Ansiedade, cansaço, dificuldade para se concentrar tanto em tarefas simples quanto em que exigem mais atenção e perda de memória. Esses são alguns dos sintomas que quase 19% da população brasileira sente tanto tempo depois da infecção pelo vírus da Covid-19. É o que diz o estudo “Epicovid 2.0: Inquérito nacional para avaliação da real dimensão da pandemia de Covid-19 no Brasil”, apresentado pelo Ministério da Saúde no final de 2024.
Continua depois da publicidade
Clique aqui para receber as notícias do NSC Total pelo Canal do WhatsApp
Em Santa Catarina, ainda não há uma estimativa de quantas pessoas estão nesta condição, mas unidades de saúde, como o Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago, em Florianópolis, registram e acompanham pessoas que procuram atendimento por causa da chamada síndrome pós-covid.
Professora de Educação Física, a catarinense Alzira Isabel da Rosa foi uma das primeiras vítimas do vírus no Estado, e viu a vida mudar completamente após a doença. Para ela, hoje com 58 anos, parece que o corpo, o cérebro e o psicológico foram trocados depois do dia 19 de março de 2020, quando precisou ir a um hospital da rede privada e recebeu a notícia de que o pulmão estava praticamente 100% comprometido. Ainda não era confirmado que seu caso era Covid-19.
Natural de São José, Alzira era professora de educação física e precisou fazer uma viagem a trabalho para Foz do Iguaçu, no Paraná, pelo Conselho de Educação Física, em janeiro. Lá, ela permaneceu por uma semana e voltou para Santa Catarina no final do mês, se sentindo mal e com sintomas de gripe. Com febre e coriza, classificada como uma “uma gripe muito forte”, Alzira resolveu ir ao médico, onde foi diagnosticada com gripe A, causada pelos vírus H1N1 e H3N2.
Continua depois da publicidade
Ela, então, tomou os remédios repassados pelo profissional de saúde, típicos para curar uma gripe, e ficou bem. Quinze dias depois, porém, Alzira voltou a se sentir mal, novamente com sintomas gripais, com muita febre. No consultório médico, o diagnóstico: faringite.
Ela tomou os remédios de novo, mas toda semana a febre ou algum outro sintoma voltava a atormentar a vida da professora. Ao todo, ela esteve no hospital cinco vezes, sempre com o diagnóstico de alguma infecção relacionada à gripe.
Como se sentia bem para trabalhar e não recebia atestados de afastamento, Alzira continuava a lecionar, mas no dia 15 de março, tudo piorou. A febre aumentou, a garganta não passava uma gota de saliva e de ar e, no trabalho, a chefe disse: “Alzira, você está muito vermelha, quase roxa. Vai para o médico”.
Ela não obedeceu às ordens da chefe e apenas tomou remédio para que a febre baixasse. Quatro dias depois, quando não estava mais aguentando de dor de garganta, mas não apresentava febre, voltou ao hospital. Lá, o médico pediu um exame de raio-x e, para sua surpresa, ouviu palavras que jamais achou que ouviria.
Continua depois da publicidade
— O meu filho estava comigo e o médico disse para ele: “te afasta. A tua mãe está com 100% do pulmão tomado e a gente acredita que é Covid-19” — ela lembra.
O filho não entendeu nada, sem saber direito o que era o vírus, assim como a mãe. A partir da constatação, Alzira foi levada para uma sala de isolamento, onde permaneceu por três dias. Ali começaram os traumas que vive até hoje e que a fazem precisar de remédios para conseguir deitar a cabeça no travesseiro todas as noites e dormir. Ela conta que precisou ficar com os pés e mãos amarrados por causa dos remédios que eram conferidos a ela, com muitos efeitos colaterais, principalmente psicológicos.
— Davam crises muito grandes, de querer fugir, de querer ir embora, de ter visões duplas e de imaginar coisas — diz.
Depois de três dias na sala de isolamento, ela recebeu o diagnóstico de Covid-19. Quando ouviu novamente o nome palavra,, ela percebeu que não tinha nenhuma noção do que era a doença e que ao ver na televisão, imaginava que “não era nada”.
Continua depois da publicidade
Alzira, então, foi direto para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). Lá, ela foi entubada, para continuar respirando. Foram 16 dias em coma induzido, somando 35 dias ao total. Alzira diz que, durante esse período, a família foi chamada diversas vezes na UTI, com o argumento de que “ela não tinha mais chance nenhuma de sobreviver”.
A professora é uma mulher de fé, assim como todas as pessoas da família. Por isso, foram feitas correntes de oração durante os chamamentos da equipe médica para uma possível despedida. No entanto, ela não foi necessária. Alzira sabia que sobreviveria desde o começo. Na verdade, ela diz que essa era uma das únicas certezas que tinha, de que não morreria.
— Eu acredito também que tenha sido um grande milagre. Eu fui uma sobrevivente da Covid-19 — afirma.
