Enquanto brinca na praça da igreja, em Sombrio, no Sul do Estado, de saia rodada e sandália cor de rosa, Pi experimenta a liberdade de ser criança. Pietro Domingos Soares, seis anos, nasceu com o sexo biológico masculino, mas sempre demonstrou preferência por brinquedos e acessórios convencionados como “de menina”. Com a ajuda de uma psicóloga, criança e família aprendem juntas sobre pessoas transgênero, enquanto transpõem as barreiras do preconceito com amor e respeito.
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Um indivíduo que não se identifica com o sexo biológico é chamado de transgênero. Por exemplo, uma pessoa do gênero masculino, que não se vê dessa forma, vive como se estivesse no “corpo errado”. Mesmo sem entender o que isso significa, Pietro passou a dar sinais pouco depois de um ano de idade, mas nada que na época causasse estranhamento para os pais.
– Quando ele entrou na escola, passou a querer a personagem Frozen, pois uma colega tinha. Depois, uma cozinha. Eram somente brinquedos, mas algumas pessoas acabavam questionando – relembra Lisiane de Souza Domingos, 31 anos, mãe de Pietro.
Na descoberta da gravidez, a enxurrada de presentes de menino começou a chegar. Kimono de jiu-jitsu, pilcha de gaúcho, roupinha camuflada, todos representando as atividades ligadas ao pai Glauter Soares, 36, que é policial civil. Foi com o crescimento do filho que Glauter encontrou leveza para tratar de questões antes consideradas tabu.
– A gente nunca foi homofóbico declarado, mas tinha atitudes homofóbicas e machistas. Hoje fica claro para nós que todos de uma certa forma somos machistas, preconceituosos, e estávamos dentro daquela dita normalidade, nas piadinhas, brincadeiras – relembra o pai.
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Ainda que identidade de gênero e orientação sexual sejam coisas distintas, a família precisou mergulhar nesses conceitos de um mundo até então desconhecido. Principalmente, para encarar o preconceito. Os dois, que não são mais casados, foram alvo de uma ação no Ministério Público por negligenciar e expor Pietro ao sofrimento, “incentivando a criança a ser menina”.
Mãe e pai foram ouvidos pela promotoria, o caso foi encerrado, mas as palavras utilizadas pelo autor de denúncia anônima ressoam até hoje. Ao Disque 100, a pessoa relatou que Pietro tinha medo e era agredido psicologicamente pelo pai. Lisi foi acusada de negligente e permissiva.
– Foi a primeira maldade que a gente enfrentou, e aí pensamos que era a hora de começar a trabalhar socialmente, a cercá-lo. Começou a preocupação de zelar por ele, e de como poderíamos preparar o mundo para ele – relembra o policial.
Uma música escrita por Glauter antes do episódio voltou com força nessa época, onde ele declara ao filho que “é com amor que sufocamos toda ignorância, a pouca compreensão e a falta de esperança”. Lisi, que sempre foi mais reservada sobre o assunto, gravou um vídeo e publicou nas redes sociais. A partir dali, cada um com o respetivo grau de entendimento, declarou ao mundo que Pi nunca esteve, e nunca estrá, sozinho.
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Em busca de uma sociedade mais educada para o acolhimento, Glauter também aprendeu a congregar. Organizou o primeiro encontro LGBTQ+ da cidade no ano passado, um piquenique que reuniu famílias para discutir o assunto. Na escola católica, Pi tem pequenas conquistas a cada dia, e sempre com o apoio dos educadores.
A família ainda está em processo de evolução. Na casa do pai, a maior parte do guarda-roupa é feminino. Já no convívio com Lisi, a opção é por peças masculinas a pedido dela, e Pietro lida bem com isso.
A guarda é compartilhada e os dois são amigos, dispostos a ver Pi crescer rodeado de amor, como nos versos que Glauter dedicou ao filho: “Pegue a sua boneca e ajeita o seu vestido, pega o seu carrinho e vem brincar comigo, em todas as tuas escolhas o pai vai te apoiar. Seja feliz, sim, do jeito que você é. Seja feliz, sim, com as escolhas que fizer”.
Preconceito que mata e marginaliza
No mês passado, Isabelle Colstt, 27 anos, morreu após ser atacada em uma rua do bairro Ingleses, em Florianópolis. Uma amiga dela de 30 anos, também transexual, ficou ferida no ataque e está internada. Tanto a Polícia Civil quanto a Polícia Militar inicialmente omitiram a informação de que as vítimas eram mulheres transexuais, e divulgaram o crime como um homicídio e uma tentativa de homicídio contra dois homens.
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Há pouco mais de três anos, um levantamento da ONG Internacional Transgender Europe (TGEu) ganhou o mundo com dados de mortes de pessoas trans. Os números apontam que em oito anos, o Brasil havia registrado a morte violenta de pelo menos 868 travestis e transexuais, liderando o ranking dos países com registro de homicídio de transgêneros.
