Um profissional influente e com ligações na política é preso e morto durante a ditadura militar no Brasil. Em meio ao luto, a família precisa lidar com a perda enquanto procura respostas para o que ocorreu e luta pelo reconhecimento das circunstâncias da morte. 

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Quem são os 10 mortos ou desaparecidos políticos de SC durante a ditadura

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O resumo acima poderia ser uma sinopse do filme Ainda Estou Aqui, que conta a história do engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva, que pode fazer história no cinema brasileiro na disputa de três categorias do Oscar, neste domingo (2). Mas a descrição na verdade se refere ao empresário Higino João Pio, primeiro prefeito eleito da história de Balneário Camboriú e que foi morto durante a ditadura militar. 

Higino Pio foi um dos 10 presos políticos mortos ou desaparecidos de Santa Catarina durante o período do regime militar. Ele foi o único morto em território catarinense. Outros cinco morreram em outros estados, um no Chile e três seguem desaparecidos até hoje, com as famílias em busca de respostas. As informações são do relatório final da Comissão Estadual da Verdade, de 2014. 

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A morte de Higino Pio completa 56 anos nesta segunda-feira, 3 de março. O caso ocorreu em 1969, quase dois anos antes da prisão, tortura e assassinato de Rubens Paiva, retratado no filme Ainda Estou Aqui.  

Higino Pio nasceu em Itapema, foi comerciante e dono de um hotel em Balneário Camboriú. Quando a parte litorânea da cidade se desmembrou politicamente de Camboriú, ele foi procurado por amigos empresários e aceitou o desafio de entrar para a política, território até então novo para o empreendedor. Concorrendo pelo antigo PSD contra um candidato da UDN, Higino foi eleito prefeito no voto popular, na primeira eleição da nova cidade, em 1965.

Veja fotos do caso Higino Pio

O terror e morte de Higino

O terror de Higino Pio começou a ser vivido quase quatro anos depois. Em uma quarta-feira de Cinzas, 19 de fevereiro de 1969, ele e outros servidores da prefeitura foram detidos por agentes da Polícia Federal e convocados a prestar depoimento no 5º Distrito Naval, em Florianópolis. Higino teria se oferecido a ir de carro até a Capital, mas os policiais não aceitaram. 

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Segundo depoimentos de testemunhas ao Ministério Público Federal (MPF), Higino entrou em uma antiga caminhonete modelo Veraneio e foi levado para a Escola de Aprendizes Marinheiros, na região continental de Florianópolis. 

A prisão teria ocorrido a pretexto de supostas irregularidades administrativas na prefeitura — até hoje não comprovadas. Para a família, no entanto, Higino teria sido vítima de denúncias falsas de adversários políticos que estariam interessados no comando da prefeitura. 

A única possível motivação citada para a prisão de Higino seria a proximidade dele com o ex-presidente João Goulart, o Jango, deposto pelo golpe militar em 1964. Goulart frequentava na temporada a praia de Balneário Camboriú, que na época chegou a ser conhecida como “praia presidencial” em função das visitas. Costumava ir até a prefeitura e ser recebido por Higino. Apesar disso, não havia qualquer ligação dele com ações contra o regime. 

— Não tinha relação [com a ditadura], em absoluto. Ali foi uma questão do poder local tentar afastá-lo — afirma o advogado Anselmo Machado, que coordenou a Comissão Estadual da Verdade em SC. 

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Após alguns dias de prisão e interrogatórios, os funcionários da prefeitura foram soltos, mas Higino não. Permaneceu detido e sem poder receber visitas. No dia 3 de março de 1969, data do aniversário da esposa Amélia, ele foi encontrado morto no banheiro da prisão que ocupava, no prédio da Marinha.

“Cena montada”

A versão dada pelos militares na época foi de um suposto suicídio. A tese, no entanto, foi contestada ao longo dos anos. Em 2014, um novo laudo foi feito durante a apuração do caso pela Comissão Estadual da Verdade. O perito Pedro Cunha, que atuou na Comissão Nacional e auxiliou a investigação local com o novo documento, afirmou à época em entrevista ao Diário Catarinense que o cenário da morte de Higino Pio foi “mais montado que o do [Vladimir] Herzog”. A comparação é com o jornalista também morto na ditadura e que teve a cena manipulada para simular um suicídio, tornando-se um dos casos mais emblemáticos dos abusos cometidos pelos militares no Brasil. 

