A blumenauense Fernanda Von der Hayde não é do tipo que desiste fácil. Já correu 42 quilômetros sob o sol, pedalou outros 180 sob vento contrário e nadou quase 4 mil metros em mar aberto. Fisioterapeuta, ex-professora universitária e triatleta, ela conhece o limite humano e o ultrapassou mais de uma vez. Mas, nos últimos anos, a maratona passou a acontecer dentro do próprio corpo. Uma corrida de resistência contra a dor, a rigidez e o próprio tempo, desafios impostos por uma série de doenças autoimunes e incuráveis.
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Fernanda foi diagnosticada com espondiloartrite axial, antigamente conhecida como espondilite anquilosante, que é uma doença inflamatória crônica que enrijece as articulações e não tem cura. Começa no quadril e sobe até a coluna lombar, dorsal e cervical. No pacote, vieram também psoríase, disautonomia, neuropatia de fibras finas e lipedema. Cinco doenças crônicas, duas autoimunes, todas incuráveis. Aos 45 anos, todas as manhãs ela precisa travar a mesma batalha: convencer o corpo a se mover. O simples gesto de levantar da cama exige estratégia: primeiro as pernas, depois o tronco, por fim, o resto devagar, como quem tenta negociar com cada vértebra para cooperar.
— Sinto dor 24 horas por dia. Além da espondiloartrite, tem essa dor articular, a neuropatia de fibras finas e a disautonomia, que são sistêmicas. Elas afetam outros órgãos, a pressão arterial, frequência cardíaca e respiratória, sudorese, sistema urinário e intestinal. Então, mexe sistematicamente com todos os órgãos do corpo. Tomar banho já é um grande efeito do meu dia, sabe? São dias e dias — relata a blumenauense.
Confira algumas fotos da jornada de Fernanda
Uma mudança de 360 graus
O esporte entrou na vida de Fernanda em 2014, primeiro através da corrida, depois veio o triathlon no ano seguinte, que é um circuito de competições de longa distância. Em 2017, ela completou o primeiro Ironman, o mais difícil do mundo, com 3,8 quilômetros de natação, 180 quilômetros de ciclismo e 42 quilômetros de corrida. Um mês depois, quando ela já havia se inscrito para o segundo triathlon aos 36 anos, veio o diagnóstico.
— Estava numa época de triatleta, no auge da profissão que eu amava e estava no corpo que queria, na fase que queria e treinando o quanto queria. A doença autoimune ela tem muito disso. Ela não vem quando tu já está envelhecendo, ela vem quando você está no auge da vida, e a minha vida mudou 360 graus. Tive que aprender a recomeçar, sendo que não era mais dona do meu corpo — explica Fernanda.
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Por conta das cirurgias na coluna, ela precisou parar de atuar como fisioterapeuta e passou a ser professora na Universidade Regional de Blumenau (Furb), na qual se formou e agora atuava como colega dos professores que a formaram.
— Eu dava aula tanto em sala de aula quanto dentro da UTI nos hospitais, e uma das disciplinas era reumatologia. Ensinava sobre a espondiloartrite axial em sala de aula. Então, quando comecei a ter os primeiros sintomas, percebi muito rápido o que era. A vida é muito louca. A doença que eu ensinava, acabei sendo diagnosticada — lembra.
Hoje, Fernanda vive com 12 parafusos na coluna, resultado de sete cirurgias. Já fez três artrodeses, passou por infusões de imunoglobulina e encara injeções mensais de imunobiológicos. Em alguns dias, a dor é tanta que nem a morfina dá conta. Semana sim, semana não, ela está no hospital para o tratamento, que causa efeitos colaterais que chegam a durar dias sem poder levantar da cama.
— Brinco que vou contar no calendário quantos dias do mês tenho bons, em que eu posso dizer: “Não, nesse dia, eu sou a Fernanda” — desabafa.
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A espondiloartrite é traiçoeira porque, além de prejudicar fisicamente em todos os sentidos, traz estigmas e preconceitos sociais. A fisioterapeuta explica que é uma doença “invisível” porque não deixa marcas externas visíveis, fazendo a dor parecer uma ficção particular para quem não sente.
— Além de sofrer com a doença, a pessoa tem que sofrer com o preconceito de quem acha que é um drama. Se estivesse sangrando, a pessoa acreditaria que está doendo, mas como não está, a maioria sofre um preconceito tanto no trabalho, com os amigos e em casa, do próprio cônjuge. Escute e tenha empatia, se coloque no lugar e na dor do outro, porque a pessoa já está passando por um diagnóstico muito difícil, não precisa ainda ser desacreditada — expressa Fernanda.