Alzira ainda teve três paradas cardíacas depois que saiu da UTI, e foi para casa alguns dias depois, de cadeira de rodas. Porém, a história dela com a Covid-19 estava apenas começando. Foram quase três meses para conseguir retomar a vida, no sentido de iniciar, de fato, as fisioterapias para buscar a melhora. O lado esquerdo do corpo de Alzira foi o mais afetado e, até hoje, ela diz que não tem sensibilidade na coxa.
Dores físicas, raciocínio lento e autoestima impactada marcam vida de quem teve Covid
Na pandemia da Covid-19, algumas pessoas eram consideradas com mais risco de serem atingidas pela forma grave da doença. Eram chamadas pessoas com comorbidades aquelas que tinham doenças renais crônicas que faziam diálise, gestantes e puérperas, e idosos, por exemplo. Alzira não se encaixava em nenhuma dessas e das outras opções que a faziam ser parte de um público de risco.
Continua depois da publicidade
Mesmo assim, a doença a atingiu em cheio, não só na UTI e no hospital, mas fora dele. Por isso, ela teve que adaptar a rotina. As atividades físicas sempre fizeram parte da vida de Alzira, mas ela teve que considerar outros tipos de exercícios, considerando a sua nova realidade, como a hidroginástica, que auxilia pacientes que estão em reabilitação a fortalecer o corpo. No caso de Alzira, a dormência na perna ainda é um obstáculo que continuará sendo enfrentado por algum tempo.
Enquanto tentava voltar a ter uma vida normal, Alzira viu, assim como outros catarinenses, o Estado decretar situação de calamidade pública em decorrência da pandemia de Covid-19. Foi no dia 19 de abril de 2020, com o decreto se estendendo por um longo período. Naquela data, 30 pessoas já haviam morrido por causa do vírus, enquanto 926 estavam infectadas pela doença.
Alzira precisou buscar um neurologista para investigar vários sintomas que antes não sentia em seu corpo, como dores fortes que podem caracterizar uma fibromialgia. É o que também sugere a pesquisa “Um estudo transversal de fibromialgia e síndrome pós-COVID-19 aguda (PACS): pode haver uma relação?”, publicado no National Library of Medicine em 2023, realizado com 404 pessoas.
Segundo o estudo, sintomas como fadiga, mialgia, artralgia e disfunção cognitiva, comuns em pacientes com fibromialgia, também são características presentes em pessoas que se recuperaram da Covid-19. Além disso, o estudo ainda sugere que as mulheres são as mais propensas a desenvolver fibromialgia depois de ter contato com o vírus.
Continua depois da publicidade
— As dores nunca pararam, elas só se agravaram mais. Eu só aumentei os remédios, as terapias naturais junto com os remédios, com as medicações e uma cabeça boa, com fé — desabafa.
A memória de Alzira também nunca mais foi a mesma. Totalmente ativa em 2019, hoje ela não consegue ler um livro curto em um mês. Com a ajuda de um neurologista, ela recebeu a notícia de que a Covid-19 pode ter causado isquemias neurológicas, ou seja, confusão mental, e dificuldade em realizar tarefas simples do cotidiano.
— Existe uma dificuldade no processo de pensamento com a linguagem falada. Quando eu vou processar a informação, o meu processamento ficou mais lento. Uma professora com 33 anos de trabalho, que era muito rápida, ficou assim — conta.
A autoestima de Alzira também foi completamente impactada pela queda de cabelo constante e pelas unhas quebradiças. Ela lembra que os cabelos foram caindo em chumaços, como mais um sintoma da pós-Covid.
Continua depois da publicidade
— Não é fácil. Eu sou uma antes, e outra após a Covid — lamenta.
Em 2020, ano em que Alzira foi internada, mais de 5.161 morreram vítimas da doença em Santa Catarina, enquanto em todo o Brasil foram registradas 192.792 mortes pelo Coronavírus. Naquele momento, o estado tinha uma taxa de mortalidade de 72,03 casos a cada 100 mil habitantes, segundo a Diretoria de Vigilância Epidemiológica. A professora perdeu um cunhado para a doença e não pôde comparecer ao enterro do marido de sua irmã por estar infectada novamente.
Veja fotos de Alzira
Ansiedade e cansaço são sintomas mais citados
Os sintomas mais comuns mapeados pela pesquisa “Epicovid 2.0: Inquérito nacional para avaliação da real dimensão da pandemia de Covid-19 no Brasil” foram ansiedade (33,1%), cansaço (25,9%), dificuldade de concentração (16,9%) e perda de memória (12,7%).
Esses também são alguns dos principais sintomas observados pela médica pneumologista Rosemeri Maurici, que acompanha a recuperação diária de pacientes pós-covid no Hospital Universitário da UFSC. Ela conta que muitos pacientes apresentam sequelas que dificultam atividades simples do dia a dia, como se sentar e se levantar de uma cadeira.
Continua depois da publicidade
— O indivíduo fica com limitação para realizar atividade física por conta de uma lesão pulmonar que não se resolveu de forma adequada durante aquele tratamento agudo. Normalmente, esses casos são oriundos de pacientes que estiveram na UTI e sob ventilação mecânica — explica Rosemeri.
