Assassinato de mulheres por serem mulheres. É o que define a Lei do Feminicídio, promulgada no dia 9 de março de 2015, pela então presidenta do Brasil Dilma Rousseff (PT). A legislação alterou o Código Penal para qualificar o homicídio que ocorre em razão da vítima ser do gênero feminino, seja em contexto de violência doméstica, menosprezo ou discriminação. Em outubro do ano passado, mais um passo: o feminicídio deixou de ser uma qualificadora e passou a tipificar como crime autônomo no Código Penal brasileiro. Uma medida considerada pelos especialistas como avanço nos direitos femininos, por trazer visibilidade e dar nome a uma realidade que matou 51 mulheres em Santa Catarina no último ano, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP/SC).
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A lei de número 13.104 nasceu a partir de uma recomendação feita pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (CPMI-VCM), que investigou casos de violência nos estados brasileiros entre março de 2012 e julho de 2013. O texto, após ser aprovado no Congresso Nacional, estabeleceu o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e o incluiu na lista de crimes hediondos, ou seja, aqueles que são inafiançáveis por serem considerados os mais graves pela sociedade. Antes de março de 2015, a morte de mulheres por serem mulheres era qualificada como homicídio simples, sem punição especial para o assassinato por razões de gênero.
Confira o material completo da série “Cicatrizes: as marcas do feminicídio”
Para Valéria Scarance, promotora de Justiça e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), nomear a morte de mulheres pela condição de gênero foi um passo importante para assegurar uma investigação mais assertiva, além de ser um avanço para a sociedade.
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— Por muitos anos, nomear a morte violenta de “feminicídio” foi importante não só para as autoridades públicas, assegurando uma investigação mais efetiva e um julgamento mais justo, mas também para a sociedade, demonstrando que a morte de uma mulher ocorre por ódio, como um ato de extermínio. Até pouco tempo, o feminicídio era romantizado, confundido com um ato de amor extremo, quando na verdade se trata de uma morte extremamente cruel praticada por alguém que a vítima confiava. Não é um ato de amor, mas um ato de extermínio — diz.
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A lei do feminicídio surgiu nove anos depois da Lei nº 11.340/2006, também conhecida como “Maria da Penha”, considerada uma das legislações mais importantes do Brasil no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Sancionado no dia 7 de agosto de 2006, durante o primeiro mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), o texto define como crime a violência doméstica contra pessoas do gênero feminino e cria mecanismos para evitar, enfrentar e punir o agressor. Com a publicação do texto no Diário Oficial da União, as mulheres brasileiras puderam finalmente pedir as “medidas protetivas de urgência”, que servem para proteger a vítima que está sofrendo violência.
— Desde a Lei Maria da Penha surgiram inúmeras alterações legislativas importantes, como a criação dos crimes de stalking, violência psicológica, “revenge porn”, dentre outras. Nesse contexto, surgiu a Lei do Feminicídio, que transforma a morte de uma mulher em um crime hediondo, qualificado, com pena mínima de 12 anos — explica Valéria.
Contudo, segundo a promotora de Justiça, mesmo com a lei de 2015, ainda era comum os agressores receberem uma pena incompatível com a gravidade do crime, “em razão do seu perfil social de ‘bons cidadãos’, do silêncio ou retratação da vítima e das alegações de traição”. Por isso, em 9 de outubro de 2024, foi sancionada a Lei nº 14.994/2024, que traz mudanças significativas na legislação brasileira referente ao feminicídio e aumenta o crime de 30 para até 40 anos de reclusão.
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“Pacote antifeminicídio”
Em vigor desde o dia 10 de outubro de 2024, a Lei 14.994 ganhou destaque por aumentar as penas do agressor para até 40 anos. Ela também endurece o tempo de reclusão para outros crimes, se cometidos em contexto de violência contra a mulher, incluindo lesão corporal e injúria, calúnia e difamação.
