Casada há cinco anos, Lucia* vivia um relacionamento já conturbado. Foram centenas de dias resumidos em brigas, discussões e coisas que, na cabeça da mulher de 37 anos, faziam parte da rotina de um casal. A moradora do interior de Santa Catarina nunca pensou que a vida teria um fim naquela tarde de domingo. O marido foi o autor do crime: com uma faca, ele matou a companheira em frente aos filhos durante mais uma discussão.

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O cenário é fictício, mas poderia ser a história de uma das mais de 500 mulheres assassinadas em Santa Catarina nos últimos dez anos.

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Desde 2015, 525 mulheres foram vítimas de feminicídio, ou seja, mortas simplesmente por serem mulheres, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É como se, por mês, quatro mulheres morressem pelo mesmo motivo — o equivalente a uma morte por semana. Se o comparativo for o número de habitantes, foram 3,4 assassinatos a cada 100 mil no Estado — sendo esses crimes ainda mais frequentes nas pequenas cidades.

A lei que coloca o feminicídio como uma qualificadora do homicídio completa 10 anos em 2025. Antes disso, os crimes eram enquadrados como assassinato de mulheres, sem levar em conta a motivação. No último ano, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP/SC), foram 51 crimes registrados em 37 municípios catarinenses. O primeiro foi em Dona Emma, em 13 de janeiro. Eunice Bertoldi tinha 43 anos e foi morta pelo companheiro com um tiro na cabeça. O suspeito foi preso mais de um mês depois, em Blumenau.

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Confira o material completo da série “Cicatrizes: as marcas do feminicídio”

Juliana Brandão, pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), instituição que elabora anualmente o Anuário da Segurança Pública, afirma que a lei mudou a forma como o judiciário e as forças de segurança veem os crimes praticados contra a mulher. Antes de 2015, eles eram classificados como homicídios, com a diferenciação apenas de gênero. Entre 2010 e 2014, em Santa Catarina, foram registrados 272 assassinatos de mulheres.

— Com a lei, o sistema jurídico reconhece a violência contra a mulher como sendo uma categoria que precisa ser normatizada. Ele reconhece que a violência contra a mulher precisa de um endereçamento específico. A partir daí, a gente começa também a ter a dimensão do problema que vem em uma crescente. O Brasil ainda é um país muito inseguro para as mulheres — afirma Brandão.

Taxas de feminicídio são maiores nas pequenas cidades

Quando se fala no número absoluto de ocorrências de feminicídio registradas nos últimos anos em Santa Catarina, a maior cidade do Estado, Joinville, lidera: em cinco anos, foram 16 crimes. Considerando os dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de homicídios para cada 100 mil habitantes é de 2,6, abaixo da média do Estado, que é de 3,64.

É esperado, no entanto, que cidades maiores tenham mais registros do crime. Depois da cidade do Norte do Estado, estão Florianópolis (15) e Chapecó (14). A Capital também mantém uma taxa menor que a média estadual: foram 2,79 feminicídios a cada 100 mil habitantes. Chapecó tem uma taxa maior, de 5,49.

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São nas pequenas cidades, no entanto, que as taxas atingem patamares exorbitantes: Bom Jardim da Serra, com pouco mais de 4 mil habitantes, tem uma taxa de 47,52, com três ocorrências. Ou seja: se a cidade fosse do tamanho de Joinville, com 616.317 habitantes, teriam sido alarmantes 459 feminicídios registrados.

Também localizada na Serra, a pequena Paial, de apenas 1.927 moradores, se destaca com uma taxa de 51,89 crimes a cada 100 mil habitantes. Irati, no Oeste, com pouco mais de 2 mil moradores, tem taxa de 48,33.

Entre as cidades com as 10 maiores taxas, nenhuma tem mais de 5 mil habitantes e nenhuma delas tem Delegacias de Proteção à Criança ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso (DPCAMIs). Em nota enviada ao NSC Total, a Polícia Civil de Santa Catarina afirma que “populações reduzidas inflacionam as taxas, mesmo com números absolutos irrelevantes” e destaca ainda que “Santa Catarina tem uma taxa de 100% de resolução de feminicídios”. Em 2024, segundo a corporação, os crimes de feminicídio caíram 10,54% e que, até março de 2025, a redução era de 20% em relação ao ano passado.

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Juliana Brandão reforça que isso, sim, costuma acontecer, já que uma ocorrência em uma cidade pequena já aumenta a proporção de casos.

Subnotificação pode esbarrar na interpretação da lei

Os números disponíveis, no entanto, apesar de altos, podem ser ainda maiores. Isso porque a aplicação da lei depende da interpretação de agentes públicos, como explica Juliana Brandão:

— Se não tivermos o agente que está desde o registro do boletim de ocorrência, passando por todas as instâncias do sistema de Justiça, fazendo essa correspondência entre o que aconteceu de fato e aquilo que a legislação prevê, a gente vai ter um “gap”.

Esse gap se torna uma área cinzenta, onde a legislação pode não ter aplicação. Entretanto, é difícil medir isso e, muitas vezes, ele é corrigido no caminho do processo judicial. É o caso do bárbaro crime contra Mariane Kelly dos Santos, de 35 anos, morta a mando do marido pastor em Itajaí, em abril de 2021.

