Santa Catarina registrou 1.147 internações por desnutrição ou sequelas desse quadro e de outras deficiências nutricionais em 2022, número mais alto em três anos. Entre os casos, 129 foram de bebês com menos de um ano de idade, número 18% maior do que o de 2021, depois de três anos em queda.
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Os dados foram levantados pelo Diário Catarinense a partir do Sistema de Informações Hospitalares (SIH), do Ministério da Saúde. No caso das internações gerais, o número estava em queda desde 2017, ano seguinte ao de pico da série histórica, quando o estado teve 1.537 pacientes com esse quadro.
A piora do cenário no estado pode estar associada ao contexto de avanço em todo o país da fome, grau mais grave dos quadros de insegurança alimentar, segundo explica a nutricionista Cristine Garcia Gabriel, pesquisadora em políticas públicas de alimentação e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
— A gente pode afirmar que todas elas estão associadas ao conceito de insegurança alimentar, devido à causa ser desnutrição ou sequelas. [No caso dos bebês] Certamente são crianças que viveram em um contexto de insegurança alimentar. E associado a isso tem outras condicionalidades que devem ter sido deixadas de lado, por exemplo: o acompanhamento da vacinação dessas crianças, de consultas pediátricas periódicas no primeiro ano de vida — afirma a especialista em saúde pública.
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Ela diz que o agravamento de cada caso a ponto de chegar a uma internação reforça a exposição a um estado de insegurança alimentar, mesmo nos casos de pacientes que poderiam já estar mais suscetíveis a uma ida ao hospital, como os que têm comorbidades ou precisam de uma alimentação especial.
— Possivelmente houve falhas na garantia de políticas públicas para essa população vulnerável e no acompanhamento das condições de saúde dela, nos serviços de saúde e de assistência social. Então deve ter sido uma série de fatores que contribuíram para chegar a uma hospitalização. É a ausência do acompanhamento, de que o Estado chegue àquela população que mais precisa — afirma.
Santa Catarina é o estado brasileiro com menor percentual de famílias em condições de insegurança alimentar grave, segundo identificou um estudo da Rede de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) do ano passado: 4,6%. Ainda assim, isso equivale a 338 mil pessoas com fome, que sobrevivem sem ter o que comer ou com somente uma refeição por dia, embora o direito humano à alimentação adequada seja consenso previsto pela Constituição Federal (CF).
“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”, diz o artigo 6º da CF, que teve a inclusão da alimentação no texto em 2010, ano em que também foi instituída a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN).
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O estudo da Rede PENSSAN ainda verificou que, em 2022, Santa Catarina tinha cerca de 2 milhões de pessoas sob insegurança alimentar leve, que, portanto, guardavam incertezas sobre o acesso a alimentos em um futuro próximo ou já tinham a qualidade da alimentação comprometida, e outras 558 mil em insegurança moderada, quando a quantidade do que se come é insuficiente para uma vida saudável.
Cristine Garcia Gabriel avalia que os números se devem ao enfraquecimento das políticas de segurança alimentar nutricional no país, avaliação com a qual concorda Irene Kazue Shimomura, a presidente do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional de Santa Catarina (Consea-SC).
Shimomura atribui parte disso à conduta do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que, já em seu primeiro dia de mandato, extinguiu um conselho parecido no combate à fome, mas de caráter nacional. A gestão Lula (PT) pretende retomar o órgão, que auxiliava o governo federal na elaboração de políticas desde 1993.
— Quando o Consea nacional foi extinto, em 2019, a gente ficou praticamente órfão. Trabalhamos em sistema, pelo Sisan [Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional]. Dentro dele, estão embutidas várias políticas, e o trabalho é intersetorial. Quando conselho é extinto, a gente não tem nem oficialização de dados. Foi a principal lacuna que encontramos para as politicas públicas funcionarem, como vimos também com os dados da Covid. Tivemos um apagão — diz, citando a pesquisa da Rede PENSSAN como o diagnóstico mais contudente disponível atualmente.
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— A fome sempre existiu, por todo o nosso histórico, desde a colonização. Quando isso se voltou para um olhar mais governamental, vimos uma reação. Mas houve um desmonte do que já funcionava. Voltamos à política assistencialista, o governo passou a responsabilidade para a sociedade civil — completa, lembrando de iniciativas do terceiro setor, caso do Banco de Alimentos de Santa Catarina (Basc), criado por empresários e entidades representativas do estado em setembro do ano passado.