A legislação, conhecida como “pacote antifemícidio”, ainda altera a tipificação do crime de feminicídio, que antes era considerado uma qualificadora do homicídio, e, agora, passa a ser tipificado como um crime autônomo no Código Penal brasileiro. A mudança evita que o agressor utilize a tese de “legítima defesa da honra”, argumento muitas vezes usado para justificar o assassinato da vítima por traição ou “desrespeito”, como detalha a promotora Valéria:
— A legítima defesa da honra foi abolida da lei há muitos anos, mas nunca deixou de existir nos julgamentos. Essa alegação era feita indiretamente sob os argumentos de que a vítima traía ou desrespeitava o agressor. Havia julgamentos, por exemplo, em que a defesa exibia prints das redes sociais da vítima para inverter a situação, colocando o réu como vítima. O Supremo Tribunal Federal (STF) já havia reconhecido a inconstitucionalidade dessa tese odiosa, mas ainda era possível alegar que o feminicida tinha praticado o crime por violenta emoção, em razão de provocação da vítima, uma causa de diminuição da pena prevista para o homicídio. O novo crime de feminicídio é autônomo e, assim, não é mais possível esse tipo de alegação.
A nova lei aumenta, ainda, o tempo de pena de um terço até a metade caso o crime seja cometido durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto, e se for praticado contra menor de 14 anos, maior de 60 anos ou pessoa com deficiência. Além disso, os processos que envolvem assassinatos de mulheres em razão de gênero ganham prioridade no judiciário brasileiro.
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— Com isso, se evita a ocorrência da prescrição, pode haver decretação da prisão preventiva e a pena se torna proporcional à gravidade dos crimes praticados. O condenado só poderá receber benefícios na execução da pena após cumprir 55% dela, o que significa uma prisão mínima de 11 anos. Um aspecto importante da nova lei foi reconhecer que a violência contra a mulher também é violência contra os filhos e, no caso de condenação, o agressor se torna incapaz para exercer seus direitos de pai — fala.
Veja os principais pontos do “pacote antifemincídio”
Aumento de pena
A nova legislação aumentou as penas para o crime de feminicídio. Agora, a reclusão varia de 20 a 40 anos, superior à pena prevista para homicídio qualificado, que é de 12 a 30 anos.
Agravantes específicos
A lei estabelece circunstâncias que podem agravar a pena do feminicídio, aumentando o tempo de reclusão de um terço até a metade. Entre essas circunstâncias estão:
- Se o crime for praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto;
- Se for cometido contra menor de 14 anos, maior de 60 anos ou pessoa com deficiência;
- Na presença de descendente ou ascendente da vítima.
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“A lei do feminicídio não diminuiu o número de casos”
A criação da lei do feminicídio foi importante para dar nome ao crime e penalizar os agressores. Contudo, mesmo com a legislação, os índices crescem a cada ano. É o que diz Tammy Fortunato, advogada e autora do livro “Feminicídios: aspectos e responsabilidades”:
— A gente vê que desde 2015 há um aumento muito grande do número de casos. Na hora que vai ser cometido o crime, a pessoa, seja homem ou mulher, porque mulheres também são autoras do crime de feminicídio, ela não se preocupa com a penalidade, não se preocupa se vai ser condenada, na hora da raiva, do ódio.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, entre 2015 e 2023, 10.063 mil pessoas foram vítimas de feminicídio no Brasil, uma média de 1.118 mulheres por ano. Os dados mostram que em 2015, ano em que a lei foi sancionada, 449 pessoas foram assassinadas em razão do gênero no país. Em 2023, o número foi de 1467, um aumento de quase 226%.
O crescimento de casos registrados desde 2015 refletem também a tipificação correta do assassinato de mulheres em razão de gênero no Brasil. Isto porque, antes da Lei 13.104, o feminicídio era classificado como um homicídio comum, sem a distinção se a vítima foi morta em contexto de violência doméstica ou por questões de gênero.
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— Até que começassem a se adequar, começassem a fornecer os dados corretos para a coleta desses dados, demorou um pouquinho. Por isso que os dados só aumentam, porque agora a gente está começando a falar mais sobre isso e o crime está começando a ser tipificado de forma correta. Falamos mais sobre violência doméstica, falamos mais sobre o crime de feminicídio — relata Tammy Fortunato.