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Na época, a Polícia Civil não indiciou o marido pelo crime de feminicídio, já que, segundo os investigadores, o crime foi praticado com o intuito do suspeito ficar com o dinheiro da vítima e com a amante. O Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), no entanto, entendeu que se tratava de um crime em razão do gênero e, no fim do processo, o pastor, assim como os demais envolvidos, foram condenados — apenas o marido teve a qualificadora de feminicídio imputada na pena.

— De fato, a gente muitas vezes tem essa dificuldade de não reconhecer que [o feminicídio] é uma violência perpetrada justamente pelo ódio ao feminino, pela misoginia, pelo machismo — pontua Juliana, pesquisadora do FBSP.

Outro ponto crucial é uma possível invisibilidade das mulheres transsexuais nessa equação. A reportagem não obteve, através da SPP, dados sobre a identidade de gênero das vítimas dos crimes. Mas, a pesquisadora aponta que essa subnotificação pode, sim, existir, e tem como pano de fundo questões anteriores ao próprio crime, que é ponta final de um espiral de violência:

— A gente está falando de algo que antecede [o feminicídio], nesse contexto da violência contra as mulheres, que é o reconhecimento de que mulheres trans são mulheres e que precisam ter seus direitos resguardados como todas as outras mulheres e como todos os outros demais cidadãos do Estado brasileiro. Se você não reconhece a identidade daquele sujeito, como você vai de fato fazer cumprir as nossas normas maiores, como a nossa Constituição, que prega justamente a igualdade de todos perante a lei.

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Mulheres negras são as mais suscetíveis a mortes violentas

Em números nacionais, o percentual de mulheres negras vítimas de feminicídio é o maior: em 2023, 68,6% das vítimas de feminicídio no Brasil eram negras; 30,9% eram brancas; 0,2% eram indígenas; e 0,2% eram amarelas. A reportagem não obteve, junto à Secretaria de Segurança Pública, dados estaduais. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que reúne estes dados a nível nacional, também não possui as informações específicas de Santa Catarina.

— O Brasil é um país muito inseguro para as mulheres, mas de uma forma muito específica. Essa violência contra a mulher tem um recorte racial: as mulheres negras ainda continuam sendo aquelas que são as maiores vítimas de feminicídio no Brasil. Eu não estou dizendo que o feminicídio não atinge as demais mulheres, as mulheres brancas, mulheres amarelas, mulheres indígenas. Mas, no grupo das mulheres, ainda conseguimos identificar um grupo ainda mais vulnerável, que é o das mulheres negras — pontua Juliana Beltrão, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Onde SC está em relação ao Brasil nos números do feminicídio

Em 2023, Santa Catarina foi o 10º estado brasileiro com o maior número de feminicídios no ano. Em todo o país, foram 1.467 crimes. Já em relação à taxa (a cada 100 mil mulheres), ela foi de 1,5, sendo que o estado catarinense teve o 16º maior número. A taxa nacional é de 1,4 feminicídios a cada 100 mil mulheres.

A taxa catarinense, de 1,5, é semelhante à de Goiás, de 1,6. O território goiano tem 7.055.228 habitantes, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), número semelhante ao de Santa Catarina, que, segundo o Censo 2022, chegou a 7.610.361 habitantes.

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Ainda em 2023, Santa Catarina registrou 233 tentativas de feminicídio, o quarto maior número do país, perdendo apenas para o Rio Grande do Sul (235), Pará (242) e Rio de Janeiro (308). Em relação à taxa, Santa Catarina ocupa a oitava posição, com seis ocorrências a cada 100 mil mulheres. Os dados são do Anuário de Segurança Pública de 2024.

O que diz a Polícia Civil de SC

“Santa Catarina possui 32 DPCAMIs, delegacias especializadas no atendimento de crianças, adolescentes, mulheres e idosos distribuídas em todas as regiões de SC. Importante destacar ainda que vítimas de violência doméstica podem procurar auxílio 24 horas nas Salas Lilás, localizadas nas Centrais de Plantão Policial (CPP). Atualmente temos 35 Salas Lilás em funcionamento, espaços preparados para acolher a mulher em situação de violência que, não raro, chega na delegacia em busca de ajuda acompanhada dos filhos, normalmente crianças. Pensando nisso, a Sala Lilás também conta com uma área para receber as crianças, o que permite que a mãe vítima de agressão dê seu depoimento sem que a criança ouça o relato. A CDPCAMI está trabalhando para ampliar o número de Salas Lilás ao longo do ano.

Há ainda a possibilidade da vítima fazer o registro por meio da delegacia virtual, onde pode inclusive solicitar medida protetiva ou buscar ajuda na delegacia mais próxima de sua casa.

Além de atuar na responsabilização criminal dos autores, a PCSC tem o Programa PC Por Elas, que atua em diversas frentes na prevenção deste tipo de crime. Delegadas e psicólogas lotadas nas DPCAMIs realizam constantemente rodas de conversas, palestras e ações em escolas para debater e conscientizar mulheres, adolescentes e crianças sobre prevenção à violência doméstica e os canais da PCSC para atender as vítimas.”

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