Muita gente conhece a história da imagem de Nosso Senhor dos Passos, aquela que seguiria para a cidade do Rio Grande, no Rio Grande do Sul, mas que por conta de fortes tempestades acabou ficando na antiga Desterro. O que nem todos sabem é que foi uma mulher a responsável pela construção do lugar que abrigaria o santo, a Capela Menino Deus, anexa ao Imperial Hospital de Caridade, em Florianópolis.
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A peregrina Joana de Gusmão, homenageada com o nome do Hospital Infantil, na Capital, foi a primeira a arrecadar dinheiro para a obra da pequena igreja, nos anos 1760. Joana foi uma mulher à frente do seu tempo, pioneira ao ensinar meninas a ler e escrever. Corajosa, não se escondeu na tomada da Ilha de Santa Catarina pelos espanhóis, em 1777. Ao contrário, fez da capela Menino Deus uma fortaleza de proteção às famílias desterrenses que correram para o alto do morro da Boa Vista.
Da capitania de Santos à Ilha de Santa Catarina
Nascida no ano de 1688, na capitania de São Vicente — atualmente a cidade de Santos (SP) —, Joana era a quinta filha do cirurgião-mor português Francisco Lourenço Rodrigues e da brasileira Maria Álvares. O casal teve 12 filhos, sendo seis meninas e seis meninos. Do total, oito entraram para a vida religiosa, como o padre e cientista Bartolomeu de Gusmão, inventor do balão a ar quente, reconhecido como o primeiro cientista brasileiro.
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Comum à época, o sobrenome Gusmão foi adotado em homenagem ao fundador do seminário onde ele estudava, na Bahia, depois que a família migrou para aquele que era o principal centro político e econômico do país, com grande produção de pau-brasil e de cana de açúcar. Outro irmão, homônimo do reitor, faria o mesmo e se destacaria como diplomata no reinado de D. João VI.
De acordo com José Gonçalves dos Santos Silva, apontado como biógrafo de Joana, a família tinha espírito andante e ela era dotada de “uma inquietação quase nômade e atitude mística de vida”. Em meados do século XVIII, a mulher viria a se estabelecer na Vila de Nossa Senhora do Desterro, em Santa Catarina.
Joana chegou ao litoral catarinense por causa de um pacto com o marido. Certa vez, no retorno do casal após uma atividade religiosa na região paranaense, onde teria buscado tratamento para o marido em águas medicinais, Joana e Antônio Ferreira Gamboa fizeram um acordo: quando um deles morresse, o outro não mais contrariaria núpcias e passaria a peregrinar servindo a Deus.
Com a morte do companheiro, um agricultor abastado, em 1745, Joana manteve o prometido. Para honrar o compromisso, distribuiu os bens entre familiares, fez votos de pobreza e entrou para a Ordem Terceira de São Francisco de Chagas, sendo admitida como irmã e professora. A irmandade recebia leigos, mulheres ou homens, casados ou não, que não precisavam “abandonar o mundo”, mas, de acordo com suas realidades, seguir a Deus.
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Joana foi radical: dias depois de ficar viúva, recebeu o “hábito de freira”, na igreja da Ordem III de Paranaguá, para, em seguida, pegar a estrada. Foram 300 quilômetros de Paranaguá a Desterro. Estava acompanhada de três beatas: Jacinta Clara, Maria Joana e Antônia Margarida.
Registros históricos permitem imaginar como eram os dias na futura Florianópolis quando a peregrina chegou. Nos anos 1740, por exemplo, havia em torno de 900 moradores vivendo nas 150 casas. Distantes umas das outras, as moradias contavam com a luz vinda do sol e os olhos d’agua que brotavam da terra. As famílias viviam do serviço de armas, agricultura e pesca. Não havia comércio, sendo o escambo uma prática comum com navios que aportavam na ilha. A “rua principal” era a Praça da Matriz, onde permanecia a igreja levantada pelo bandeirante Dias Velho. Só em 1748 se inicia o processo de povoamento, com a vinda dos imigrantes açorianos. Em oito anos, mais de 6 mil pessoas migraram para a Ilha de Santa Catarina e formaram-se povoações e freguesias.