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) foi na mesma linha, e em 2018 lançou um mapa da violência, com dados referentes ao ano anterior. Em 2017, foram 179 assassinatos de pessoas trans, sendo 169 travestis e mulheres transexuais e 10 homens trans, fora os casos subnotificados. Os números assustam, e por isso a importância de iniciativas que discutam as questões de gênero, o preconceito e a diversidade.
Atualmente, 90% dessa população ainda utiliza a prostituição como fonte de renda, segundo a Antra. Por conta de inúmeros fatores, entre eles a dificuldade de inserção no mercado de trabalho formal e a falta de qualificação, já que a escolaridade costuma ser baixa. É por volta dos 13 anos que travestis e trans costumam ser expulsos de casa, conforme dados da associação, e acabam sendo “empurrados” para as margens da sociedade.
Transformação no espaço acadêmico
Em número quase inexistente, somente 0,2% dos graduandos nas universidade federais do Brasil são mulheres ou homens trans. O levantamento é da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), divulgado em 2019. Ocupar o espaço acadêmico é também uma forma de educar os demais para um maior acolhimento e reconhecimento da diversidade humana, defende Olga Regina Zigelli Garcia, líder do grupo de pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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O Núcleo de Estudos e Pesquisas de Travestilidades, Transgeneridades e Transexualidades (NeTrans), iniciado há quase dois anos, é o primeiro grupo de pesquisa do Brasil criado por estudantes trans. Ele é vinculado ao Instituto de Estudos de Gênero (IEG), da UFSC.
– A presença de sujeitos travestis, transexuais e transgêneros no ambiente acadêmico transforma as próprias relações, pois há uma série de mudanças na forma de conceber as subversões e transgressões das normas de sexo/gênero, inclusive de todos que compõem este ambiente – defende Olga.
Em junho do ano passado, a líder do NeTrans se reuniu com a reitoria da universidade para discutir políticas públicas para a comunidade universitária, entre elas, a questão de cotas. Com o intermédio da Coordenadoria de Diversidade Sexual e Enfrentamento da Violência de Gênero (CDGEN) da Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidade (SAAD), a intenção é criar oportunidades.
O grupo tem reunido pesquisadores a fim de produzir estudos sobre gênero e transgeneridade, também como uma estratégia para reconhecimento da pessoa trans no espaço acadêmico. Para a professora Olga, a conquista desse espaço vai além.
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– Facilitar o acesso e a permanência ao ensino superior para esta população é acima de tudo reconhecer o preconceito e a discriminação sofrida por estas pessoas durante o ensino regular, o que lhes conferem marcas da violência institucional sofrida – defende Olga.
A questão do nome social também é muito forte, e o número de alunos que têm solicitado a alteração no cadastro da UFSC tem aumentado. No ano passado foram 28, e nesse semestre, 41. A reafirmação da própria identidade é outro passo importante para a comunidade trans, e por isso o atendimento também é nesse sentido.
Ainda não há um número exato de alunos trans que frequentam a UFSC, e o SAAD vai fazer um trabalho conjunto com o setor de tecnologia da informação para que isso ocorra. Sabendo o tamanho desse público, ouvindo as demandas e conhecendo eles de perto, é possível pensar políticas de inclusão cada vez mais eficazes, defende o chefe de atendimento psicológico da SAAD, Aurivar Fernandes Filho.
Ocupar espaços para produzir conhecimento
Ir além dos termos e limites, atravessar. Vencer as barreiras da baixa escolaridade, da pouca expectativa de vida, e construir uma carreira reconhecida entre seus pares. Assim tem sido escrita a história de Gabriela Silva, 50 anos, de Tubarão, travesti com 30 anos de atuação como professora do Estado. Recém-aposentada, ela se dedica ao doutorado na UFSC dentro de uma linha de pesquisa que conhece bem: sujeitos, processos educativos e docência.
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Sob a orientação da doutora Maria Hermínia Lage Fernandes Laffin, Gabriela se debruça sobre o êxodo escolar de travestis e transexuais, que depois retornam à Educação de Jovens e Adultos (EJA) para concluir os estudos. Durante duas décadas, ela foi professora do EJA, e quer entender o que faz esse público buscar a escolarização tardia.

Dados apontam que pessoas trans pouco chegam ao ensino médio, raramente ingressam no ensino superior e quase inexistem na pós-graduação. Essa quebra de paradigma proposta pelos participantes do núcleo de pesquisa e justamente para mostrar que a pessoa trans pode desbravar novos espaços.
Dentro dessa realidade, Gabriela é uma linha totalmente fora da curva. Começou a lecionar para séries iniciais aos 18 anos, entrou como professora concursada no Estado e após três décadas, garantiu a aposentadoria. O processo foi em meio à polêmica do uso do nome social, que havia sido proibido pelo governador Carlos Moisés (PSL) no início do ano passado, e que depois voltou atrás na decisão.
– Chego a uma aposentadoria bem, fazendo doutorado, enquanto 90% das minhas companheiras estão na prostituição. Não estou dizendo que elas são menos por isso, mas que essa condição que parece ser hereditária, que se perpetua, muitas de nós temos conseguido romper – analisa a doutoranda.
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