lâmpada elétrica, que fica queimando a noite toda; ao lado oposto da entrada fica uma abertura com largura de meia janela, na frente da qual estão 4 barras de ferro, as janelas estão assim dispostas, que não permitem enxergar muito. Após uma noite mais ou menos mal dormida, ressoam na 6ª feira cinco batidas secas de sino – aparentemente 5 horas – horário geral de despertar. A vida começa em todos os cantos das enormes instalações. 

Continua depois da publicidade

A sexta-feira trouxe consigo as primeiras surpresas e decepções. Às 6 horas da manhã uma xícara de café repugnantemente doce e um pão, que não é muito ruim. No decorrer da manhã: havia uma série de formalidades a serem cumpridas – para o álbum criminal!

Captura de foto – 21 impressões digitais de cada dedo das duas mãos, etc. 

Meio-dia: um prato de feijão com arroz e carne, menos boa do que bastante! 

Na sexta-feira de tarde nos encontramos novamente no escritório da Instituição. Primeiro fomos individualmente ao “Líder” onde nós três que, segundo a sentença, temos que ficar aqui mais de 30 dias, tivemos o cabelo cortado bem curto! (Dietrichkeit, Boehme e eu!). 

Para adaptar completamente a nossa aparência ao ambiente, ganhamos um terno de zebra, como diz Bürger, ou seja, “pijamas” listrados de branco e azul (!) Tamancos de madeira e chapéus parecem estar em falta, pois fomos poupados deles até hoje. – 5 horas café e um biscoito, às 7 horas o mesmo. Então novamente a noite sem fim.

3ª Folha de papel higiênico

Sábado – inicia como na sexta-feira. Ainda nada de cigarro, nada de jornal, nada de papel, e nada de um lápis! Nós nos vemos somente na hora do banho; no caminho para os quartos também encontramos o Ehlers de Jaraguá; ele mora um andar acima de nós. Estamos aqui todos acomodados um ao lado do outro. Números 2-12 (números pares)! Desde sábado, sou somente o número 533 aqui! Não é um número ruim!! 

Continua depois da publicidade

A única esperança, que tínhamos, no sábado, era um tratamento melhor a partir de segunda-feira, como nos disseram. Mas chegou o primeiro domingo – e que domingo! Nós não nos vimos o dia todo. 

Nós nos comunicamos aqui por radiotelefonia, ou seja, quando um quer saber algo do outro, ou tem algo a dizer-lhe, ele grita pela janela para a pedreira à nossa frente, de onde o som volta perfeitamente e é ouvido por todos. 

Dessa forma, até entramos em contato com Ehlers. Mas um pouco de feriado o domingo ainda nos reservou. Por volta das 5 horas, conseguimos, através de contrabando, pela compaixão de alguns companheiros de sofrimento que, no entanto, já tinham “autorização” para trabalhar e desfrutar de outras formas de assistência, chegar à posse de alguns cigarros. Poder fumar novamente, depois de 4 dias – era quase uma exuberância! Hoje correu o boato de que amanhã um guarda iria passar nas celas para ver se alguém queria alguma coisa e anotar pedidos de cigarros, fósforos, papéis e semelhantes. Isto aconteceria às terças e sextas-feiras no futuro. Então vamos esperar chegar o dia de amanhã. Aqui eu ainda tenho que incluir que

4ª Folha de papel higiênico

recebi do meu vizinho de cela, Curt Boehme, o segundo lápis com 2 cm de comprimento, que eu já apontei duas vezes com as minhas unhas (1) e papel higiênico recebemos esta tarde, então usar o vaso sanitário agora é permitido oficialmente!

Continua depois da publicidade

4/10/38

Terça-feira – aproximadamente 9 horas. Daqui não se vê nenhum relógio de torre nem se ouve um bater! Boehme conseguiu trazer seu relógio, a quem pedimos para saber de tempos em tempos que horas são. Até agora, nada de novo aconteceu hoje. Esperamos ansiosamente pelo “viajante”, que virá buscar os Pedidos, mas as coisas não parecem muito promissoras! Vou dar um tempo agora e continuar escrevendo à tarde, única forma de passar o tempo!

