Nos anos 1970, quando ainda era incomum ver uma mulher negra ocupar espaços da arte catarinense, Valda Costa caminhava pelas ladeiras de Florianópolis carregando telas recém-pintadas. Moradora do Morro do Mocotó, no Maciço do Morro da Cruz, e mãe de seis filhos, ela transformava em imagem o cotidiano que a abraçava: casas encaixadas na encosta, ruas estreitas, festas populares, cenas de afeto e resistência. Autodidata, Valda criou um universo visual próprio, marcado por cores intensas e figuras alongadas, e rapidamente se tornou uma das artistas mais reconhecidas da cidade.

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Mas o mesmo circuito que inicialmente abriu portas logo passou a empurrá-la para as margens. Isso porque Valda não aceitava certas regras do mercado de arte — recusava intermediários, vendia diretamente aos compradores, descia para comercializar suas telas na rua e criava seus próprios meios de sobrevivência. Foi uma postura transgressora para a época, como explica Rita Oyakanmi, pesquisadora do grupo Arte Menor (Udesc), que hoje estuda a trajetória da artista:

— Ela não se dobrou ao mercado da arte. Pagou um preço altíssimo por isso, mas nunca parou de produzir. Estimam mais de 800 obras.

Durante um pequeno período em que comercializava as obras, Valda chegou a usar pseudônimos como Miguel Angelo, Angelo Miguel ou seu nome de batismo, Vivalda, para lidar com a resistência de compradores.

Com o tempo, no entanto, Valda foi sendo empurrada para o esquecimento institucional, embora suas obras continuassem circulando e gerando lucro para colecionadores. A artista morreu pobre, aos 42 anos, em 1993, deixando um legado que permaneceu vivo nas memórias de quem conviveu com ela — e na paisagem afetiva das comunidades onde cresceu e criou.

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Exposição e lei municipal recuperam história de Valda Costa

Apesar do apagamento sofrido no passado, o nome de Valda voltou a ganhar força nos últimos anos. Em setembro de 2024, por exemplo, Florianópolis sancionou a Lei 11.284, que deu à escadaria na Rua Pedro Soares, no Centro da Capital, a denominação formal de Vivalda Terezinha da Costa — Artista Valda Costa.

Para Rita, olhar para a trajetória da artista hoje é também revisitar como as estruturas da arte catarinense e brasileira tratam criadores negros.

— É impossível falar do apagamento da Valda sem falar de racismo. As urgências da Valda eram outras. Ela era uma mulher negra, de comunidade, mãe de seis filhos. E o mercado de arte não sabe lidar com urgências como as que ela tinha. Não é o tempo de quem precisa sobreviver — afirma Rita.

Rita conheceu a obra de Valda ainda no curso de Artes Visuais, mas só teve acesso real às telas anos depois, durante o processo de curadoria da exposição “Profunda Parecença”, realizada no Museu Victor Meirelles, na capital, com obras da artista catarinense:

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— Foi a primeira vez que eu consegui ver várias telas juntas. E foi um impacto. Não tem como não ser afetada pela história dela. E, como mulher negra, sentir que poderia ter sido eu. Que ainda pode ser eu, sabe?

Com curadoria de Juliana Crispe e Rita Oyakanmi, a mostra integrava o circuito de exposições Poéticas da Relação. A visitação gratuita terminou na última sexta-feira (14).

Veja fotos da exposição

Foi na educação que Rita viveu uma das experiências mais marcantes desse reencontro com Valda. Durante uma mediação com crianças da educação infantil do Neim Morro da Queimada — muitas delas moradoras do Mocotó, como a artista — ela viu nas pequenas reações um sentido profundo para o resgate dessa história:

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— Elas olhavam para as telas e apontavam: “essa é a casa do fulano”, “aquela é a rua tal”. É identificação pura. Elas se veem através da obra da Valda. Isso é de uma força que não dá pra medir. Aquelas crianças estavam vendo suas vidas nas telas de um museu. E estavam vendo que alguém da comunidade delas ousou ser artista.

Para a pesquisadora, devolver Valda ao centro artístico não é apenas reconstruir uma biografia, mas também garantir que novos artistas negros possam existir sem ter seus caminhos interrompidos.

— As escolas, desde a educação infantil até as licenciaturas, têm um papel fundamental nesse processo. São as novas gerações que vão carregar esses legados adiante. Quando uma criança negra se reconhece em uma artista negra, ela entende que também pode existir fora do lugar que a sociedade espera pra ela. É isso que muda as coisas. É isso que sustenta a luta antirracista — pontua.

Apesar do apagamento sofrido por Valda, as obras dela seguiram circulando. Muitas estão hoje com colecionadores privados, e o valor de mercado permanece alto.

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— É curioso: a Valda foi esquecida, mas segue dando dinheiro para o mercado da arte, mesmo que esse dinheiro não chegue aos seus descendentes.

Para Rita, a tarefa agora é garantir que o legado da artista não se perca novamente. E, para ela, isso passa necessariamente pela educação.

— As escolas têm um papel gigante. Desde a educação infantil até a formação de professores. A história da Valda precisa ser contada, estudada, levada adiante. Não como exceção, mas como parte fundamental da cultura catarinense — pontua.

*Sob supervisão de Giovanna Pacheco

Antonietas

Antonietas é um projeto da NSC que tem como objetivo dar visibilidade a força da mulher catarinense, independente da área de atuação, por meio de conteúdos multiplataforma, em todos os veículos do grupo. Saiba mais acessando o link.

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