Envolta por lendas e histórias que têm como cenário as praias, dunas e a exuberante mata atlântica, Florianópolis é conhecida como “Ilha da Magia” por muito mais do que as paisagens deslumbrantes. Esse apelido é carinhoso, mas também intrigante: de onde vem a tal magia que permeia a história, a cultura e as tradições da capital catarinense?

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O misticismo em torno da ilha começa, claro, nas belezas naturais. Mas não pára por aí. Um dos traços marcantes da cultura local é a força do imaginário popular, recheado de personagens e figuras místicas, que é resultado da mistura entre carijós, africanos, açorianos e outros povos que passaram pela ilha e deixaram sua marca na formação cultural de Florianópolis.

Com toda essa miscigenação, o repertório de histórias e tradições orais da região foi ganhando corpo e comemorando 351 anos de existência, vamos contar um pouco dos mistérios encontrados aqui. Segundo Maria Isabel Orofino, a Bebel, que é jornalista e uma das organizadoras do Baile Místico, os colonizadores que chegaram e se estabeleceram aqui eram pessoas que vinham de um arquipélago isolado no Atlântico Norte, enquanto os primeiros traços da modernidade avançavam no continente europeu.

— Eles conservaram esses traços de um pensamento mágico, supersticioso. Como ficaram isolados lá, eles trouxeram isso pra cá. Então, a ilha de Santa Catarina, um cenário de muita beleza, acolhe uma população com um imaginário muito rico, muito lúdico e muito supersticioso. O que vem a ser muito engraçado, né? Porque tem histórias que são realmente muito engraçadas. O professor Oswaldo Rodrigues Cabral, um dos maiores historiadores aqui do nosso lugar, disse que Florianópolis é a ‘ilha dos casos raros’. Esse imaginário popular lúdico é lugar de muita brincadeira, de muita superstição, de muita imaginação, de muita ‘mentira’, de muita contação de história mesmo.

Bruxas e benzedeiras

Essas histórias, passadas de geração em geração, são cheias de figuras místicas, como bruxas, lobisomens, boitatá e várias outras, que aparecem no folclore brasileiro e de outras culturas. As bruxas, talvez as mais famosas do imaginário da cidade, estão fortemente ligadas à presença das tradições açorianas na região, como explica Rodrigo Stüpp, especialista em conteúdo turístico e fundador do Guia Manezinho:

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— Esse universo bruxólico vem de uma ideia meio medieval de mulher, em que aquelas que tinham alguma relação com o intuitivo, que não eram cristãs, que dominavam, por exemplo, as ervas, os benzimentos, eram apontadas como bruxas. E isso vem lá com o imigrante açoriano, a partir de meados do século XVIII. Essas tradições foram sendo mantidas até os tempos atuais. Essa magia hoje se converte no que a gente poderia dizer que são ‘bruxas boas’, mas que, na verdade, são as benzedeiras, as que acabam com as bruxarias. Atualmente, há uma rede de benzedeiras se estabelecendo em Florianópolis, com mulheres de todas as idades, em que a mais velha tem 92 anos, e a mais jovem, em torno de 40.

Bebel complementa, dizendo que “hoje em dia, a gente pode brincar mais com isso. A bruxa da ilha não é maléfica, ela é muito safada e muito divertida”.

Nas narrativas sobre as bruxas, ela aponta também o protagonismo feminino e a força das mulheres. Para ela, Santa Catarina tem em si mesma a representação do poder feminino, desde o nome da ilha, batizada em homenagem à Santa Catarina de Alexandria, e de Nossa Senhora do Desterro, a quem o primeiro nome da ilha fazia referência.

Rodrigo destaca ainda uma curiosidade: no mapa da ilha, é possível procurar o perfil de uma bruxa:

— Na parte de cima, na parte norte, você consegue ver o chapéu, o nariz…

Miscelânea cultural

Além da influência açoriana, as principais lendas do folclore da cidade são também um encontro com as tradições africanas e indígenas. Um exemplo disso é o boi de mamão: próximo do boi bumbá – muito forte nas regiões Norte e Nordeste –, tem personagens que são muito “manezinhos”, como a Maricota, a Bernunça e a Cabra.

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— É uma cultura super rica, mas é importante dizer que não é a única. Subindo os morros, por exemplo, há uma grande quantidade de terreiros de candomblé. A  gente também tem uma cidade que, saindo dessa dessa religiosidade açoriana, tem outros pontos importantes de atenção. Quando a gente vê uma roda de capoeira na frente da catedral, estamos falando de resistência. Florianópolis chegou a ter um momento em que, de cada dez moradores da cidade, três eram negros — diz Rodrigo.

O legado de Cascaes

Figura real que se tornou também lendária em Florianópolis. Franklin Cascaes foi um pesquisador, folclorista, ceramista, gravurista e escritor que documentou muitas das principais tradições populares da cidade. Um dos primeiros e mais importantes responsáveis pelo resgate e valorização dessa cultura, Cascaes, na década de 1940, começou a coletar as histórias que permeiam o imaginário popular dos manezinhos e construiu um acervo com peças de cerâmica, além de cadernos escritos e o livro O Fantástico na Ilha de Santa Catarina (Editora UFSC), publicado em 2012, que reúne 24 histórias coletadas entre 1946 e 1975.

— Uma coisa muito importante que ele fazia, depois que visitava uma comunidade, ele fazia a primeira exposição dele de volta na comunidade, para que as pessoas se reconhecessem naquilo. Ele conseguiu trazer a oralidade para o escrito, e também desenhando para essas pessoas — comenta Rodrigo.

— A gente deve ao Franklin Cascaes o mapeamento do repertório lúdico, mágico, supersticioso. E, no conjunto do que o Cascaes recolheu, certamente as bruxas ocupam o primeiro lugar como as mais populares. E depois as histórias de lobisomem, e depois as histórias de boitatá, que é uma influência indígena — afirma Bebel.

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A obra de Cascaes foi doada em 1981, ainda em vida, e está armazenada no Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues Cabral da Universidade Federal de Santa Catarina (MArquE/UFSC), com desenhos sobre papel e esculturas em gesso ou argila somando mais de três mil peças.

Fortalecimento manezês

Hoje, Bebel vê em Florianópolis um movimento de retomada da cultura local, com a proliferação de iniciativas como o Dezarranjo Ilhéu, o Floripa Mil Grau, o Grande Baile Místico e outras que reúnem a comunidade e artistas interessados na mitologia local.

Para Rodrigo, o momento é promissor: a reabertura da Ponte Hercílio Luz, a presença e interesse das pessoas no Boi de Mamão, as turmas de crianças aprendendo a fazer renda, o surgimento de marcas e humoristas que se dedicam a valorizar a cultura de Florianópolis.

— Um povo sem memória não existe, né? Ele vai sucumbir diante de outra cultura. Então, é preciso que a gente estabeleça e reconheça isso, tenha orgulho e fale disso cotidianamente, nas escolas, nas famílias, nas reuniões de bairro.  Há dez anos, muitas pessoas não faziam ideia do que era o Rancho de Amor à Ilha, não tínhamos a ponte reaberta. Patrimônio é aquilo que importa ao povo.

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Saiba mais sobre a Ilha da Magia no canal Floripa Faz Bem.