A partir desta segunda-feira, 21, a procuradora Analúcia de Andrade Hartmann deixa de olhar para as águas da Baía Sul, na Avenida Beira Mar Norte, onde fica o prédio do Ministério Público Federal (MPF), para mirar o espelho-d’água do lago Paranoá, em Brasília. Depois de 30 anos atuando em Florianópolis, tendo iniciado a carreira muito jovem, em Chapecó, e com passagem por Joinville, Analúcia assume como procuradora regional na Capital Federal.
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Seja por exercício profissional, militância social ou participação na política, o nome de Analúcia Hartmann sempre vem à cabeça quando se pensa nos principais embates ambientais de Florianópolis dos últimos anos: duplicação de rodovias, construção de grandes empreendimentos, túnel no Morro dos Cavalos, reconhecimento de territórios indígenas e ocupação irregular de área de marinha.
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Com mão firme em defesa do meio ambiente, a procuradora manteve perfil ecologista, feminista e defensor dos direitos humanos e sociais dos povos indígenas e dos quilombolas. Se ao longo dos anos conquistou a confiança, a amizade e o reconhecimento desses segmentos combalidos por injustiças seculares, também é verdade que alguns políticos e empresários colaram rótulos de persona non grata, ecochata, inimiga do progresso e até de prefeita biônica por supostamente “querer mandar na cidade”.
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Para esses, Analúcia foi sempre uma pedra no sapato:
— Quando as pessoas não conseguem vencer na discussão honesta e bem fundamentada, partem para a mentira. Essa colocação de rótulo é uma estratégia política e simplória dos incomodados com a atuação de quem busca salvaguardar um manguezal, um rio, uma área de restinga. O político sabe que é errado, mas libera em área proibida porque o empresário da construção civil mais tarde vai turbinar a campanha eleitoral dele.
Para ela, foi passada uma ideia errada da função de uma procuradora, que é fiscalizar o cumprimento da lei, proteger o patrimônio nacional e garantir os interesses individuais e sociais que fazem parte da Constituição Federal.
— Eu não embargo, eu não proíbo, eu não impeço nada. Eu uso a lei, essa é a minha função, e se não fizer, serei cobrada. Parte da imprensa erra e contribui para essa confusão ao dizer que o Ministério Público determinou tal coisa. É o judiciário que, caso encontre fundamentos, assim como fazem os juízes do Tribunal da 4ª Região e até os ministros do Supremo Tribunal de Justiça, decide o que deve ser feito — alega.
“Sem falsa modéstia, acho que já fiz bastante pela cidade”
Foram mudanças no Ministério Público Federal que levaram a procuradora a aceitar a promoção, a mesma que anos antes havia recusado. O pós-pandemia tornou os processos mais virtualizados e houve modificação no remanejamento dos procedimentos que dizem respeito, principalmente, à Sexta Câmara, que envolve as populações tradicionais.
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— Com essa alteração, não poderia mais atuar nas comunidades indígenas de Palhoça (Território Indígena Morro dos Cavalos) e de Biguaçu (Mbya Biguaçu), trabalho que será absorvido por dois outros colegas. Considerei que a vida familiar está estabilizada e uma nova experiência profissional em uma cidade interessante, como é Brasília — explica.
Ainda que tenha sido uma decisão difícil, tendo em vista o vínculo com os povos originários e quilombolas, é chegado o momento. Considera que o caráter transformador e emancipatório do MPF foi cumprido:
— Acho que já fiz bastante pela cidade, sem falsa modéstia, pelos indígenas, pelos quilombolas. Tem muito mais a ser feito e com esperança de que os colegas que irão assumir façam também. Além disso, tanto os indígenas quanto os quilombolas estão suficientemente organizados, participando de organizações nacionais, principalmente os indígenas, e prontos para fazer a luta sozinhos.
Sob a proteção de São Francisco de Assis, o padroeiro dos ecologistas, e a reza do sábio indígena
Ameaçada de morte, perseguida e difamada do seu dever de função, Analúcia viu seus “guardiões espirituais” compensarem seu físico frágil de mulher com cerca de 1,60 de altura e 55 quilos. É o que responde ao ser perguntada sobre quem cuidava dela enquanto ela mesmo cuidava dos outros.
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— Um deles era seu Alcindo Werá Tupã, um ancião Guarani que nos deixou com 114 anos, em 14 de setembro. Ele mandava eu me cuidar. Às vezes, pedia para eu ir ao encontro dele, em Biguaçu, pois queria me orientar de acordo com sua sabedoria — fala.
Analúcia tem formação cristã. Num dos cantos do gabinete que desocupava em 10 de outubro, uma imagem de São Francisco de Assis, o padroeiro da ecologia. Explica que não chega a praticar, mas respeita as religiões de matrizes africanas e já participou de cerimônias do padre Vilson Groh, no Morro do Monte Serrat, em homenagem à Santa Bárbara, reconhecida na umbanda como Iansã, orixá dos ventos e das tempestades.
Para ela, o padre Vilson faz um trabalho de combate à intolerância religiosa muito bonito na comunidade. Tão humano como padre Júlio Lancelotti, com a população de rua, em São Paulo, a quem também admira.
Confira imagens da procuradora
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Estilo casual, bijuterias indígenas e leitura de jornal impresso
Analúcia é casada com um professor francês aposentado da UFSC, tem uma filha e um enteado que lhe deu netos “emprestados”. O casal mora na Lagoa da Conceição e segue disposto a continuar viajando nas férias, principalmente para a França, onde o companheiro tem suas raízes. Ela tem um hábito que vai manter: tomar café num lugar tranquilo lendo jornal impresso. Os passeios no shopping devem continuar pelas quadras da cidade planejada por Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Assim como as caminhadas e as aulas de hidroginástica. Já as visitas à feira de ecologia da Lagoa, ficarão mais espaçadas. Tanto quanto o pé na areia da praia, onde “lavava a alma no mar”. Pelo jeito, o estilo casual de se vestir seguirá usando os acessórios preferidos: as bijuterias indígenas. O endereço é a Feira de Artesanato da Torre de TV, onde a diversidade cultural dos povos originários é exposta em forma de arte.
Ela conta que, no começo da carreira, em Chapecó, quando houve a festa de demarcação do território Toldo do Pinhal, área indígena do povo Kaingang, ouviu de um grande mestre, o bispo Dom José Gomes (1921-2002), em forma de brincadeira:
— Você já tem um pedacinho de terra no céu.
A jovem procuradora riu, como fez quando leu o cartão que, numa data festiva, chegou-lhe às mãos com uma mensagem feminista: “A humanidade sempre teve medo de mulheres que voam. Sejam elas bruxas, sejam elas livres”. Voe, procuradora.
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