A presidente do Consea catarinense diz considerar a fome um sintoma da exclusão extrema de direitos, por estar sempre associada a outras privações, e afirma que, por isso, o cenário de insegurança alimentar se agravou mais recentemente no estado entre populações já vulneráveis, caso dos indígenas.
O cacique xokleng Lázaro Camlem, da aldeia Palmeirinha, uma das nove que compõem a terra indígena (TI) Laklãnõ, no Alto Vale do Itajaí, diz que a insegurança no local se agravou ao longo do governo Bolsonaro, quando a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) teria deixado de fazer repasses antes comuns de cestas básicas à comunidade. O território abriga cerca de 2,3 mil pessoas, entre as quais, segundo o líder indígena, grande parte não tem renda fixa e depende de ajuda federal.
Lázaro afirma que houve fome entre os indígenas e que a alimentação ainda irregular, de duas refeições ao dia, trouxe doenças à aldeia. Ele diz ver um exemplo disso na filha mais nova, Ludmilla, de 12 anos, que, desde o ano passado, precisa de deslocar mensalmente da aldeia em José Boiteux para um hospital de referência na região, para fazer um tratamento contra uma tuberculose abdominal.
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— Minha filha ficou internada três vezes. Chegou a parar em Rio do Sul. Graças a Deus, ela melhorou. Lá, ela disse: “pai, aqui eu estou melhor, porque o que não tem em casa, eu estou comendo aqui no hospital”. Depois de cada refeição, tinha uma sobremesa, como vocês falam, que era uma gelatina. E tudo isso fez ela melhorar também — diz a liderança xokleng.
Ele afirma que a rotina alimentar da comunidade também é impactada pela barragem de José Boiteux, construída dentro da terra indígena nos anos 70 e alvo de litígio desde então, por ter alterado o perfil do rio Hercílio no local, agora represado e com menos peixes, uma das bases da alimentação indígena da “época do mato”, quando a cultura xokleng não havia incorporado costumes dos não indígenas.
O cacique diz ainda que o aparato de saúde local é outro agravante à condição já vulnerável dos indígenas. Em visita ao território, a reportagem encontrou o pequeno posto de saúde da aldeia Palmeirinha com estoque baixo até de medicamentos simples, como paracetamol.
Outros moradores fizeram relatos parecidos sobre o problema, que é de responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da Saúde, e narraram conviver com acesso modesto a alimentos, o que teria sido efetivamente grave nos anos anteriores de pandemia.
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— Os índios estão morrendo, estão se acabando. E esse é o meu papel: falar, pedir socorro. Os índios xokleng são os únicos no mundo. Se morrermos, se acaba a população xokleng — diz Lázaro.
O NSC Total tentou contato com a Funai e a Sesai, ambas sob gestão Lula, para tratar das situações relatadas especificamente pelos indígenas, de atribuição federal, mas ainda não obteve retorno.
Já sobre o quadro geral de internações por desnutrição no estado, a reportagem buscou posicionamentos das secretarias estaduais de Saúde e de Desenvolvimento Social, uma vez que o tema toca a atuação das duas pastas. Apenas a segunda delas respondeu.
A Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social (SDS) comunicou, através de sua Diretoria de Segurança Alimentar, que se preocupa com os números de internações e que, desde a passagem de gestão ao governador Jorginho Mello (PL), tem feito um levantamento sobre a segurança alimentar e nutricional em Santa Catarina.
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A partir desse diagnóstico, a SDS já identificou que apenas 32 das 295 cidades catarinenses integram o Sisan, o sistema que articula os três níveis de governo na implementação de políticas públicas contra a fome, e que somente 16 recebem produtos do Programa Alimenta Brasil (PAB), uma iniciativa federal que compra alimentos da agricultura familiar para repassar à rede de assistência social.
A SDS destacou que Santa Catarina conta hoje com três bancos de alimentos, três cozinhas comunitárias e quatro restaurantes populares entre os equipamentos públicos de resposta à insegurança alimentar. O primeiro deles redistribui doações de empresas e de compras de agricultura familiar, enquanto as cozinhas produzem, ao menos, 100 refeições por dia, distribuídas gratuitamente ou a preços módicos, o que também é feito pelos restaurantes, mas com previsão de servirem mil pratos diariamente cada.
A ideia do governo agora, segundo a SDS, é reforçar o apoio técnico e a coordenação na implementação de políticas junto às cidades. “[…] Após o final deste mapeamento elaboraremos uma estratégia para a sensibilização e ampliação aos municípios catarinense para ampliar a rede de segurança alimentar e nutricional do Estado”, comunicou a SDS, em nota.
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