Sem rosto, mas com pés disposto e coração bondoso
O povoado de Desterro não seria o fim da peregrinação de Joana, mas uma mensagem divina. Possivelmente, um sonho fez com que ela fixasse residência, no começo, na freguesia da Lagoa da Conceição, onde ela e as três companheiras teriam ajudado a construir a primeira capela da freguesia, o atual Santuário da Imaculada Conceição
Tempos depois, sem que se saiba o motivo, a peregrina se instala no que hoje é conhecido como o morro do Hospital de Caridade. No local, Joana realizaria uma das obras mais importantes: a construção da Capela do Menino Deus.
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De acordo com os livros, não existem fotografias ou desenhos fidedignos do rosto de Joana. Até o presente momento, qualquer rosto que seja dado à peregrina faz parte do processo criativo, uma espécie de licença poética dos ilustradores, que tomam como referências à época em que viveu. Seria ela uma mulher alta e magra.
Imprecisa também é a idade com que teria pisado pela primeira vez no solo da província. Alguns livros falam em 57 anos. Sem rosto, mas com pés dispostos e coração caridoso: os autores destacam a importância da obra da beata — reconhecimento dos populares, mas não pelo Vaticano.
O pioneirismo da escola para meninas
Para fazer cumprir a mensagem sobre a construção da capela, Joana precisava de três coisas: um terreno, autorização da Igreja e dinheiro. Muito respeitada no vilarejo, foi presenteada com uma área no alto da colina, o chamado Morro da Boa Vista.
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Joana só deixava o lugar para pedir doações. Teria ido até a Colônia do Sacramento, no Uruguai, de onde voltou com 200 mil réis para tocar a obra. De acordo com o professor e escritor Henrique Fontes, certa vez, num retorno a Paranaguá, a fim de ratificar a sua “profissão de fé” e angariar doações, foi vista usando sandálias sem meias e com vestes feitas de aniagem.
Em suas andanças, carregava junto ao peito uma imagem do Menino Deus, esculpida em madeira, com 28 centímetros, e coroa metálica na cabeça. A imagem, descrita nos livros Memorial Histórico da Irmandade Nosso Senhor dos Passos, organizados por Nereu do Valle Pereira, mostra um Menino Deus com a mão direita em gesto de bênção, e com a esquerda segurando a cruz. Em 1762, a obra ficou pronta. Conhecida pela caridade, Joana construiu uma pequena casa ao lado, montando um colégio para meninas.
Com o passar dos anos, a obra passou por reformas e foi ampliada. Hoje, 279 anos depois, a imagem carregada por Joana em sua profissão de fé está no alto do altar principal da Capela Menino Deus.
— Joana foi uma mulher muito além do seu tempo, pois preocupava-se com a instrução feminina ao construir, provavelmente, se não, a primeira escola de Desterro e de Santa Catarina quando, no século XVIII, bem sabemos, não era um interesse social à época educar as jovens e mulheres. Talvez por ter nascido numa família ilustrada, como também se destacaram na história brasileira seus dois irmãos
Alexandre de Gusmão e Bartolomeu Lourenço de Gusmão — observa André Luís Silva, do Centro de Memória professor Henrique da Silva Fontes, da Irmandade Senhor Jesus dos Passos.
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Amparo à imagem de senhor dos passos
Outro fato relevante à biografia de Joana ocorre dois anos depois da construção da capela quando, em 1764, a imagem do Senhor Jesus dos Passos é abrigada dentro da pequena igreja. A escultura, feita em madeira por Francisco das Chagas, mostra Jesus Cristo em tamanho natural carregando a cruz. Toda articulada, com olhos de vidro, roupas e cabelos naturais, impressiona pelo realismo. Do rosto escorrem suor e sangue, consequência da coroa de espinhos que prendem os longos cabelos naturais.
Esculpida na Bahia, deveria ir para a cidade de Rio Grande (RS). Mas, segundo tradição oral, o mau tempo impediu três vezes o navio de chegar ao seu destino. Esse fato levou a comunidade a crer que era vontade de Deus que a imagem permanecesse na cidade, dando início à devoção que originou a principal festa religiosa de Florianópolis: a Procissão do Senhor Jesus do Passos. Três anos depois, em 1767, fundava-se a Irmandade do Senhor Jesus dos Passos. Joana passa a ser integrante da instituição, que fez a primeira procissão com a imagem em 1766.