No caso de Higino, segundo o laudo mais recente, o corpo estava ereto, com as pernas esticadas e os pés encostados no chão. Somados a outros elementos, como a falta de hematomas no corpo e de um sulco profundo no pescoço, os peritos afastaram a possibilidade de suicídio. O laudo concluiu o caso como homicídio por estrangulamento, com o corpo tendo sido colocado no local em que foi encontrado. O documento, no entanto, não define o local e as circunstâncias em que a morte teria ocorrido. 

— Ninguém se enforca com o pé no chão. Até uma pessoa leiga pode olhar e dizer que a cena foi montada — defende o advogado da família Pio, Eduardo Serpa. 

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O advogado Anselmo Machado, da Comissão Estadual da Verdade em SC, afirma que a investigação da comissão ajudou a esclarecer a versão real da morte de Higino. 

— A história que a Comissão da Verdade apurou é que ele foi morto, sob circunstâncias ainda não identificadas. Porque aquele corpo apresentado daquele jeito, ele não conseguiria se enforcar daquela maneira — conta.

A prisão de Higino ocorreu dois meses após a assinatura do Ato Institucional nº 5 (AI-5), medida que desencadeou uma onda de detenções e um endurecimento das ações militares nos anos de chumbo. 

Em 2018, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou seis pessoas por terem forjado o suicídio de Higino. Segundo a acusação, o prefeito teria sido assassinado por representantes do regime militar por motivação política e “com o objetivo de espalhar terror na população”. A Justiça Federal, no entanto, rejeitou a denúncia por entender que os crimes citados se enquadram na Lei da Anistia e, por isso, não são passíveis de punição. 

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Compare personagens da vida real e elenco de Ainda Estou Aqui

O olhar da família

Higino deixou a esposa Amélia Cherem Pio, já falecida, e três filhos, dois deles ainda vivos. O mais novo, Júlio César Pio, era adolescente quando tudo aconteceu. Ele lembra do pai como uma figura querida por todos na cidade. 

— Ele era uma pessoa maravilhosa, não fazia mal para ninguém, só fazia o bem. A gente tinha um hotel, ele trazia pessoas humildes dos bairros para almoçar em casa. Era uma pessoa de quem todo mundo gostava — orgulha-se o filho. 

As descobertas dos últimos anos ajudaram a amenizar a angústia de não saber o que ocorreu com o pai, embora a família sempre tenha tido certeza de que ele havia sido morto. Algumas lacunas sobre o que ocorreu entre o período da prisão e a morte, no entanto, ainda incomodam. 

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— Muita coisa eu ainda gostaria de saber. O depoimento das pessoas que foram lá e trabalhavam com ele. Gostaria de saber a verdade. Uma coisa eu tenho certeza: ele não fez nada — afirmou. 

Como em Ainda Estou Aqui, a busca pela verdade sobre a morte de Higino Pio envolveu uma luta relacionada ao atestado de óbito. O documento obtido pela família na época aponta a causa como asfixia por enforcamento. Agora, a família aguarda para os próximos dias a emissão de um novo atestado de óbito, com menção expressa à forma como Higino morreu. O filho Júlio Cesar também considera uma vitória a obtenção do novo documento com a definição dos responsáveis pela morte do pai. 

O novo atestado de óbito faz parte de um grupo de 434 vítimas da ditadura que terão os documentos de morte corrigidos. A medida foi autorizada em dezembro do ano passado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para confirmar a responsabilidade do Estado na morte ou no desaparecimento das pessoas. Os novos atestados terão a seguinte explicação padrão: “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”. 

Higino hoje

A família de Higino Pio hoje tem uma construtora em Balneário Camboriú. O nome dele é presença frequente na cidade em nomes de rua, escola e com um busto em uma praça central. A família move uma ação de indenização contra a União em função dos crimes praticados pelo Estado brasileiro. 

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Embora tenha orgulho da trajetória de Higino e da atuação do pai no desenvolvimento da cidade que viria a se tornar a capital dos arranha-céus, Julio Cesar admite que o desfecho trágico da prisão do patriarca no período da ditadura deixou marcas. 

— Isso mexeu muito, acabou com a família. Até hoje a gente [fica] querendo esquecer, mas não esquece — conta. 

Mais do que o drama familiar, a morte de Higino Pio deixou também uma visão cristalina do filho Júlio Cesar sobre os anos de ditadura militar e os abusos cometidos. 

— Não tem o que falar. É uma época que muita gente pagou por nada, teve perseguição política. Não gosto nem de lembrar. Não concordo com isso — afirmou. 

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