A mãe de Fernando Maldonado, personagem da reportagem que acompanhou durante um ano a transição de gênero de um jovem catarinense, classifica como uma lição de vida o acompanhamento da experiência do filho. Confira o depoimento:

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“Me chamo Heidi Comine Maldonado. Sou formada há 31 anos. Nos meus tempos de graduação em medicina a transexualidade não era discutida. Havia pouco consenso e a questão era patologizada, circunscrita ao âmbito das doenças psiquiátricas. Embora tenha tido uma formação médica, não foi fácil para mim entender o que acontecia com meu filho Fernando desde criança. Isso porque na prática cotidiana as coisas não acontecem como nas novelas ou artigos científicos. Desde cedo assisti, monitorando, um longo processo interno, tanto do Fernando quanto da família, do que hoje sabemos que foi uma busca pelo reconhecimento de sua identidade de gênero. De natureza alegre e astuta, Nando estava sempre observando as pessoas. Havia uma certa angústia e inquietação que lhe tirava o foco de suas atribuições, inclusive as escolares.

A sensação que eu sentia era que ele estava sempre procurando algo que não sabia o que era. Não foram poucos os profissionais que consultamos para entender o que se passava, desde neurologistas, psicopedagogos e psicólogos. No seu processo de desenvolvimento, Fernando manifestava bastante interesse pelo universo considerado masculino. Comprar roupas era um desafio e sua preferência sempre recaía sobre as desprovidas de feminilidade. Buscando orientação psicológica, a questão era tratada com cuidado, eventualmente até como tabu e sempre adiada para a adolescência.

E a vida seguiu, até chegar a adolescência. Nesta época, haviam conflitos naturais da idade e, com o aparecimento dos caracteres sexuais femininos, Fernando passou por dilemas muito mais intensos. Foi uma época difícil para a família. Lembro-me desta fase como se fôssemos todos protagonistas de uma peça teatral e estivéssemos entrado em cena sem nunca ter ensaiado. Não havia base de comparação. Tudo era vivido pela primeira vez e sem preparação. O ensaio da vida já era a própria vida e, sem dúvida nenhuma, o amor fraternal e o aprendizado mútuo da empatia nos sustentou unidos nesta maravilhosa arte relacional que é a vida. Superamos juntos também o falecimento do pai de meus filhos e o triste luto que se seguiu.

Fernando continuou, em cada solitário segundo de sua vida, se descobrindo. Demonstrou muita coragem, e coragem para ele não é ausência de medo. Coragem é o entendimento de que existem coisas mais importantes que o medo e que a sua vida só fazia sentido se lutasse por elas. Fernando teve coragem de assumir as dores e as delícias de ser realmente o que é: um homem. Foi, então, em busca de sua transição de gênero.

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Conselho profissional

Transexualidade não é doença, mas a pessoa necessita de um acompanhamento tanto quanto uma gestante, que também não é doente mas precisa de monitorização. Uma redesignação de gênero envolve endocrinologistas, psicólogos, enfermeiros, farmacêuticos, cirurgiões, anestesista, assistentes sociais e juristas entre outros profissionais. A já difícil realidade da saúde pública no país é ainda mais cruel para quem necessita desses serviços. Na saúde pública municipal, embora o acolhimento seja destacadamente humanitário, o atendimento aos trans ainda é insuficiente. Não existe a equipe multidisciplinar, nem o vínculo médico e paciente estabelecido, pois a cada consulta é um profissional que atende. Os planos de saúde ainda não contemplam esse acompanhamento e, também, na esfera particular só encontramos atendimentos isolados.No caso do Fernando, optamos por ouvir um profissional experiente, doutor Alexandre Saddeh, coordenador do Ambulatório Transdiciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual da USP. Doutor Saddeh, atenciosamente, elucidou todas as questões que nos afligiam, acolheu o Fernando e o encaminhou para acompanhamento específico com o doutor Daniel Mori, de sua equipe e confiança, que deu seguimento à transição de Fernando com segurança e qualidade em intercâmbio com profissionais de Florianópolis.

Há poucos meses, Fernando se submeteu à mastectomia redesignadora, depois de um ano de terapia hormonal. A cirurgia foi realizada pela equipe do doutor Luiz Augusto Gonzaga, cirurgião plástico do Hospital Baía Sul, na Capital, e foi um sucesso. Fernando foi tratado com respeito por todos os profissionais. Ele está realizado, extremamente feliz e continua com acompanhamento de suporte em São Paulo. Como mãe, em diversos momentos me senti aflita. De certa forma, fui também egoísta. No início do processo, tentei dissuadi-lo da ideia. Achava que ele não precisava se submeter à hormonoterapia ou procedimentos invasivos, bastava cortar o cabelo e se vestir como um homem. Não entendi, naquele momento, o quanto era importante para a sua felicidade a coerência entre a sua imagem e o que ele realmente era na sua essência: um homem. O insight ocorreu quando, ao abordar o assunto insistentemente, percebi a imensidão da tristeza no eloquente silêncio de sua resposta.

Sou grata a Fernando por ter me ensinado uma valiosa lição. Quem somos nós para julgar e decidir o que é mais adequado para o outro? Todos nós nascemos com a capacidade de julgamento. Declarações politicamente corretas de que não devemos julgar nada nem ninguém não exime nossa capacidade. A cada segundo estamos expostos a bifurcações de escolhas em nossas microencruzilhadas cotidianas. Julgar nossos semelhantes pinçando palavras de seu discurso e encaixotando-os em molduras demonstra no mínimo tédio existencial. Tomar a iniciativa de verbalizar ou tornar público julgamentos sem conhecimento de causa, com ofensas ou mesmo sem ter nada a acrescentar, contraria o anseio de felicidade coletiva que deveríamos cultivar cotidianamente em prol de uma família e sociedade mais justa e humanitária. As questões de gênero estão na pauta dos dilemas de nossa época e cabe a nós as correções de suas distorções.

Fernando é idealista e atua neste processo pacificamente. Ele usa de ferramentas modernas e, com natural carisma, ilustra de forma prática essas distorções. Ele se vale de pesquisas e estatísticas sérias criando propostas de esclarecimento, conscientização e mudança da sociedade. Meu filho é grato pelas oportunidades e não se acomoda. Investe em seu aperfeiçoamento, cursa faculdade de psicologia e colabora pela causa. Fernando faz palestras públicas e em um canal no youtube discute, com a jovialidade de seus 23 anos e a maturidade que a experiência lhe concedeu até então, questões como preconceito, empregabilidade, relações familiares e tantas outras. Sou grata à força suprema do universo, causa primária de todas as coisas, por me proporcionar o privilégio de ser sua mãe. Eu me orgulho muito do meu filho.”

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