Um projeto de extensão da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) formado apenas por voluntárias irá resgatar os nomes e a história de escritoras brasileiras do século XIX que não estão na Wikipédia, a maior enciclopédia virtual do mundo. O site tem mais de 145 mil verbetes — ou seja, artigos ou páginas que contêm informações sobre um determinado assunto. Das biografias em português presentes no site, somente 20% são sobre mulheres, de acordo com um levantamento de indicador de gênero humano do Wikidata de 2020.

Continua depois da publicidade

Clique aqui para receber as notícias do NSC Total pelo Canal do WhatsApp

O projeto é inspirado pelo trabalho da professora Zahidé Lupinacci Muzart, que dedicou a carreira ao resgate de escritoras brasileiras esquecidas. Em 2025, faz 10 anos que ela faleceu, em Florianópolis, onde lecionava e se aposentou em 1993, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

O projeto, coordenado pela professora Flávia Florentino Varella, do Departamento de História da universidade, usará como base a obra de Muzart “Escritoras Brasileiras do Século XIX”, composta por três volumes. Os livros reúnem 159 autoras e, conforme o levantamento do grupo, 92 delas não possuem verbete na Wikipédia. Apesar disso, nem todas elas poderão ter o verbete criado por não serem consideradas “notáveis” o suficiente, conforme explica Flávia.

— Ainda estamos no processo de pesquisa para verificar a notoriedade de todas elas, mas já sabemos que, por exemplo, a Carmen Freire (Baronesa de Mamanguape) não é notória. Para que exista o verbete na Wikipédia sobre qualquer tópico, é necessário ter ao menos duas fontes confiáveis e independentes sobre ele. No caso de verbetes sobre mulheres, muitos estudos indicam que eles precisam de mais fontes ainda para não serem eliminados na plataforma. Isso faz parte do chamado viés de gênero na Wikipédia. Por isso, estamos tomando bastante cuidado na seleção das mulheres para que depois um editor qualquer não apague o nosso trabalho — esclarece.

Continua depois da publicidade

Por isso, o objetivo do projeto é criar 50 verbetes. No momento, como a seleção das mulheres presentes na antologia da Zahidé já foi feita, as voluntárias começaram a escrever os primeiros.

Duas escritoras catarinenses

Dentre as escritoras que terão a história resgatada, há duas catarinenses: a poeta Maria Carolina Corcoroca de Sousa, nascida em Florianópolis, e Raquel Liberato Meyer, nascida em Itajaí.

O projeto conta com 11 voluntárias, estudantes da graduação, pós-graduação ou doutorado da UFSC, dos cursos de Letras e História. Além de Flávia na coordenação, há a bolsista Pollyana dos Santos Primo, e as redatoras dos verbetes: Andressa Nunes, Alexênia dos Reis Jobim, Anna Letícia de Abreu, Anna Julia Borges Serafim, Diedra Roiz Nadege Jardim, Eliane Silva, Pollyana dos Santos Primo, Priscila Rosa e Tamara Hauck.

“Desesquecer” mulheres

Andressa Almeida Nunes, de 30 anos, é doutoranda em Literatura pela UFSC e uma das voluntárias. Para ela, o projeto vai de encontro com o tema da vida dela.

Continua depois da publicidade

— Acho que não fui eu quem descobriu o projeto, foi ele que me descobriu. Estava prestes a
defender minha dissertação de mestrado sobre as escritoras brasileiras do século XIX, vivendo aquele turbilhão de fim de ciclo, quando comecei a receber, de colegas e até da minha própria orientadora, o cartaz do projeto — compartilha.

Na ocasião, Andressa conta que o foco dela era totalmente a dissertação. Ainda assim, o projeto ficou nela — na cabeça e, sobretudo, no coração.

— Assim que finalizei a defesa, enviei um e-mail para a Flávia dizendo que tinha alguns materiais que poderiam ajudar. Como o prazo de voluntariado já havia passado, achei que minha contribuição poderia ser apenas com o que eu já tinha produzido. Para minha surpresa, recebi um e-mail dela dizendo que eu teria muito a acrescentar e que, inclusive, meu nome já havia sido citado várias vezes lá — conta.

