Repórter da The New York Times Magazine desde 2015, Nikole Hannah-Jones se especializou em cobrir os temas do racismo e da desigualdade social causada por questões raciais nos Estados Unidos. No ano passado, ela criou o 1619 Project, projeto multimídia em que faz uma revisão da história da escravidão no país – e examina a herança que a escravidão legou aos Estados Unidos de hoje; especialmente, é claro, à população negra.

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Pelo ensaio principal do projeto, Nikole venceu, neste ano, nada menos que o Pulitzer Prize, o maior reconhecimento da área jornalística. Atualmente, enquanto ainda trabalha nos desdobramentos do 1619 Project, a jornalista escreve também um livro sobre segregação racial nas escolas norte-americanas.

Em entrevista exclusiva, conversamos com Nikole a respeito de seu trabalho, do projeto que a fez vencer o Pulitzer, e, é claro, das questões raciais e da luta antirracista – nos Estados Unidos e no Brasil.

Eu gostaria que você começasse falando um pouco mais sobre o 1619 Project: do que se trata exatamente, e como você teve a ideia de criar esse material?

O 1619 Project é um projeto multimídia, marcando os 400 anos da data em que a escravidão começou, no território que viria a se tornar os Estados Unidos. A ideia é examinar a herança que a escravidão deixou no nosso país. Nós argumentamos que a escravidão foi basilar para o desenvolvimento dos Estados Unidos; e que há muito pouco na sociedade norte-americana moderna que não tenha sido afetado de alguma forma pelo legado da escravidão. Eu vinha pensando neste tema desde que estava na escola. Eu passei a maior parte da minha carreira tentando entender e explicar como as desigualdades raciais modernas têm suas raízes na escravidão, remontando à fundação da sociedade norte-americana. Achei que os 400 anos do ano de 1619 eram uma oportunidade tremenda para começar um debate nacional a respeito da herança deixada pela escravidão.

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E como foi o processo de desenvolver o projeto de fato?

Eu apresentei a ideia aos meus editores e, assim que eles concordaram, tivemos uma grande sessão de brainstorming; onde discutimos nossas ideias, o que deveríamos cobrir, sobre o que falaríamos no ensaio. Fizemos uma lista de áreas que gostaríamos de abordar, e começamos a procurar escritores que tivessem expertise nessas áreas, que pudessem nos ajudar a escrever sobre cada uma delas. O projeto foi se expandindo. Acabamos decidindo que faríamos, sim, um especial, uma edição inteira sobre a herança da escravidão na sociedade moderna; mas também criaríamos uma seção permanente no jornal sobre a história da escravidão – já que normalmente os norte-americanos não aprendem muito sobre esse tema.

Para essa seção do jornal, fizemos uma parceria com o National Museum of African American History and Culture (Museu Nacional da História e Cultura Afro-Americana). Também criamos uma “linha do tempo literária”, em que convidamos alguns dos escritores negros mais reconhecidos – fossem roteiristas, autores de ficção, poetas – para criar pequenas histórias ou poemas a respeito de vários momentos marcantes da história dos negros norte-americanos, de 1619 até o presente.

O ensaio principal do projeto, pelo qual você venceu o Pulitzer, tem o título: “Os ideais fundamentais de nossa democracia eram falsos quando foram escritos. Os negros norte-americanos lutaram para torná-los verdade.” O que você quer dizer com isso?

Os Estados Unidos foram oficialmente fundados em 1776, quando Thomas Jefferson escreveu a Declaração de Independência. As primeiras linhas da Declaração de Independência declaram “que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, e que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade.” Mas, quando Thomas Jefferson estava escrevendo essas palavras, grande parte da população das treze colônias vivia escravizada. Claramente, quando escreveram essas palavras, os fundadores não quiseram dizer realmente que todos os homens foram criados iguais; eles quiseram dizer que todos os homens brancos foram criados iguais – afinal de contas, os negros não tinham, e não passaram a ter, nenhum daqueles direitos inalienáveis citados na Declaração de Independência.

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Mas, embora não estivessem incluídos nesse texto, os negros acreditavam nesse texto, nesses ideiais; e, portanto, passaram os séculos seguintes lutando, e resistindo, e protestando, para tentar fazer com que aquelas palavras se tornassem verdade. Os Estados Unidos não eram de fato uma democracia quando foram fundados: a maior parte da população não podia votar. Foi só em 1965, depois do movimento pelos direitos civis, que todos os norte-americanos passaram a ter igual acesso ao voto. Portanto, meu argumento é de que foi a população negra que, por meio da resistência, de fato transformou nosso país em uma democracia.

Como foi vencer o Pulitzer pelo projeto e pelo ensaio?

Foi provavelmente um dos momentos mais empolgantes da minha carreira. Acho que todo jornalista norte-americano sonha em ganhar um Pulitzer; admita ele para si mesmo ou não. É o maior reconhecimento da nossa área. O sentimento de vencer foi incrível.

 Atualmente, enquanto ainda trabalha nos desdobramentos do
Atualmente, enquanto ainda trabalha nos desdobramentos do “1619 Project”, Nikole Hannah-Jones escreve também um livro sobre segregação racial nas escolas norte-americanas (Foto: Kathy Ryan)

Você está escrevendo um livro sobre segregação nas escolas norte-americanas, certo? Você pode nos falar um pouco mais sobre ele? As escola norte-americanas são segregadas em que sentido?