Um cigarro depois da refeição, seria bom demais, se tivesse um! Sim, se recebêssemos a nossa mala, tudo seria apenas metade tão ruim! O “viajante” também ainda não chegou. Todo o aparato aqui ocorre esquematicamente. Os guardas e carcereiros não conhecem a compaixão. “Condenados” enquadram-se no regulamento correspondente, e não há diferença no tratamento inicial entre criminosos graves e até mesmo inocentes! Todos, que tiverem que ficar retidos por mais de 30 dias, recebem uma careca! Alfred, Siebert e Bürger escaparam “incólumes” já que a pena deles é menor. Claro que também usamos os nossos argumentos, mas não encontramos respaldo! Foi o que todos disseram, que esperavam ser libertados novamente dentro de alguns dias, foi a resposta. Porém, todos tiveram que usar o “smoking zebra”. Os outros trajes seriam tirados de nós.

5ª Folha de papel higiênico

4.10.38 à tarde, aproximadamente 4 horas

As louças, aqui, consistem em 2 pratos esmaltados verdes, 1 caneca e 1 colher “prateada”. Você mesmo tem que manter tudo limpo e nada sai da cela, o que é bom, pois senão sempre receberíamos louças de outros presos. Os pratos são esmaltados com um lindo padrão verde, a caneca é azul, assim como a cela inteira só tem as cores do futuro: verde, azul e branco!!! 

– Ao almoço pode-se constatar pequenas variações em que a carne ora vem em goulash (até com batata), ora preparada como língua e às vezes como assado. Gosto: sempre o mesmo, mas não exatamente ruim. O feijão costuma ir parar no vaso sanitário quase intacto, escolho a carne melhor e salpico com farinha o arroz com molho, que fica bem gostoso.

Continua depois da publicidade

5/10/38 de manhã

Ontem à tarde, como se diz assim, as nossas esperanças foram frustradas (die Felle fortgeschwommen)! Alguns da nossa “Trinca”, conseguiram chegar ao Subdiretor, apresentaram-lhe a nossa situação e lhe solicitaram pela autorização de algum alívio nas condições. A resposta foi simplesmente esmagadora, novamente: antes de decorridos 14 dias tais benefícios seriam impensáveis; isto violaria o regulamento. Pelo menos mais um motivo para ansiar pelo meio do mês: ou a questão, no Rio, já terá sido decidida a nosso favor até lá, ou caso contrário podemos contar aqui com alívios; até então temos que continuar sofrendo sem poder ler, fumar ou receber visitas. Como fomos vacinados esses dias, esta porcaria agora está incomodando ao escrever. Em mim, esta coisa me afetou bastante.

6ª Folha de papel higiênico

5/10, à tarde

Então estamos nos aproximando do momento em que uma semana se passou desde a minha captura. Uma semana muito longa! Agora mesmo tive que ir mais uma vez ao fotógrafo, onde me encontrei com Dietrichkeit. Fomos fotografados em nossos smokings zebra. Dos demais Companheiros, apenas avistei anteontem, e rapidamente, Boehme. No sábado, provavelmente nos reencontraremos na ducha.

Minha barba, no momento, é maior que o cabelo na cabeça!

6/10/38 de manhã

Ainda nada de novo aconteceu. Siebert e Alfred, que provavelmente serão libertados em breve, devem ter hoje uma hora de “Recreio”, i.e. eles podem sair da cela, mas não da casa. Pelo menos alguma coisa. Siebert espera poder conseguir cigarros. Então vamos ver. Hoje o tempo está lindo. De noite, fui até a fresta da janela para admirar a lua. O sol não se pode ver, mas ao anoitecer pode-se deixar iluminar a mão, se por sorte tiver braços longos!

7ª Folha de papel higiênico

6/10/38 à tarde

Alfred e Siebert realmente receberam, esta manhã, a permissão para deixar suas celas por cerca de meia hora. Mais tarde, eles também receberam comida das malas. Siebert também recebeu cigarros. Nós, outros quatro criminosos de peso, só receberemos esses “benefícios” em cerca de 8 dias. Embora cada único dia seja infinitamente longo, ainda assim, a primeira semana do nosso cativeiro passou relativamente rápida.

Continua depois da publicidade

7/10/38 cedo

Hoje quero levar ao término meu primeiro capítulo, para tentar expedi-lo de alguma forma. Também, não há nada de novo a relatar. Um dia é igual ao outro. Hoje é apenas a segunda sexta-feira que estamos aqui encarcerados – isolados – e incomunicáveis. Se tudo correr bem, estaremos, quem sabe, em casa na próxima sexta-feira, na pior das hipóteses ainda temos que passar aqui mais 10 sextas-feiras! Em qualquer caso, pode-se presumir que já superamos a semana mais rigorosa!