Ao falar sobre o marido, faz uma pausa e o tom firme dá lugar à gratidão. Fernanda e Jean Carlo Hayde estão juntos desde 2003, provando que o amor resiste a todos os desafios. Se conheceram pouco depois da primeira cirurgia na coluna de Fernanda e, desde então, ele “comprou o combo todo”, como ela costuma brincar. Jean é quem a acompanha em cada infusão, cada consulta e cada internação.
— Eu dei muita sorte porque, infelizmente, a maioria dos pacientes, quando tem um diagnóstico de uma doença sem cura, acabam sozinhos porque é um diagnóstico e um tratamento difícil. É um dia a dia difícil. E, graças a Deus, fui abençoada de ter um companheiro que está comigo e que vai em todas as consultas, injeções e cirurgias. A gente está sempre junto em tudo — conta com a voz embargada.
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Rede social como sala de aula e rede de apoio
Apesar das dificuldades e, ao contrário do que muitos fariam, Fernanda não se aposentou ou deixou ser intimidada pelo diagnóstico. Ela transformou a dor em projeto. Desde o início, transformou as redes sociais em sala de aula. Começou com um blog, criou um Facebook, que se expandiu para o YouTube, converteu para o Instagram e agora ela está até no TikTok. Em 2018, virou protagonista do documentário “Anything is Possible: a história da triatleta Fernanda Hayde”, disponível do YouTube.
Nas redes, fala de forma clara, explica facilmente sobre as doenças complexas, que geralmente tem nomes tão complicados que as pessoas desistem até de entender o conceito, e desabafa sobre a realidade de quem precisa viver com elas. Fernanda traduz exames, sintomas, tratamentos e o vocabulário médico com a leveza de quem domina o assunto.
— Percebi que se para mim, que entendia sobre o prognóstico da doença, sintomas, tratamento e o quadro clínico, é um diagnóstico difícil, eu imaginava como seria para uma pessoa leiga, que nunca ouviu o que é uma doença autoimune — esclarece.
Nas publicações, os comentários esbanjam gratidão e a maioria vem junto de relatos pessoais dos seguidores, que também batalham com doenças autoimunes ou são próximos de alguém que também tenha elas. Uma seguidora escreveu: “Continue nos ajudando, Fernanda. Você é inspiração e luz para nós. Temos dias bons e dias muito ruins. O importante é que continuamos lutando. Fique bem, abraços”, deixando claro que é um lugar seguro e de apoio.
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— Tenho duas opções: me entrego, o que é pior para mim e para quem está ao meu redor porque vão sofrer mais ainda, ou continuo lutando. E eu amo demais viver, amo as pessoas que tenho ao meu redor, tenho um casamento feliz, uma família que está sempre comigo… Não teria por que me entregar, acho que tenho muito para lutar, até porque tenho acesso a muitas coisas que os outros não têm. E é isso que me faz estar na internet e tentar mostrar para as pessoas que tem um outro caminho. Para mim, lutar é uma obrigação — confessa.
A rotina dela é medida em escalas de dor. Entre uma infusão e outra, anota no calendário os dias bons, em que consegue ser “ela mesma”. O esporte, que um dia foi pura paixão, virou também sobrevivência por ser tão importante quanto o medicamento. Ela já não compete com outros atletas, mas com o próprio corpo, com a rigidez que tenta lhe roubar o movimento. A paciência e resiliência são qualidades que Fernanda conhece muito bem e domina. A saúde física não é a única que Fernanda cultiva, a mental também exige cuidado e ela aconselha:
— Entendi que também precisava ter o tempo de chorar pelos diagnósticos, precisava ter o tempo de entender que não era obrigada a aceitar aquilo tudo e achar que era normal. Podia chorar e me revoltar, mas depois precisava unir ali os meus soldados para tentar manter essa batalha da melhor forma possível, já que não tenho como curar, mas posso tentar controlar ao máximo. Como ser humano, acho que toda doença vem para te ensinar. Problemas vêm para ensinar e, se a gente não para e aprende, vão continuar se repetindo.
Quando fala com pacientes recém diagnosticados, costuma repetir uma frase que virou mantra pessoal e inspiração para diversas pessoas.
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— Sempre digo que o diagnóstico não é destino. Eu não sou a espondiloartrite axial, não sou a psoríase. Eu sou a Fernanda, que tem isso e tem aquilo, mas não sou essas doenças — afirma.
É essa convicção que a mantém em pé. Porque, no fundo, Fernanda continua competindo. Só que agora a linha de chegada é outro nome para o dia seguinte.















