Há uma revolução em curso na área de diagnósticos de doenças. Graças às descobertas do Projeto Genoma Humano, concluído em 2003, a medicina entra em uma nova era. Os avanços permitem às pessoas fazer exames genéticos para verificar a propensão a determinadas doenças, que passam a ser tratadas de forma antecipada. A novidadade é o acesso cada vez mais facilitado a esse tipo de serviço. Hoje já é possível fazer o teste do futuro até pelo correio e por valores que, embora ainda elevados, despencam com a rapidez das novas tecnologias médicas.
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Em outra ponta, surgem as terapias personalizadas. A indústria farmacêutica passa a utilizar o conhecimento genético para desenvolver medicamentos direcionados para subtipos de doenças que acometem grupos específicos de pacientes. Esse tratamento mais individualizado ainda é incipiente, mas ajuda a projetar o futuro da medicina.
Via postal e sob medida
Não confunda com um mapa astral, mas ele indica doenças que você pode ter na vida, comportamentos a evitar e descreve suas características pessoais. Esse é o resultado de um estudo personalizado de DNA.
No passado, esses exames chegaram a custar US$ 20 mil. Agora são oferecidos por US$ 1 mil. Pela internet, você acessa um dos sites que oferecem o teste, paga usando um cartão de crédito e recebe pelo correio um kit para coleta de DNA. O deCODEme.com é um exemplo de empresa que aceita pedidos de brasileiros e solicita apenas que o cliente colete células da mucosa bucal e envie essas amostras pelo correio.
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Essa nova era da medicina, propiciada pelas descobertas do Projeto Genona Humano, concluído em 2003, também provoca uma revolução na indústria farmacêutica, que, cada vez mais, passar a utilizar o conhecimento genético para desenvolver medicamentos direcionados para subtipos de doenças que acometem grupos específicos de pacientes.
No caso do teste genético oferecido pela internet, a metodologia usada não permite uma leitura completa do genoma. A empresa analisa os chamados polimorfismos de nucleotídeo único ou SNP – algo como um erro de cópia na modificação de uma única letra, na sequência genética. Para alguns cientistas, nessas mudanças estaria a chave para entender as diferenças entre as pessoas. Os testes analisam cerca de um milhão de polimorfismos, enquanto que o genoma carrega cerca de 30 milhões.
O médico Sérgio Pena do Gene – Núcleo de Genética Médica em Belo Horizonte, um dos maiores especialistas na área no país, decidiu testar um desses serviços oferecidos pela internet. Ele enviou uma amostra à empresa islandesa deCODEme Genetics. Por US$ 985, o deCODEme realizaria uma avaliação do risco genético para algumas doenças comuns. O kit com a coleta do material foi enviado pelo correio.
Além de informar sobre a cor dos olhos, grupo sanguíneo, tolerância à lactose e ao álcool, o relatório apontou que o médico tem um risco 1,08 vezes maior do que o da população geral para desenvolver doença renal crônica, 1,4 vezes para obesidade, 1,4 vezes para asma e artrite reumatoide. Ele recebeu informações que considerou úteis:
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– Caso eu tome o medicamento estatina para baixar o colesterol, o meu risco de complicações musculares será mínimo e, caso eu tome o anticoagulante warfarina, a minha dose inicial poderá ser normal, pois não tenho hipersensibilidade ao fármaco, o que poderia trazer o perigo de uma hemorragia – pondera o médico.
Leia artigo do médico publicado na web
Como Pena, a médica Fernanda de Lima, do Hospital Albert Einsten, mostra preocupação quanto à validade do exame. Ela explica que o relatório da genotipagem é apoiado em estudos de amostras populacionais específicas e nem sempre se aplica a qualquer população. Por isso, esses testes estão sendo muito discutidos em encontros internacionais de medicina genética nos Estados Unidos e na Europa.
– Os testes não são de todo inválidos, eles devem ser tratados com cuidado, em especial, quando aplicados a pessoas que não fazem parte da população onde a amostragem foi feita – diz Fernanda.
Pena ressalta ainda a importância de reconhecer os exames que têm validade científica e utilidade clínica. No Brasil há uma série desses testes em laboratórios já reconhecidos.
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Medicamentos se tornam personalizados
Identificar a dose correta para o paciente é uma das aplicações práticas de um conceito mais amplo desenvolvido a partir das descobertas genéticas: a medicina personalizada. Há pelo menos dois caminhos em evolução: desenvolver testes que determinem a reação de medicamentos existentes nos diferentes tipos de pacientes e apontar biomarcadores para produzir drogas para subtipos de doenças.
Essa área de pesquisa começou ainda na década de 50, mas recebeu pouca atenção. A indústria estava focada em encontrar o medicamento mais eficiente para determinada doença, não para pacientes. Hoje, as novas terapias começam a funcionar com remédios produzidos para um grupo acometido pela mesma doença. Os resultados de pesquisas baseadas em subtipos de pessoas podem substituir o modelo de um medicamento para todos – um foco mais generalista – pelo de um medicamento para cada grupo de pacientes – um foco mais específico.