Andressa ficou imensamente feliz. Ela diz que, desde que entrou no mestrado, em 2022, sabia o que queria pesquisar por toda a vida: as escritoras brasileiras do século XIX.

Continua depois da publicidade

— Conheci o trabalho da Zahidé durante as primeiras aulas e soube, ali, que não poderia me dedicar a outra coisa.

Desde setembro do ano passado, Andressa está em Lisboa por meio de uma bolsa de investigação para trabalhar com uma dessas autoras. Na capital portuguesa, ela aplicou para um doutorado com um projeto focado nas autoras, e também se inscreveu na UFSC.

— Fui admitida nos dois programas e, hoje, pesquiso em dois países, dois continentes, aquilo que abracei como missão de vida. Já apresentei trabalhos na Espanha, em Portugal, e, a partir de junho, farei algumas falas no Brasil. Meu objetivo é espalhar esse conhecimento sobre nossas pioneiras literárias — diz.

A principal motivação em participar do projeto, para ela, é o tema de vida que ela carrega no peito: “desesquecer” essas mulheres.

Continua depois da publicidade

— Tornar suas histórias visíveis é a minha maior luta. Não participar seria impossível — declara.

De cima para baixo, da esquerda para direita: Eliane Silva, Priscila Rosa, Pollyana dos Santos Primo, Anna Julia Borges Serafim, Anna Letícia de Abreu, Flávia Varella e Alexênia dos Reis Jobim (lado a lado), Andressa Nunes e Diedra Roiz Nadege Jardim (Foto: Arquivo Pessoal)

Resgatar a memória como processo de “dar dignidade”

Anna Leticia de Abreu, de 22 anos, é outra voluntária. Graduanda em Letras Língua Portuguesa na UFSC, ela é professora e uma das coordenadoras do projeto gratuito de aulas de redação e gênero textuais, o RedaPET, uma extensão do PET-Letras UFSC. A estudante conta que conheceu o projeto por um convite da pesquisadora Priscila Rosa Martins, doutora em Ciência da Informação.

— Conheci a Priscila por um acaso gentil, durante um evento, [onde] comuniquei brevemente com ela sobre o meu interesse em literatura feita e escrita por mulheres, bem como o papel da memória e o nosso papel como resgatadoras dessas. Assim, trocamos contato e, entre idas e vindas, fui convidada para participar desse projeto lindo da Flávia, que além de ter tanta bagagem, é uma mulher incrível que nos acolheu muito bem com um café passado e muita vontade de fazer acontecer — conta.

As discussões do grupo sempre perpassam o espaço on-line, de acordo com Anna.

— A memória não é uma ponte que conecta dois pontos distintos no tempo, a memória é o meio através do qual o passado é explorado. Resgatar a memória é um processo de dar dignidade à história das pessoas, quando se trata de mulheres, esse trabalho é mais árduo e ganha tom importante — afirma.

Continua depois da publicidade

Para ela, o papel do projeto ao resgatar a história das escritoras é devolver parte do prestígio que elas merecem.

No fim do ano, os 50 verbetes já estarão publicados, de acordo com a coordenadora do projeto. Na próxima semana, dois já estarão na Wikipédia: um sobre Ana Facó, escritora, poeta, professora e dramaturga brasileira e outro sobre Luiza Leonardo, musicista, compositora e atriz.

*Sob supervisão de Andréa da Luz

Antonietas

Antonietas é um projeto da NSC que tem como objetivo dar visibilidade a força da mulher catarinense, independente da área de atuação, por meio de conteúdos multiplataforma, em todos os veículos do grupo. Saiba mais acessando o link.

Leia também

Salários das mulheres são 20% inferiores aos dos homens no Brasil, aponta relatório

Fotos antigas e objetos contam as histórias das mulheres marcantes de Lages

Quem é a pilota pioneira que divide as pistas com o pai em SC