— Vamos precisar observar agora como é que os dados estatísticos vão ficar, se realmente essa questão do aumento de pena vai inibir novos casos de feminicídio ou se vai se manter na mesma crescente. O ideal é que a partir de 2026 a gente consiga analisar bem certinho esses dados, que vão refletir os de 2025. E aí vamos conseguir fazer um comparativo — detalha a advogada.
Mesmo com lei, SC ainda não tem delegacias abertas 24 horas
Outra lei federal que é considerada um avanço em relação aos casos de violência contra a mulher é a 14.541, sancionada em 2023. Ela determina que as delegacias especializadas de atendimento à mulher estejam abertas 24 horas por dia, sete dias por semana, incluindo os feriados. Os locais de denúncia ainda precisam, segundo a lei, prestar atendimento psicológico e jurídico à mulher vítima de violência, mediante convênio com a Defensoria Pública, os órgãos do Sistema Único de Assistência Social e os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ou varas criminais competentes. Apesar disso, nenhuma das 32 delegacias de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso (DPCAMI) de Santa Catarina funcionam conforme prevê a legislação. De acordo com a delegada Patrícia Zimmermann, o Estado não tem efetivo suficiente para suprir a demanda.
— Hoje a gente trabalha com as centrais de plantão policial 24 horas e com a delegacia virtual 24 horas. Infelizmente, a gente não tem efetivo suficiente para abrir as DPCAMIs 24 horas — explica a delegada, que também é coordenadora das DPCAMI de Santa Catarina.
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Ao NSC Total, a Polícia Civil explicou, em nota, que existe a Delegacia de Proteção dos Direitos das Mulheres (DPDM/DEIC), localizada em Florianópolis, para crimes mais complexos. O local, entretanto, não é “porta aberta”, ou seja, não atende o público diretamente, sendo apenas acionado conforme a complexidade da investigação do Inquérito Policial.
Ainda segundo Patrícia, a Polícia Civil investe em cursos de formação para delegados e psicólogos, além de cursos de agentes e agentes escrivães. A expectativa é de que, com o incremento do efetivo, o órgão comece a trabalhar com “a possibilidade de abertura [de delegacias 24 horas] nas cidades maiores”.
— Mas para isso precisa ter policiais suficientes para você ter essa escala de plantão — conta a delegada.
Sem previsão para abertura das delegacias, a alternativa é atender as mulheres em uma das 33 Salas Lilás, estruturas da Polícia Civil que contam com núcleo de atendimento diferenciado para as vítimas de violência doméstica, em Santa Catarina. O objetivo é evitar que elas fiquem expostas nas delegacias.
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“Essas salas atendem 24 horas e estão localizadas nas Centrais de Plantão Policial (CPP). Muitas vezes as mulheres chegam com roupas rasgadas, com os filhos. A Sala Lilás acolhe a mulher e a criança. O local tem, inclusive, área para entretenimento dessas crianças para que a mãe possa dar seu depoimento sem que a criança escute, por exemplo”, explica a Polícia Civil.
Conforme a delegada, as Salas Lilás são criadas nas delegacias de polícia em que há espaço físico para acomodação e nos locais em que “as estatísticas apresentam a necessidade de instalação”. Nos municípios em que não houver Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, a estrutura existente deverá priorizar o atendimento da vítima de violência. A Lei 14.541 ainda define que o atendimento deve ser feito, preferencialmente, em sala reservada e por policiais do sexo feminino, que devem receber treinamento adequado para permitir o acolhimento das vítimas de maneira eficaz e humanitária.
Em Santa Catarina, de acordo com dados enviados pela Polícia Civil ao NSC Total, o efetivo de policiais mulheres é de 1.008, sendo que 589 atuam como agentes, 275 como escrivães, 57 como psicólogas e 87 como delegadas. As mulheres vítimas de violência são “sempre que possível” atendidas por agentes do sexo feminino, conforme a corporação. O cenário pode mudar caso não tenha policial mulher na delegacia no momento da ocorrência.
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