Essa nova forma de medicar promete a redução do sofrimento dos pacientes com efeitos colaterais e de equívocos em tratamentos. Pesquisas mostram que um medicamento pode não ser eficiente para até 75% dos pacientes. Esse resultado coloca a indústria farmacêutica no papel do paciente que busca no consultório médico uma cura para sua deficiência. Nos Estados Unidos, o número de óbitos por reações adversas chega a 100 mil pacientes por ano.
Para estancar essa ferida aberta na medicina, muitos medicamentos, especialmente para câncer, chegam ao mercado com a exigência de um teste de diagnóstico que atestará ao médico se o paciente tem o conjunto genético correto para responder ao tratamento.
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O biólogo brasileiro Everton Nogoceke, que mora na Suíça, trabalha hoje com o desenvolvimento de terapias inovadoras que consideram as diferenças biológicas entre os pacientes. Esses estudos partem da definição de biomarcadores.
O mais conhecido deles é o gene receptor HeR-2, descoberto nos anos 1980. Entre 20% e 30% das mulheres com câncer de mama têm o receptor nas células cancerígenas. O anticorpo trastuzumab, chamado no mercado de Herceptin, foi desenvolvido para combater o HeR-2 especificamente nestes pacientes identificados. O resultado foi uma redução na proliferação das células cancerígenas na maioria das pacientes.
Aliado extra no tratamento do câncer
Além da mente preparada para encarar o tratamento, a aposentada Iria Stertz, 52 anos, conta com um aliado extra na luta contra o câncer de mama descoberto em setembro do ano passado em um exame de rotina. Com a identificação de que tem o gene receptor HeR-2 nas células cancerígenas, ela recebe um medicamento produzido exclusivamente para pessoas com essa característica. O resultado esperado pelos médicos e comprovado pela paciente é a redução dos efeitos colaterais com o anticorpo trastuzumab, chamado no mercado de Herceptin.
No início do tratamento, em outubro, Iria removeu o tumor. Um mês depois, iniciou a quimioterapia com um grupo de medicamentos, incluindo o Herceptin. A aposentada teve momentos de falta de energia e dor no corpo, mas o mal-estar desapareceu quando o tratamento seguiu apenas com o Herceptin.
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– Pelo que eu havia lido, achei que seriam bem piores os efeitos colaterais. Mas o importante é ter boa saúde para ter uma resposta orgânica melhor ao tratamento – afirma a gaúcha de Venâncio Aires, que vive em Florianópolis desde 1983.
Paralelamente às doses do remédio, a aposentada faz sessões de radioterapia no Hospital Moinhos de Vento, na Capital. O tratamento realizado em território gaúcho é completamente diverso do sugerido na primeira indicação médica, recebida em Santa Catarina. Na cidade onde mora, Iria ouviu do médico a sugestão de retirar a mama para conter o câncer. Apavorada com a alternativa apresentada, decidiu pedir uma segunda opinião, que a levou à terapia atual, bem menos agressiva.
A dose certa para cada paciente
Um tipo de exame genético foi desenvolvido como projeto de pesquisa no Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo. Por meio de uma amostra de sangue, o teste rastreia a ação de enzimas que ajudam no metabolismo de medicamentos. Existem três tipos de metabolizadores: os normais, os ultrarrápidos e os lentos.
– Uma pequena porção da população metaboliza muito rápido os medicamentos, tão rápido que não dá tempo de o remédio fazer efeito. São aquelas pessoas que dizem “doutor, o remédio não adiantou nada, é como se estivesse tomando água”. Não teve efeito terapêutico e nem colateral – explica o psiquiatra Wagner Gattaz, presidente do IPq e coordenador do projeto de farmacogenética.
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No IPq, o estudo começou com base na observação de pacientes que eram medicados e não melhoravam. Foi o caso de Luana, 16 anos (o nome foi preservado a pedido do médico), diagnosticada com Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) muito grave desde os 10 anos. A jovem passava de quatro a cinco horas tomando banho porque tinha que passar por um ritual diário de higienização e, quando achava que tinha cometido algum erro, recomeçava a limpeza.
Durante cinco anos, a paciente havia feito tratamentos e não respondeu a nenhum medicamento. O médico desconfiou que ela fosse uma metabolizadora ultrarrápida e a submeteu ao exame. O resultado confirmou a suspeita clínica e o tratamento foi modificado com segurança.
O teste metabólico é oferecido em poucos locais no Brasil. Na USP, pelo menos 400 pessoas já fizeram o exame. Na universidade, o pedido feito diretamente pelo paciente não é aceito.
A repórter viajou a convite da Roche.
