Por muito tempo, imaginou-se que a orientação sexual tivesse apenas três variações. Em uma ponta estariam aqueles que se atraem pelo sexo oposto, na outra os que se relacionam com o mesmo sexo e, no meio, quem gosta tanto de um quanto do outro. O mundo girou e as mudanças aconteceram.
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A linha imaginária da orientação sexual, aquela que diz por quem sentimos desejo, está bem mais maleável. Tanto que há, também, possibilidades fora dela.
Para os jovens, isso está bem mais claro. As novas gerações surgem desprendidas de rótulos. Ainda vivemos em um país permeado pelo preconceito e conservadorismo, porém, as possibilidades de novos relacionamentos sexuais e afetivos se tornam realidade.
— As gerações mais novas têm uma tranquilidade maior de trafegar por essas possibilidades. Hoje, é mais comum, principalmente entre as meninas, ter experiências com outras meninas e, depois ter uma história com um cara. Ou ter uma história com caras na adolescência e, depois, se relacionar com uma mulher. As pessoas expressam a sexualidade de uma maneira mais fluida, especialmente quando são jovens. Para eles, não é um grande tabu como para a gente é — explica o médico psiquiatra Jairo Bouer.
Para os homens, afirma Bouer, o trânsito entre as orientações ainda é mais engessado. Isso porque o machismo dificulta que eles assumam orientações sexuais que fogem do padrão heterosexual. Mas isso está mudando.
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Mesmo que os jovens estejam mais abertos a novas experiências, não significa que todos compreendam este novo cenário ou embarquem nele. As diferenças entre gêneros e orientação afetiva ou sexual ainda são um mistério para muita gente. Além disso, a facilidade de conseguir transar em uma época de nudes e aplicativos nem sempre significa satisfação ou até mesmo que todas as relações são saudáveis.
— Eles fazem mais sexo, mas nem por isso estão mais felizes, porque não é a quantidade de experiência que provoca satisfação, mas a qualidade das relações, a capacidade de se sentir importante e querido pelo outro. Adolescência e juventude são as faixas etárias nas quais a depressão aumentou nos últimos 10 anos e isso é preocupante. Se não há fator biológico interferindo, a questão é psicossocial. Como estão os vínculos afetivos que nos protegem e nos motivam para a vida? – questiona Ana Canosa, psicóloga clínica, terapeuta e educadora sexual, autora do livro Sexoterapia — Desejos, Conflitos, Novos Caminhos Em Histórias Reais.
Além disso, de acordo com a presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Carmita Abdo, uma das consequências destas mudanças é que a vida sexual inicia mais cedo. Estudos do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas com pacientes do Brasil todo mostram que há quatro gerações as mulheres tinham a primeira relação na faixa dos 22 anos e que a média atual é de 15 anos para ambos os sexos. Para a especialista, o amadurecimento biológico dos adolescentes tem ocorrido mais cedo. A meninas passaram a menstruar e os meninos apresentam poluções noturnas mais jovens. A causa seria o estímulo sexual mais acessível disponível na internet.
— É diferente de gerações antigas, que tinham que comprar uma revista ou vê-la escondida no banheiro, ou teriam que ir ao cinema ou escolher um canal na TV que os pais não soubessem. Hoje, o acesso é a qualquer momento, na palma da mão — considera Carmita.
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Preparo e reflexão
Outro ponto preocupante é a falta de preparo e reflexão sobre o tema, que, em geral, recebe resistência quando é tratado pelas escolas, pode fazer com a que a nova geração continue repetindo comportamentos sexistas e violentos por pressão social, explica Ana. Um exemplo disso é a objetificação dos corpos e relacionamentos superficiais. Entendendo a necessidade de debater o tema e garantir qualidade de vida a crianças e adolescentes, a própria Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) reeditou o guia Orientações Técnicas de Educação em Sexualidade, pensado para legisladores que trabalham na elaboração de currículos escolares. O material foca na educação em sexualidade de uma forma que promova a saúde, bem-estar, respeito aos direitos humanos e igualdade de gênero. Para completar, o constrangimento na hora de conversar com os filhos e a discriminação da sociedade para o tema também refletem na falta de cuidado e proteção, o que tem aumentado o número de contaminação por DSTs na faixa etária entre jovens de 15 a 24 anos no Brasil, segundo o Ministério da Saúde.
Diferentes tipos de relacionamento sempre existiram. Só que, nos dias atuais, as pessoas não escondem e falam mais sobre o tema. A grande mudança se iniciou na década de 1960, com o ponta pé da emancipação feminina: a popularização da pílula anticoncepcional. O controle de natalidade deu mais liberdade às mulheres, permitindo que novas práticas sexuais começassem a surgir e os relacionamentos se moldaram à medida que isso passou a ocorrer. Hoje, de acordo com a psicanalista e escritora Regina Navarro Lins, no livro Novas Formas de Amar, há uma ética sexual emergente na qual o compromisso já não é mais necessário para que o sexo aconteça.
Contribuiu para esse movimento a ampliação do espaço conquistado pelas mulheres, por meio do feminismo, e do grupo formado por lésbicas, gays, bissexuais, transgênero e intersexuais (LGBTI+) – o Dia do Orgulho LGBTI+, aliás, ocorre nesta quinta-feira, 29 de junho. Os jovens, agora, aproveitam na prática os avanços conquistados por uma geração anterior. Se antes a prioridade era casar e manter essa relação, independente de haver sentimentos entre o casal ou de ocorrer problemas, como traições, agora o que se busca é liberdade, amor próprio e satisfação pessoal.
— Hoje, comprometer-se afetivamente com alguém não é uma imposição, nem a melhor e nem a única maneira de viver. Espera-se mais do trabalho, das aventuras que se possa ter no mundo, das muitas pessoas que se possa conhecer. Essa é uma diferença importante. Outra questão é que os adolescentes e jovens experimentam mais práticas sexuais que não eram tão usuais no passado, bem como se permitem experiências com pessoas do mesmo sexo por curiosidade — explica Ana Canosa.
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Outro fator é a fluidez. Há quem fique ou faça sexo com mais de um gênero, mas prefira se envolver afetivamente com apenas um. É o caso de homens que transam com homens, mas que não se identificam como homossexuais, por exemplo. Tanto a orientação sexual quanto o gênero dependem da forma como a própria pessoa se vê. E isso pode mudar. Um dos exemplos que teve repercussão nacional é de uma adulta. A cartunista Laerte, que se anunciou crossdresser, ou seja, um homem que se sentia melhor usando roupas de mulher, mas tempos depois assumiu a identidade transgênera. Tudo faz parte de um processo de autoconhecimento.
Este trânsito cada vez mais aceito, especialmente entre as novas gerações, não significa, no entanto, que as relações são mais superficiais do que épocas anteriores, nem que os jovens não levem a sério compromisso.
— Penso que, de modo geral, (os adolescentes e jovens), estão mais fluidos, mas isso não significa que não estabelecem relações profundas com amigos e pares amorosos. Os adolescentes vivem tudo de maneira muito intensa e, talvez, as pessoas hoje sejam menos cuidadosas com os outros — completa Ana.

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