Todos esses sinais foram observados ainda durante o período da pandemia, quando foi realizada uma avaliação de pacientes que, após seis meses do fim da infecção, permaneciam com sintomas “em detrimento de outros que melhoravam quase que totalmente”.
Viúva pela Covid-19, irmã também sofre efeitos
A Covid-19 atingiu em cheio a família de Alzira. Sua irmã, Rita de Cassia Rosa Guimarães, também precisou ser internada por causa da doença, quase exatamente um ano depois da professora de educação física.
Rita e seu João Alberto Bicca Guimarães, casados há 42 anos, resolveram fazer uma viagem de carro para Porto Alegre e, na volta, um acidente deixou marcas e fraturas no corpo de ambos. O marido dela fraturou as costelas e a técnica de enfermagem aposentada machucou os seios. Naquele momento, Rita diz que eles só não morreram porque “Deus não quis”, tamanha a gravidade.
Continua depois da publicidade
Depois de todos os trâmites no hospital, com exames, avaliações e tratamentos por uma semana, o casal começou a sentir alguns sintomas estranhos. Perda de apetite, fraqueza, sabor e cheiro das coisas modificados… A filha dos dois achou importante ir ao hospital, achando que poderia ser algo relacionado ainda ao acidente. Antes, foram em um farmacêutico que mediu a oxigenação no sangue de Rita: estava baixíssima.
Foi quando todos correram para a unidade hospitalar. Em um primeiro momento, quando em média 98,1% dos leitos de UTI estavam ocupados, com mais de 980 pessoas internadas na rede pública, a médica que lhe atendeu não queria internar Rita. Voltaram, então, para casa, mas o quadro de saúde dela só piorou.
A filha de Rita a levou para o hospital novamente, enquanto João foi apenas depois, quando piorou repentinamente. Na emergência da unidade, foi confirmado que ambos estavam com Covid-19. Dali, Rita foi internada e seu marido foi para um quarto para ficar em observação, já que apresentava sintomas parecidos com o da esposa.
— Eu fiquei ruim, fiquei meio agitada. Estava lá na cama, eles primeiro levaram meu marido. Dali, eu não vi mais ele — conta.
Continua depois da publicidade
Os dias passaram: cinco, 10, 14 dias na UTI, entubada, até que Rita finalmente pôde acordar do coma e ser extubada. Até então, o que ela sabia é que seu marido estava bem, no quarto, mas sua filha lhe trouxe para a realidade:
— “Não, mãe, o pai está na UTI há alguns dias, mas ele está bem”. Mas ele não estava bem, os médicos já até tinham desenganado ele.
Rita recebeu alta no dia 19 de março de 2021, e precisou sair de cadeira de rodas, já com uma sequela na perna esquerda, assim como sua irmã, enquanto o marido permaneceu no hospital. Até que os médicos disseram que ele havia melhorado e que iam tentar extubá-lo. A esperança de Rita de que o marido voltasse para casa, ao lado dela, encheu o coração de alegria.
Até que ela recebeu uma ligação do hospital, convocando toda a família para comparecer ao leito. No dia 22 de março, João morreu, vítima da Covid-19, aos 64 anos.
Continua depois da publicidade
— Eu fiquei em choque. A vida da gente, tudo numa boa, a gente está bem… De repente, acontece isso — lamenta.
Luto e limitações para seguir a vida
A partir daquele dia, a vida dela virou de cabeça para baixo. Além de ter que enfrentar a morte do marido, Rita ainda tinha que lidar com as próprias limitações causadas pela doença. Ela lembra que ficou completamente dependente dos filhos, usando fraldas, andando dentro de casa apenas com cadeiras de rodas. Além disso, também passou quase sete dias sem dormir direito, precisando de um remédio para dormir, associado a um antidepressivo que a acompanha até os dias atuais.
Outras sequelas, como queda de cabelo, ainda fazem parte da vida de Rita, que também teve um AVC em 2024 e um infarto alguns anos antes de contrair o vírus. Hoje, ela conta que está bem, mas que um problema no coração está sendo investigado, com acúmulos de placas de gordura na carótida que já tinham sido detectadas antes da Covid-19, em menor quantidade. Médicos suspeitam que o vírus pode ter ajudado a condição a piorar. Atualmente, ela está com 80% de placa na carótida esquerda e 30% na direita. Semana passada, ela precisou fazer um cateterismo e uma angioplastia para tratar o problema, aos 67 anos.
— Nós notamos que evoluiu muito as placas. Então, a gente tem uma desconfiança que, como a Covid afetou a parte vascular de muita gente, pode ter sido isso — relata.
Continua depois da publicidade
Assim como o falecido marido, Rita também tem diabetes tipo 2, e faz exames periodicamente para manter a doença sob controle.
— Eu sempre digo que eu quero ficar por último na fila, sabe? Porque, apesar dos pesares, a vida é bela. Deus já me deu duas chances, quando eu tive o Covid e quando eu tive o AVC, então agora eu tenho que me cuidar — aceita Rita.





