Ambientado em uma vila sertaneja em um cenário de aldeia de pescadores, “Fios de Ferro e Sal: Trama Ancestral”, do autor cearense Wilson Júnior, apresenta um mergulho profundo em personagens que remetem a figuras tradicionais do folclore nordestino. A obra, lançada recentemente pela Cortez Editora, traz uma narrativa fantástica de aventura marítima com uma reviravolta histórica e social.
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O livro se desenrola no Brasil Império, mesclando a realidade histórica com o misticismo para evidenciar as dificuldades enfrentadas por homens negros e nativos durante a exploração do país. A narrativa acompanha as histórias de dois homens pretos: Kayin e Ekundayo e reflete sobre resistência, memória e identidade, desafiando abertamente o eixo eurocentrado que historicamente dominou a literatura fantástica.
Na obra, Kayin, um ferreiro, é agraciado com os dons de Ogum, que o ensinou a “ouvir e interpretar as mensagens dos metais”. A inspiração para Kayin veio de um documentário que o autor assistiu na faculdade de História, que mostrava um ferreiro africano encantando flechas para a caça. Já Ekundayo, um velho griô morador de uma vila de pescadores, possui o dom de cura e carrega uma importante missão traçada por Iemanjá.
A alma do mar
As trajetórias desses dois discípulos dos Orixás se entrelaçam em uma aventura marítima, buscando fugir dos homens brancos e principalmente preservar a memória da cultura negra. Eles confrontam forças ancestrais e horrores do passado, em meio a criaturas fantásticas, como Mooby-oh, uma tartaruga bestial, Tia Nanci, uma perigosa entidade aranha, e Afogado, um ser misterioso de origem desconhecida.
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A obra, financiada por meio da Lei Paulo Gustavo, revisita as raízes culturais brasileiras, em especial aquelas que vivem na memória das cidades pequenas e na vastidão do mar. Em entrevista ao NSC Total, Wilson Júnior destaca que o mar, ambiente em que grande parte da narrativa se passa, é apresentado em suas duas faces e funciona como um personagem vivo da trama, sendo ora abrigo e sustento, ora ameaça e mistério.
Permeada por essa dualidade que transforma o mar em um símbolo de vida e morte, liberdade e aprisionamento, principalmente em um contexto histórico de navegação e exploração colonial, acompanhamos o personagem Ekundayo numa busca por pessoas perdidas no mar, enquanto outra linha narrativa acompanha um grupo de pessoas escravizadas à deriva em um navio negreiro.
“O mar vai ser essa dicotomia que me fascina, ao mesmo tempo que é um lugar maravilhoso que traz bênçãos e ajuda, é um espaço cruel, violento, inconstante e tempestuoso, que quer destruir. Eu sou apaixonado pelo mar, cresci numa cidade praiana, que é Fortaleza, e sempre tive o sonho de velejar. Ainda não realizei esse sonho, porque da mesma forma que amo o mar, tenho muito medo dele. Ele exerce esse efeito na gente: é belo, mas também é mistério e perigo.”
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Personagens e mitologia brasileira
Uma das características da obra é a presença de personagens que dialogam diretamente com o folclore e a religiosidade brasileira, aproximando o leitor de uma cultura muitas vezes marginalizada na literatura nacional.
Um exemplo emblemático é o “Afogado”. O personagem, “roubado” de um amigo editor, com permissão dele, é um “personagem meio assombrado, meio assombroso”, que Wilson Júnior considera uma figura típica de cultura brasileira, lembrando os mitos e figuras exóticas das cidades do interior que povoam o imaginário popular.
O próprio título do livro, “Fios de Ferro e Sal”, é uma homenagem a essas entidades: “O sal é o sal de Iemanjá, o ferro é o ferro de Ogum”, explica. A intenção é mostrar as múltiplas facetas desses Orixás, incutindo no leitor o mesmo “sentimento de maravilhamento” que as mitologias europeias costumam despertar, mas com elementos genuinamente brasileiros, sejam eles nativos, africanos ou afro-brasileiros.
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Para trabalhar com entidades como Iemanjá e Ogum no livro foi necessário um cuidado especial do autor, que buscou orientação para garantir uma representação respeitosa.
“Eu tive muito cuidado, até pedi para um amigo meu que é de religiosidade africana para revisar a representação para não estar sendo feita de uma forma inadequada. Existem diversas formas e versões de como Iemanjá e Ogum se apresentam e eu escolhi retratar as facetas dessas entidades, que são multifacetadas”, pontua Wilson.
A força da comunidade e o coletivo na criação literária
Desde o seu primeiro romance, “999” (2022), uma ficção histórica ambientada no medievo europeu, a negritude tem sido uma parte fundamental e “inegociável” da escrita de Wilson Júnior. “Os meus protagonistas são pessoas negras e sempre serão pessoas negras, porque esse é o meu tema na literatura. Esse é o tema que eu acredito, que eu escolhi trabalhar”, afirma o autor.
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Formado em História, Wilson inicialmente se voltou para a ficção histórica, usando sua formação para facilitar o processo de pesquisa. No entanto, um divisor de águas ocorreu em 2021, com seu contato com os estudos decoloniais, campo interdisciplinar que questiona as heranças do colonialismo nas estruturas de poder, conhecimento e cultura do mundo contemporâneo. Além disso, estudos decoloniais buscam construir novos saberes e práticas que valorizem os conhecimentos locais e de grupos historicamente marginalizados e colonizados.
Embora não seja um acadêmico da decolonialidade, essa perspectiva mudou a forma que o autor passou a pensar e ambientar a própria literatura. Essa mudança foi impulsionada também pelo lançamento da revista literária Escambanáutica, da qual Wilson Júnior é fundador e que tem como foco ficção fantástica, horror, fantasia, ficção científica e realismo mágico.
“A revista tem uma proposta brasileira e decolonial, para escapar de formatos influenciados pelas culturas estadunidense e europeia e tentar beber um pouco mais da cultura dos povos nativos, dos povos negros em diáspora, da América Latina, da cultura afro-brasileira e brasileira e dos mais diversos pontos e regiões do Brasil”.
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Além disso, o autor não esconde que sua trajetória literária está profundamente marcada pela experiência comunitária. Diferente do estereótipo de escritor solitário, sua formação e prática são frutos do coletivo, de trocas e de uma rede de apoio que fortalece o processo criativo e editorial.
“Minha relação com a escrita foi desde o início uma relação de comunidade. Comecei a escrever tarde, e o outro ajudava muito, porque eu precisava desse auxílio para acompanhar o movimento. Isso acelerou processos que demorariam muito mais tempo”, explica.
Foi assim que surgiu o coletivo Escambau, uma comunidade que evoluiu de grupos de leitura e desafios literários em redes sociais para um projeto organizado que oferece cursos, formações e publicações colaborativas. “Até hoje o coletivo funciona, especialmente com atividades, desafios de escrita, oficinas e bolsas, tudo com foco na troca e no fortalecimento do escritor como parte de uma rede”, finaliza o escritor.
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