De um lado, a Lei do Alimento Mais Seguro. De outro, o Pacote do Veneno. Denominações tão diversas para o mesmo projeto de lei, o PL 6299/2002, que flexibiliza a regulação de agrotóxicos no Brasil, dão o tom dos debates que cercam o assunto. Uma queda de braços entre o setor ruralista e entidades de saúde e ambientais, que ganhou força diante da aprovação preliminar do projeto no mês passado, em Comissão Especial no Congresso.
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Para os agricultores, os pesticidas são os responsáveis pela redução de custos em uma atividade que sofre o ataque das pragas, a instabilidade climática e o alto preço dos insumos. Uma visão de negócios favorecida por um amplo projeto de incentivo ao uso de agrotóxicos implantado pelo governo brasileiro, na década de 1970, para potencializar a produção.
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O uso do veneno, no entanto, tem um preço alto para a saúde e o meio ambiente. Segundo dados do Centro de Informações e Assistência Toxicológica de Santa Catarina (Ciatox-SC), no ano passado o Estado registrou, 1,8 caso de intoxicação aguda por agrotóxico por dia. Foram 685 em 2017, com 32 mortes – um óbito a cada 11 dias.
As estatísticas correspondem apenas aos casos de superexposição aguda ao pesticida. A estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) é que para cada notificação, outras 50 deixam de ser feitas. E essa é apenas uma parte do problema.
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Estudos recentes demonstram que doenças crônicas e silenciosas, cada vez mais comuns, podem ser causadas ou agravadas pelo excesso de agrotóxicos. Pablo Moritz, médico do Ciatox-SC, lista cânceres como leucemia e linfoma, quadros de depressão, autismo, déficit de atenção, nódulos na tireoide, infertilidade e malformações em crianças entre os diagnósticos já apontados em pesquisas no mundo todo como consequência dos produtos utilizados para controlar pragas.
– O grande problema é a exposição crônica. E não há números sobre isso, porque não é notificado. Os estudos que mostram essas relações são da última década, e isso não está bem sedimentado entre as pessoas que atendem esses casos – diz.
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O agrotóxico aplicado no campo também chega à mesa. No ano passado, 18% dos produtos analisados pelo programa Alimento Sem Risco, do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), eram impróprios para o consumo devido à contaminação com excesso de pesticidas. Outros 54% apresentaram resíduos, embora estivessem dentro dos padrões aceitáveis.
O programa avalia anualmente 670 amostras de verduras, frutas e legumes em busca de agrotóxicos. Metade é coletada diretamente no campo, e metade em supermercados. Embora o índice de contaminação ainda seja alto, ele já foi bem maior. Em 2011, quando foram feitas as primeiras análises, um terço dos alimentos avaliados apresentaram problemas.
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– A população que manipula agrotóxicos pode estar exposta tanto às intoxicações agudas como crônicas, e essas são as que mais nos preocupam. A pessoa acaba tendo contato com produtos químicos perigosos, que podem influenciar na condição de saúde e piorar um quadro de depressão, por exemplo. Imaginamos, por todo o trabalho que já existe sobre a população no campo, que (esses problemas) possam ocorrer com a população em geral – alerta o sanitarista Eduardo Macário, diretor de Vigilância Epidemiológica em Santa Catarina (Dive).
O agricultor Sergio Bett, 51 anos, recebeu um diagnóstico de hepatite antes de descobrir que a lesão que tinha no fígado era resultado de uma intoxicação crônica, causada pelas aplicações de herbicida para controlar o mato, em Itajaí. Há três anos, desde que confirmou o diagnóstico definitivo da doença, ele passou a fazer uma nova bateria exames de sangue a cada três meses para acompanhar a evolução do quadro.
Produtor de arroz, em casa ele planta uma horta orgânica variada, e desconfia de outras culturas que têm o ciclo de aplicações bem mais curto do arroz, por exemplo, mas usam o mesmo tipo de agrotóxicos _ caso do tomate e do pepino. O trabalho na arrozeira continua, mas as eventuais aplicações de pesticida, hoje, quem faz é o irmão. Segundo ele, não é possível abrir mão do método.
– Se não passar o agrotóxico, não se colhe nada – afirma.
Embora tenha sentido os efeitos crônicos dos produtos usados na lavoura, Bett é a favor de mudanças na lei que regula os agrotóxicos. A legislação atual é da década de 1980, e sofreu alterações ao longo dos anos. O projeto original que flexibiliza a regulação foi apresentado no Senado pelo atual ministro da Agricultura, Blairo Maggi, em 2002.
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A proposta atual, que vai à votação, é um pacote com diversos projetos de lei apresentados nas duas últimas décadas sobre o assunto. O texto altera a denominação dos agrotóxicos para “pesticidas” e dá mais poder ao Ministério da Agricultura nas aprovações de novos defensivos- hoje, há paridade entre Agricultura, Ministério da Saúde e do Meio Ambiente.
Como Bett, a maioria dos agricultores que trabalha com pesticidas alega que há produtos novos, mais eficientes e seguros, que ainda não foram certificados no Brasil – e que poderiam ser introduzidos mais rapidamente se as alterações forem aprovadas. O argumento a favor da mudança na legislação é endossado por órgãos como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que emitiu parecer apoiando o projeto de lei.
Por outro lado, entidades ambientais e de saúde como o Instituto Nacional do Câncer (Inca) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ligados ao Ministério da Saúde, questionam as alterações e alegam que elas darão brecha a uma entrada massiva de produtos que hoje ainda são proibidos no Brasil – alguns deles com alto risco de provocar doenças como o câncer, segundo o Inca.
– Há várias inconstitucionalidades. Uma delas, bastante perigosa, tira dos estados a possibilidade de restringir mais do que a lei federal. Outro problema é que o registro de novos agrotóxicos não deve ser rápido, são necessários estudos de longo prazo – avalia a promotora Greicia Malheiros Souza, do Centro de Apoio Operacional do Consumidor no MPSC.
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