Prescrever o estudo como parte do tratamento. Esse é um dos objetivos do projeto pioneiro de médicos da saúde de Florianópolis para tratar pacientes que procuram os Centros de Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) da Capital. A iniciativa, criada em 2021 através de uma parceria entre as secretarias municipais da Saúde e da Educação, dentro do programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA), busca trazer qualidade de vida a pessoas que não tiveram acesso aos estudos e relatam a vontade de retomar a atividade.
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Léa da Silveira Veras, de 71 anos, é uma dessas pessoas. Ela foi ao consultório médico para aumentar a dose do remédio de depressão, contudo, acabou saindo com a prescrição médica para retomar os estudos. A aposentada conta que deixou de frequentar a escola na quarta série, ainda quando criança, para ajudar a mãe a cuidar dos irmãos mais novos.
— Eu casei e o meu marido sempre achou que eu não precisava mais estudar, que eu não tinha mais que estudar, eu tinha que cuidar dos filhos. Ele tinha uma vida financeira boa e ele não me deixou voltar […] A gente se sente inferior quando a gente não estuda. Eu sinto muito isso e eu sei que a sociedade é preconceituosa. A sociedade não aceita — conta.
Após a consulta, a aposentada conta que foi levada para conhecer a sala de aula do EJA, onde foi muito bem recebida pelos colegas e professores. Segundo Léa, os estudos, aliado com outras formas de tratamento, foram responsáveis por fazer com que ela voltasse a comer e tivesse a “vontade de viver novamente”:
— Eu me sinto melhor, venho estudar, tenho vontade de me arrumar. Gosto de comprar minhas roupas, gosto de fazer a minha maquiagem. Eu venho para aula maquiada. […] Antes eu chegava na aula mal e saia bem. Foi um remédio para mim.
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Projeto beneficiou 50 pacientes em Florianópolis
Léa é uma dos 50 pacientes que já foram encaminhados pela Secretária de Saúde ao ensino fundamental do EJA, diz Mayara Floss, médica da família do Centro de Saúde do Itacorubi e uma das idealizadoras do projeto. A ideia de prescrever estudo como parte do tratamento surgiu após a profissional perceber que muitas pessoas que procuravam por atendimento não sabiam ler e escrever.
— Eu entrei em contato com a Secretaria Múltiplo de Educação e descobri onde tinham as turmas de EJA e comecei a encaminhar a mão mesmo: “ao EJA encaminho paciente tal estudou até a quarta série para voltar a estudar”. Isso muito no contexto de perceber as fragilidades e perceber que as histórias das pessoas tiveram violações por não ter tido acesso à educação, [que] é uma violação de um direito básico — diz Mayara.
O público-alvo da iniciativa são pessoas acima de 15 anos, especialmente os idosos, por serem os que menos tiveram acesso aos estudos. De acordo com o Censo de 2022, produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Santa Catarina tem 2,7% dos habitantes, acima de 15 anos ou mais, analfabetos. Em Florianópolis, a taxa de pessoas que não sabem ler e nem escrever é de 1,4%.
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Entre os benefícios relatados pelos pacientes, segundo a médica, estão melhorias em relação à saúde mental e possibilidade de acessar, de fato, a cidadania, como, por exemplo, conseguir andar de ônibus, ir ao cinema ou até mesmo entender melhor os seus direitos sociais.
— Tem histórias bonitas de pessoas que conseguiram melhorar o sono, pararam de tomar remédio para ansiedade, que conseguiram ter mais assunto com as suas famílias, com seus netos, que deixaram de beber porque voltaram a estudar. Mexe em muitas camadas da vida da pessoa. Talvez, conseguiam sair de uma situação de violência porque voltaram a estudar. Acho que são muitas histórias e para mim é um grande privilégio poder estar sendo parte delas e talvez um motor para essas mudanças — conta a médica.
O encaminhamento ao EJA acontece durante a consulta, quando os médicos perguntam até que ano o paciente estudou e questionam se ele tem vontade de voltar às salas de aula. Caso a resposta seja positiva, os profissionais da saúde buscam acolher o desejo e fazem o encaminhamento ao programa de educação.
— A educação é um dos determinantes de saúde mais negligenciados. A gente poderia prescrever muito mais EJA, poderia articular muito mais essa rede. Cuidar de uma pessoa não envolve só órgãos, não envolve só as doenças que aquela pessoa tem, mas também a questão social — salienta.
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