A posse do novo desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), ocorrida na noite desta sexta-feira (7), foi marcada por simbolismos e posicionamentos. Até então juiz de segundo grau, João Marcos Buch assumiu a nova cadeira com um discurso rumoroso. Conhecido pela atuação como corregedor no sistema prisional de Joinville e pelas cartas escritas a detentos em períodos como o Natal, Buch fez menção à atuação nos presídios, além de fazer críticas ao governo de Jair Bolsonaro, sem citá-lo nominalmente, e afirmar que “temos flertado novamente com o fascismo”.

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O discurso de novo desembargador foi escrito em quatro páginas. Inicialmente, ele fez agradecimentos a familiares e magistrados. Depois, lembrou de onde veio. Natural de Porto União, na divisa de Santa Catarina com o Paraná, recordou do começo da carreira e de uma conversa com a própria mãe sobre a ideia de voltar para casa depois de ter começado a atuar no Judiciário em Florianópolis. Em seguida, o magistrado passou a fazer uma análise sobre o contexto brasileiro atual e concluiu com um breve relato sobre os trabalhos que comandou no sistema prisional, principalmente no período da pandemia (veja abaixo fotos da posse e, na sequência, trechos do discurso do novo desembargador).

Veja fotos da posse do desembargador

Leia abaixo trechos do discurso de Buch:

Momento atual

“O Brasil se redescobriu com a constituição de 1988, mas, parafraseando Walter Salles, diretor do premiado filme “Ainda Estou Aqui”, que trouxe a história do sequestro e assassinato de Rubens Paiva pela ditatura militar e os reflexos que esse hediondo crime trouxe para sua família, temos flertado novamente com o fascismo”.

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“Há valentões por todos os cantos, querendo governar o mundo e por consequência a Justiça. Pessoas que não aceitam projetos de vida coletiva, com melhor distribuição de renda, com direitos iguais, pessoas machistas, racistas e colonialistas; pessoas preconceituosas, homofóbicas e recalcadas; pessoas que disseminam o ódio e idolatram a guerra, a ditadura militar, que desejam retroceder ao préIluminismo. E por isso é que devemos sempre estar alertas e sempre ocupar os espaços em prol da democracia.”

Carreira

“E neste ponto, como disse Walter Benjamin, é importante contar a história sob a perspectiva dos vencidos, pois senão os vencedores continuarão vencendo. Pois bem, contarei a história de alguém que foi vencido, para que os valores morais, a dignidade, a honradez que ele sempre defendeu, fortaleçam-se como pilares sociais e cívicos e, quem sabe, um dia vençam”.

“Era uma vez um juiz de direito que trabalhava com aprisionados. Ele executava suas penas, penas de miseráveis, maltrapilhos e maltratados, seres humanos condenados por crimes, mas que, antes de tudo, tinham sido condenados pela pobreza e injustiça social. O juiz desde o início se dispôs a fazer diferente. Ele decidiu que aplicaria a lei, seus fundamentos, suas constitucionalidades e que se pautaria nos direitos humanos. Começou a rever posicionamentos jurídicos, a filtrar as normas pelos pactos e tratados internacionais, a sustentar posições das cortes superiores, que apontavam o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional no país”.

“Entretanto, logo o juiz percebeu que somente isso não era o suficiente, pelo contrário, exigir o respeito aos direitos fundamentais encontrava resistências e podia trazer ainda mais dor. Não foram poucos os que começaram a lhe atirar pedras, chamando-o de “defensor de bandidos”. O estigma que carimbava a testa de todo preso logo passou a carimbar também a sua testa”.

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Pandemia

“Os detentos, que já acreditavam na Justiça que o juiz representava, começaram também a acreditar na sua humanidade. Aquele sujeito de terno e gravata, que tinha o poder de os julgar, olhava para eles, perguntava como estavam, questionava sobre suas famílias, sua saúde, respondia a suas dúvidas. Ele os respeitava, respeitava em sua humanidade. Então, veio a pandemia, que além de colocar o mundo de joelhos, no Brasil aliou-se a um governo que negava a ciência e que ao destruir a saúde pública, tentava destruir a frágil democracia. E ele, juiz da execução penal, viu-se diante de mais um desafio, talvez o mais terrível de toda sua vida, o desafio de evitar que o vírus rebaixasse a humanidade dos presos, os tornasse não humanos. Foram anos de tormentas e tempestades. Mas ele seguiu, com a cabeça erguida, a espinha ereta, a força de quem sabe que está do lado certo da história”.

Derrota no Tribunal

“Depois de muitos anos de carreira, chegara o momento de ascender ao Tribunal, como desembargador substituto. Após ponderar e refletir, tomou a decisão, a hora era aquela, era preciso abrir caminho aos mais novos, a renovação era necessária. Inscreveu-se como candidato. Sendo o mais antigo, ainda que a votação viesse a considerar o merecimento no exercício das funções, não tinha dúvidas que galgaria ao posto. E começou a preparar a todos sobre sua saída da Vara de Execuções Penais. Conversou com os mais diversos setores, desde advogados, policiais penais, policiais militares, policiais civis, conselheiros do conselho carcerário, defensores públicos, promotores de justiça, servidores, colegas, até chegar principalmente nos presos. Sua saída das funções não poderia ser de surpresa, isso geraria abalos estruturais. Segurança pública se fazia com confiança pública e era importante deixar tudo bem transparente, bem pontuado. Eis que, na data marcada, o juiz não foi aceito, por uma apertada maioria de votos ele não foi considerado merecedor. Os motivos, esses não foram declarados”.

“A recusa foi seca, insípida, mas, era evidente que se devia à sua postura ética e humanista. Nova tempestade o atingiu. Ele sentiu vergonha! Vergonha perante sua equipe, seus assessores, que tanto nutriam os sentimentos românticos sobre a Justiça, vergonha por ficar abalado por algo que não se comparava à tristeza e ao sofrimento da insegurança alimentar de milhões de brasileiros, vergonha por não ter previsto com mais concretude que aquele golpe extremamente injusto tinha data marcada para acontecer”.

“Eu conquistei meu passado e hoje encaro o futuro, estou livre!”