O livro que eu estou escrevendo examina a dificuldade que as crianças negras norte-americanas têm de ter acesso a uma educação de qualidade; uma dificuldade que perdura por séculos. Eu traço um histórico das desigualdades na educação até a época da escravidão, da fundação dos Estados Unidos. Pela maior parte da história de nosso país, os negros foram de fato proibidos de aprender a ler a escrever, afastados de qualquer tipo de educação formal. E nunca houve um momento na história em que a qualidade da educação oferecida às crianças negras tenha se igualado à qualidade da educação oferecida às crianças brancas. Acredita-se que as escolas possam ser grandes equalizadores de oportunidades, mas, pelo menos nos Estados Unidos, isso não é verdade, uma vez que a diferença na qualidade da educação oferecida na verdade contribui para manter a desigualdade racial no país.

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Como você a maneira como a mídia cobre ou aborda o racismo e outros assuntos relacionados?

Eu acho que, de modo geral, a mídia não faz um trabalho muito bom nesse sentido por não tratar o racismo e a desigualdade racial como assuntos que requerem expertise: muitas pessoas que são encarregadas de escrever sobre o tema jamais o estudaram. E, claro, a mídia tradicional é predominantemente branca. A cobertura tende a ser tímida, superficial. É claro, agora, desde os protestos pela morte de George Floyd, nós estamos vivendo um momento em que muitos jornalistas negros estão se manifestando ou sendo convidados a falar sobre o tema; mas, de modo geral, a mídia faz um trabalho bastante inadequado na cobertura desse tipo de tema.

Como essa cobertura poderia melhorar?

Em primeiro lugar, a mídia precisa refletir a população do país. Nos Estados Unidos, pelon menos 13% da população é negra, 15% da população é latina, 6% da população é asiática, 1% da população é formada por nativos norte-americanos, e você não vê essas porcentagens refletidas nas equipes das grandes empresas de comunicação. E, quanto mais alto você sobe na hierarquia de uma empresa, ou mesmo no sistema educacional, maior fica a predominância de pessoas brancas. Eu sei que no Brasil a situação é parecida, quem sabe até pior. Claro, eu não acho que um jornalista branco não pode saber escrever sobre desigualdade racial: todo jornalista tem a habilidade de fazer isso, desde que o assunto seja levado a sério. Os jornalistas precisam se educar a respeito de qualquer tema quando querem escrever bem sobre ele, e com o racismo não seria diferente.

Como você vê o movimento Black Lives Matter?

Eu acho que o movimento tem sido tremendamente efetivo em organizar protestos e tentar atrair a atenção da população, da mídia e dos governantes para assuntos que são urgentes para a população negra. Claro, percebemos que a atenção dada pela população branca ao Black Lives Matter vai e vem: agora, com a morte de George Floyd, os protestos chamaram muita atenção justamente pela maneira brutal como aconteceu o assassinato. Mas o Black Lives Matter dá às pessoas algo em torno do qual se agrupar, se organizar. E é importante analisar sob a perspectiva da história do movimento negro: essas lutas nunca são rápidas. O movimento pelos direitos civis já existia há décadas quando passou a ser possível de fato alguma mudança, algum resultado. Eu acredito que o Black Lives Matter também vai ser uma luta de décadas.

O que você sabe sobre e como você vê a questão do racismo no Brasil?

Eu com certeza não sou uma especialista, mas, até onde eu sei, o racismo é menos debatido no Brasil do que nos Estados Unidos. Eu estive no Brasil há alguns meses e sinto que agora está havendo uma mudança, mas até há pouco tempo a população negra brasileira não era tão organizada e tão empoderada no sentido de lutar por seus direitos e seu espaço na sociedade. Claro, é difícil de comparar, pois há muitas diferenças entre os dois países. Nos Estados Unidos, de modo geral, uma pessoa que tem ao menos um pouco de herança negra no sangue já é considerada negra. Muitas pessoas que são consideradas negras nos Estados Unidos não o seriam no Brasil. Os modos de colonização dos dois países também foram muito diferentes. Mas eu também vejo muitas semelhanças: nos dois países, a população negra está sempre por último em todos os indicadores de qualidade de vida; educação, salários.

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Eu gostaria muito de passar mais tempo no Brasil, estudar o país e a história da comunidade negra brasileira. Acho que temos muito a aprender uns com os outros. E eu adoraria ver um projeto de jornalismo como o 1619 Project ser desenvolvido no Brasil. Acho que transformaria a maneira como os brasileiros veem a história do país, e empoderaria os negros brasileiros a partir de um maior conhecimento sobre a própria história.

Qual foi o episódio mais marcante de racismo que você já enfrentou? Você acha que ser uma mulher negra faz com que esses episódios sejam ainda mais agressivos?

Sinceramente, eu acho que os atos de racismo mais explícitos já feitos contra mim aconteceram depois do início do 1619 Project. Eu nunca havia vivido nenhum ataque racista tão explícito quanto os que recebi via email e redes sociais depois da publicação do projeto. Eu sinto que fui atacada justamente por mexer com a história dos Estados Unidos, da fundação do país, mexer com a imagens desses fundadores brancos. E, claro, quando as pessoas me atacam, elas me atacam de maneiras racistas e misóginas: não só porque eu sou negra, ou só porque eu sou uma mulher, mas especialmente porque eu sou uma mulher negra – e eu uso meu cabelo natural, eu faço e me visto de maneiras que refletem isso, e que causam raiva em muita gente. Muitas pessoas não estão acostumadas a ver alguém como eu em uma plataforma como a plataforma onde eu trabalho.

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