A Ilha é dos espanhóis, mas o povo é da beata
Outro fato atribuído à Joana de Gusmão foi a defesa dos moradores na investida dos inimigos. Em 1777, quando os espanhóis tomaram a Ilha de Santa Catarina, a capelinha do Menino Deus serviu de refúgio. Muitas famílias correram para o alto.
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A ofensiva final começou com o desembarque na Praia de Canasvieiras, em 23 de fevereiro de 1777. Três dias depois, os comandados de Dom Pedro Cevallos chegaram à Vila de Nossa Senhora do Desterro. O lugar estava aparentemente abandonado pela população, que havia se refugiado no continente. Os espanhóis declararam a ilha do rei da Espanha, rezaram uma missa e saudaram Cevallos como herói.
A história mostra que não houve uso de canhões. Ocorre que, ao chegar à região, território português guarnecido por fortalezas, os espanhóis tinham em sua esquadra oito embarcações para cada uma da pequena frota lusitana. Cientes da situação, os portugueses abandonaram seus postos, no mar e na terra, deixando o caminho livre para os espanhóis declararem a ilha posse do rei da Espanha. Para os moradores, povo simples e com fé, foi uma espécie de “milagre” da beata Joana de Gusmão tudo ter ocorrido sem derramamento de sangue.
Foi com a assinatura do Tratado de Santo Idelfonso, em 1º de outubro de 1777, que os portugueses retomaram o controle da Ilha de Santa Catarina, deixando de vez a Colônia de Sacramento para os espanhóis. Para Nelson Rolim de Moura, escritor, fundador e proprietário da Editora Insular, é inaceitável que não exista uma única placa em referência à presença dos espanhóis na Ilha de Santa Catarina.
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— Existem livros mostrando como tudo ocorreu e colocando a Praia de Canasvieiras, no Norte da Ilha, como ponto de desembarque. Sabemos que se trata de um lugar muito procurado por turistas, principalmente da América do Sul que, em maioria, falam o idioma espanhol, e que poderiam saber desse fato histórico — sugere Rolim.
Descanso eterno na justa morada
De acordo com o professor e escritor Henrique Fontes, Joana de Gusmão morreu aos 92 anos, em 16 de novembro de 1780, e fez um pedido: ser sepultada no interior da capela que ergueu. Essa era uma prática comum em séculos passados.
Os restos mortais foram passando por alguns lugares diferentes, como sacristia e debaixo de um altar. Hoje, as relíquias se encontram numa urna, na parede à esquerda da capela, próxima da imagem do Senhor dos Passos. Uma justa morada.
— Nossa amada Joana foi muito importante para o começo da irmandade e da capela — reconhece Rita Peruchi, que integra a administração da Fundação Senhor dos Passos.
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Um hospital e a salvaguarda da cidade
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) declarou 1979 como o Ano Internacional da Criança. O objetivo foi alertar a população mundial para os problemas que afetavam meninas e meninos de até sete anos no mundo inteiro. Naquele mesmo ano, no dia 13 de março, Florianópolis ganhava um hospital infantil.
Até então, as crianças eram atendidas no Hospital Infantil Edith Gama Ramos (HIEGR), anexo à Maternidade Carmela Dutra, no Centro. A nova unidade, no bairro Agronômica, aprimorou os serviços e tornou-se um dos melhores hospitais para crianças e do ensino de pediatria e especialidades da América Latina.
A escolha do nome Joana de Gusmão considerou a dedicação da beata para com as crianças. O HIJG é totalmente público e única instituição de Santa Catarina habilitada pelo Ministério da Saúde como Serviço de Referência em Doenças Raras.
São muitos os feitos de Joana de Gusmão, sugere André Luís Silva, do Centro Memória Professor Henrique da Silva Fontes, da Irmandade Nosso Senhor dos Passos. Para ele, uma conexão profunda com a cidade de Florianópolis, a antiga Desterro, onde a peregrina pisou.
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— A Capela do Menino está, há 262 anos, no alto do Morro da Boa Vista, salvaguardando as imagens do Menino Jesus, seu padroeiro, e do Senhor dos Passos, que na tradição oral “em Desterro quis ficar” e da própria cidade. Para nós, prova da vitalidade da fé, devoção e longevidade da obra deixada por Joana — diz.
Fotos mostram capela construída por Joana
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